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Entrevista com Leonardo Boff - "O teólogo é um ser impossível"

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“O teólogo é um ser impossível”, confessa Leonardo Boff, seguindo as trilhas de São Boaventura e São Alberto Magno no ensaio “Teologia sob o signo da transformação” (O Mar se Abriu – Trinta Anos de Teologia na América Latina. Luiz Carlos Susin (org.), Edições Loyola, 2000). A teologia seria “ante et retro occulata”, possui um olho voltado para o passado, em que lê os textos da revelação, os testemunhos da fé, os mestres exemplares e as tradições sagradas, e outro voltado para a frente, em que capta as intimidações da realidade complexa, contraditória e provocadora.

Nesse ensaio em que revisita seu percurso teológico de mais de quarenta anos, Leonardo Boff nos fala desta impossibilidade criativa do ser, constituído na cultura dos milênios e atravessado pelas promessas da emancipação. Sua primeira formação teológica deu-se na Ordem Franciscana, tendo lido durante sete anos os mestres medievais. “Quase sucumbi à tentação dos fraticelli do século 14, ao considerá-los mais fecundos que os evangelhos e mais inspiradores que Jesus de Nazaré.”

Em Um Balanço de Corpo e Alma (Editora Vozes, 1989), refaz os caminhos do “menino de pés descalços, maldizendo os dias gelados de junho-julho, montado num velho cavalo para ir ao moinho, levando trigo e trazendo farinha para o pão de mamãe, feito no forno de pedras rústicas”. Suas várias crises criativas como teólogo: dos mestres medievais da neo-escolástica ao pensamento transcendental de Karl Rahner e com a fenomenologia de Heidegger por intermédio de seu discípulo católico Max Müller, em seus estudos em Munique; a crítica da teologia fenomenológica pela teologia política de J.B. Metz e J. Moltmann, que lhe “abriram o mundo como conjunto de relações sociais e políticas e a responsabilidade do cristianismo para a gestação da crítica denunciadora das ilusões da modernidade individualista”.

A crise formadora decisiva, no entanto, foi em 1970, em um retiro para padres e religiosos missionários na floresta amazônica, em Manaus. “No terceiro dia de retiro minha crise se havia densificado de tal forma que não conseguia mais fisicamente falar”, lembra. A grande síntese: “Devemos atuar de forma revolucionária e libertadora para dar as razões de nossa fé e fazer jus aos títulos de sua pretensão, que é representar o desígnio de Deus na história”. Em seguida, viria o encontro com a obra de Marx.

O livro Igreja: Carisma e Poder – Ensaios de Eclesiologia Militante (Vozes, 1981) seria fruto dessa personalíssima imersão na vasta experiência das comunidades eclesiais de base. A experiência social da emancipação pensada a partir do carisma de São Francisco, “o que quer ser radicalmente pobre para ser plenamente irmão”, torna-se síntese do encontro histórico do cristianismo com o povo brasileiro. A nova Igreja do povo que está surgindo olha criticamente para a Igreja de Roma e sua “organização interna de cunho feudal, discriminatório e autoritário”.

É, ao mesmo tempo, a raiz na teologia franciscana de São Boaventura – a teologia cordis e a sacramentalidade de todas as coisas – que lhe permite na última década renovar a Teologia da Libertação como um pensamento ecológico cósmico tensionado para se situar frente à crise de civilização. “Pode o finito conter o Infinito / Sem ficar louco ou adoecer? / Não pode. Por isso eu grito / contra esse morrer sem morrer / Implode o infinito no finito! / O vazio é Deus no meu ser!”, diz em um poema do seu último ser em expansão.

Este cuja teologia já é parte da história cultural do povo brasileiro e cujo ser busca a harmonia sobre todas as coisas, paradoxalmente, nutre-se permanentemente da crise. É desse lugar que nos fala, de forma comovida e comovente, sobre os desafios da refundação do PT (JG).

Em Igreja: Carisma e Poder há uma construção crítica de como as determinações do poder político, no plano simbólico e material, afastaram em vários momentos históricos a estrutura oficial da Igreja Católica dos valores fundadores do cristianismo. A Teologia da Libertação sempre manteve uma saudável desconfiança das impregnações não virtuosas do poder na prática social. Como neutralizar as necessidades impostas do realismo político com a força das utopias da transformação? Em que medida a experiência do PT teria falhado nesse desafio essencial?
Há permanente tensão entre utopia e história, entre sonho e realidade. Para essa tensão não há equação perfeita, porque a utopia e o sonho sempre desbordam de qualquer realização concreta. O problema é como manter os dois pólos articulados, já que eles vêm sempre juntos. Acho que, antes de tudo, precisamos melhorar nossa concepção de realidade. Esta não se opõe à utopia. A utopia pertence à realidade. A realidade nunca é apenas o dado empírico. Ela contém dentro de si infindas virtualidades e possibilidades. Desse seu lado potencial nascem as utopias e os sonhos que buscam concretização, embora nunca o consigam de forma definitiva. A conseqüência prática é que nunca devemos identificar o real com o utópico. Precisamos relativizar o real. Não podemos nos perder nele. Quando fazemos a identificação, esvai-se o sentido da crítica, renunciamos à liberdade de criar e, no limite, podemos nos tornar conservadores e até fundamentalistas.

A hierarquia da Igreja, que surgiu num determinado momento da estruturação do poder sagrado pari passu com o poder temporal dos imperadores europeus, identifica esse fato com a natureza mesma da Igreja. Dogmatizou a história e assim sepultou a força estruturante dos ideais originários que apontam para formas participativas de poder, como comunhão de pessoas, como serviço comunitário, e não como centralização em poucas pessoas. Estimo que, de maneira semelhante, grupos do PT, especialmente da direção, identificaram o sonho Brasil-diferente com o projeto do PT, como se o partido tivesse o monopólio da representação e dos meios para realizá-lo. Esses estratos se burocratizaram, impediram a emergência da crítica interna e criaram obstáculos à criatividade que vinha dos ideais originários. Um certo desapego e distanciamento da própria posição é fundamental para a saúde política dos dirigentes e para manter aberta a história a outras formas de estruturação, diferentes daquelas convencionais em política.

A crise do petismo revela também o enfraquecimento dos valores de uma ética pública e a capacidade de agenciamento do que poderíamos chamar de “mercado da política” em sua cultura. Como a Teologia da Libertação enfoca essa relação a partir do reconhecimento da autonomia relativa entre a dimensão da ética e da política?
A Teologia da Libertação, em sua leitura da grande instituição Igreja (fundamentalmente da hierarquia da Igreja), deu-se conta de que houve na história uma concentração lenta e persistente do poder sagrado, controlado por um corpo de peritos (bispos e padres), correlato a um despotenciamento quase completo do povo de Deus. Inicialmente era uma comunidade fraternal, e os leigos participavam de tudo o que interessava a todos, até da eleição dos bispos e do papa, em Roma. Lentamente houve um verdadeiro golpe contra a participação dos leigos, até sua expressão maior com o papa Gregório VII, que publicou um famoso documento com o título Dictatus Papae, que traduzido literalmente significa “a ditadura do papa”. Isso ocorreu em 1077 e perdura até os dias de hoje. Todo o poder está nas mãos da hierarquia. Aos leigos cabe apenas ouvir e obedecer. Não possuem cidadania eclesial. São massas religiosas sem expressão e infantilizadas. No lugar de uma Igreja-rede-de-comunidades surgiu uma Igreja-sociedade-hierarquizada-desigual.

Diria que sempre que se descola de sua base real, que é o povo, quando não se deixa controlar por esse portador originário nem se enriquece com uma articulação orgânica com ele, esse poder acaba se isolando, se substantivando, se autonomizando, até se tornar totalitário. Os teólogos denunciavam esse fenômeno com o nome totatus: uma totalização completa e fechada da Igreja. Isso é fascismo religioso. Para se manter, articula-se com outros poderes seculares, corrompe-se pelos privilégios, viola todas as leis éticas ao afastar concorrentes e um eventual antipoder.

Foi analisando o comportamento dos papas da Renascença e o maquiavelismo de suas políticas, grande parte criminosas, que Lorde Acton pronunciou aquela frase conhecida: “Todo poder corrompe, e o poder absoluto (dos papas e bispos locais) corrompe absolutamente”. Já Hobbes, no seu Leviatã, denunciava a lógica do poder: “O poder só se garante buscando mais poder”. A expressão material desse poder é o dinheiro, que potencialmente tudo compra. Estratos do PT, na minha avaliação, foram vítimas dessa lógica: buscaram o poder do dinheiro, não tanto para se beneficiar pessoalmente (embora em alguns tenha ocorrido), mas para fortalecer o poder do partido com o interesse de se perpetuar por longo tempo no poder de Estado. Ligados organicamente às bases, os políticos são continuamente educados, reeducados, pelo povo e nele encontram mil razões para continuar a lutar por causas justas que atendam às demandas desse povo.

O tema da subjetividade do agente social da transformação, do militante social, também aflora com muita força nessa crise, quando se revelam episódios grotescos de corrupção ­pessoal. Se uma mentalidade sacrificial da vida, muito típica de certo cristianismo, parece carecer hoje de poder de polarização, como renovar a fusão entre o sentido cotidiano da vida e a dedicação à emancipação social?
Aqui é importante resgatarmos o sentido radical de revolução e a compreensão correta da função do indivíduo na história. A revolução, para ser radical (mudança de rumo na história para atender às demandas da população sistematicamente negadas), precisa envolver todo o homem e todos os homens. Não basta que sejam transformadas apenas as relações sociais. Cada sujeito deve ser envolvido nesse processo e ele mesmo mudar. Se não mudar, a revolução em algum momento mostrará seu impasse. Foi por não ter tido cuidado com esse processo global, que inclui o sujeito concreto e pessoal, que o socialismo, no meu entender, abortou seu projeto libertador. Deixou as subjetividades intocadas, especialmente com referência à mulher e à questão do meio ambiente. Continuou oprimindo a mulher e devastando a natureza.

A revolução, para ser radical, tem de ser permanente, como processo aberto de melhora contínua das relações − uma espécie de revolução sem fim que, para ser concreta, e não utópica, deve flexibilizar suas instituições e submeter à vigilância os hábitos políticos. Se determinarmos que o objetivo final de um processo revolucionário é o estabelecimento da democracia integral e da cidadania plena, devemos visar àquilo que o pensador luso Boaventura de Souza Santos bem formulou: a democracia sem fim. Realizar tal objetivo é o sentido maior da política e da ação dos seres humanos na História. O sujeito não pode ser entendido nos moldes do liberalismo e da visão burguesa da sociedade, em seu esplêndido isolamento e independência. O sujeito é sempre e concretamente um nó de relações, não apenas sociais (a tendência do pensamento de Marx), mas de relações totais e em todas as direções, até aquelas que incluem o transcendente e a sede de infinito.

O sujeito emerge assim como um projeto infinito, impossível de ser enquadrado numa ideologia, num quadro político e religioso ou cultural. Ele desborda sempre. Se não começar o processo de mudança por ele próprio (aquele pedacinho de mundo e de sociedade que é ele mesmo), dificilmente irá mudar as relações sociais. Kant, no meu modo de ver, articulou bem o duplo aspecto da ética, o pessoal e o universal: “Viva de tal maneira que aquilo que você vive possa ser válido para todos os demais seres humanos”.

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Um tema que aflora com grande força na gênese e no desenvolvimento da Teologia da Libertação é a opção preferencial pelos pobres e a construção de uma transcendente narrativa sobre a caminhada do povo brasileiro. Em que medida a crise do PT bloqueia ou significa o fracasso dessa narrativa?
O PT é como um tell. Um tell é um monte sob o qual se escondem cidades antigas cujas escavações revelam as várias camadas históricas e as muitas influências culturais que ali se acumularam. Assim, o PT esconde em sua base muitas forças históricas que vinham se formando ao longo do tempo, algumas mais antigas, outras mais recentes. Ele recolheu essas forças sociais e lhes deu uma configuração política de cunho emancipatório e libertário. Uma dessas forças se prende à Igreja da Libertação, que colocou como marca registrada de sua natureza a opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da vida e da liberdade. Pretendeu, na linha de Paulo Freire, fazer dos pobres e excluídos, uma vez conscientizados e organizados, os sujeitos principais do processo de libertação. Desse propósito surgiram as mais de 60 mil comunidades de base, o quase 1 milhão de círculos bíblicos e as pastorais sociais (por terra, teto, indígenas, negros, mulheres, crianças, direitos sociais e outros). Esses instrumentos são eclesiais, mas seu efeito alcança para além dos limites da Igreja, produz um efeito social, gesta cidadãos críticos e participantes. Eles estão, junto com outras forças, na origem do PT.

Esses cristãos não entraram no PT − ajudaram a constituí-lo. Entendiam o partido como um meio para concretizar o sonho da libertação, elaborado dentro do campo religioso, mas a se realizar no campo social. Foi importante para esses cristãos ter superado o risco integrista de elaborar um sonho cristão para todos os demais (o limite da democracia cristã). Eles assumiram o sonho que estava no povo e que o partido soube articular. Assim, eles se transformaram numa força social e política sem criar paralelismos. Vêm da Igreja, mas não são igrejeiros, são petistas. Mas há uma singularidade presente na visão desses cristãos que aparece clara em momentos de crise como agora. Eles se decepcionam, mas não perdem a esperança. A esperança é política (transformar a sociedade e o mundo), mas seu nascedouro é mais que político. Nasce de uma fé que vê o mundo ancorado no coração de Deus e no seu Reino. Se o PT fracassar, nem por isso desistem do sonho. Ao contrário, o sonho os municia com visões que podem resgatar o PT nos seus ideais originários e na sua força de interpelação política e de transformação social.

Tudo o que é sadio pode ficar doente. Essa doença não é mortal. Ela pode ser curada especialmente a partir da parte sã. Assim, vale a pena investir esperança no resgate do PT, bebendo do capital de esperança que não se esgota no PT e, por isso, não deixa que a crise vire uma tragédia. A parte sã vai curar a parte doente, e o organismo-PT poderá continuar a desempenhar sua missão histórica de inauguração de outro tipo de política, de outra forma de inclusão do povo e de outra maneira de contribuir para uma globalização menos vitimatória das grandes maiorias da humanidade. Os cristãos atuantes do PT estão assumindo essa consciência. Sem a pretensão do monopólio da ética e do sonho, podem ajudar na superação da fragmentação e da dispersão das forças de mudança social, e assim não reforçar o pensamento conservador das oligarquias, e continuar militando dentro do partido como o grande instrumento construído para a emancipação histórica do povo brasileiro. Esse legado de 25 anos de existência do PT não pode ser desperdiçado.

No pequeno mas precioso livro A Teologia da Libertação – Balanço e Perspectivas, organizado pelo senhor, José Ramos Regidor e Clodovis Boff (Ática, 1996), registra-se o reconhecimento de faltas e erros no pensamento e na prática da Teologia da Libertação, advindos de sua relação pouco crítica com o marxismo e com os regimes do Leste Europeu, de certa politização excessiva do terreno da fé e da afirmação de certas certezas sobre os caminhos da emancipação. Fale-nos das dimensões desse balanço crítico.
A Teologia da Libertação é uma teologia militante. Não se contenta em pensar a ortodoxia apenas como se faz normalmente nas faculdades de Teologia. Quer a ortopráxis, quer dizer, incentiva uma prática que nasce do capital religioso do cristianismo, mas visa transformar a realidade social por considerá-la dissimétrica (analiticamente), injusta (eticamente) e pecaminosa (teologicamente). Essa libertação tem de ser libertação mesmo, quer dizer, não pode ser assistencialista e paternalista − que faz para os pobres, mas não se dá conta da força histórica dos pobres. Ela é somente libertadora se tiver os oprimidos (que são pobres e simultaneamente cristãos) como sujeitos de sua libertação, libertação com os pobres e a partir dos pobres. A Igreja é apenas aliada e fornece os espaços institucionais aos pobres.

Como se trata de um processo concreto, há sempre referências concretas. Assim, o socialismo real no Leste Europeu não era visto como um modelo (pelo que pude acompanhar de dentro da Teologia da Libertação), mas como uma oposição e alternativa histórica ao capitalismo. No fundo se pensava: o capitalismo não ocupa todo o espaço, há um antipoder, uma alternativa possível de organização das sociedades humanas, com limitações e avanços que não se podem desconhecer. Defendia-se não tanto o socialismo real, mas a oposição ao capitalismo. A derrocada do socialismo atingiu a Teologia da Libertação. Não porque um sonho nosso foi abortado, mas porque sabíamos que, sem o socialismo, começaria a barbárie do capitalismo. Quer dizer, a centralidade dos pobres e oprimidos, os ideais do internacionalismo e da solidariedade ficariam sem um representante político no cenário mundial. Tais perspectivas se tornariam muito mais difíceis. De fato, assim ocorreu.

Hoje a solidariedade é muito menor do que antes. O capitalismo triunfante sob Reagan e Thatcher radicalizou os ideais capitalistas e neoliberais: magnificação do indivíduo, da propriedade privada, difamação do Estado e da política, tentando reduzir o primeiro ao mínimo e fazendo do segundo um caudatário da economia. Ficamos sem referências de que é possível a superação histórica do capitalismo. Cuba ficou uma referência, mas com a cons­ciência de que não é o nosso caminho, e a China é muito distante e confusa para nossa leitura política. A teologia militante se viu enfraquecida. Mas seu ataque maior veio do papa Wojtyla, que conheceu a experiência do comunismo soviético, ateu e estatista. Na sua interpretação, no contexto da guerra fria, a Teologia da Libertação se prestava a ser um cavalo de Tróia para a penetração do marxismo na América Latina. O destino dos países latino-americanos, feitos cristãos na primeira evangelização colonizadora, não poderia ser o mesmo que o da Polônia. Por essa razão, o papa condenou fortemente esse tipo de teologia e levantou suspeita sobre todos os teólogos e igrejas que se orientavam por tais visões. Houve condenações exemplares de teólogos e marginalizações explícitas de bispos, especialmente na América Latina.

A conseqüência foi um bloqueio da reflexão e o desmonte da vasta articulação que esses teólogos mantinham entre si, com ramificações na África, na Ásia e mesmo no Primeiro Mundo. Mas, como essa teologia nasceu da preocupação com os pobres e oprimidos, estes, ao invés de diminuir, aumentaram em número no mundo inteiro. Ela continuou a manter seu fervor e militância, apenas com menor visibilidade e organicidade, continua como uma das tendências teológicas mais importantes do mundo, forte na África, na Ásia e na América Latina, especialmente no Brasil. De modo geral, quando uma igreja local toma a sério a questão dos pobres e da justiça social, encontra nessa teologia uma referência teórica e também prática, já que os teólogos da libertação estão sempre metidos em alguma prática social ligada aos meios marginalizados.

Em ensaio de Clodovis Boff, defende-se o ponto de vista de que seria errada a visão muito difundida de uma derrota da Teologia da Libertação frente ao conjunto da instituição, de que esta teria enriquecido a dimensão social de suas pregações a partir do impacto de uma teologia formada, pela primeira vez, na periferia do mundo. Em que medida essa avaliação se mantém hoje?
A Teologia da Libertação nunca teve Marx como pai nem como padrinho. Ela bebeu primeiramente de sua própria fonte, que é a tradição judaico-cristã, que sempre deu centralidade aos pobres, ao tema da libertação do cativeiro egípcio e babilônico e à prática histórica de Jesus, que foi pobre e disse “felizes de vocês pobres e ai de vós ricos”. E que não morreu tranqüilamente na cama como um piedoso rabino cercado de discípulos, mas na cruz, fruto de um juízo político-religioso que o condenou com o castigo dado a revoltosos sociais. Mas ela encontrou em Marx as boas razões para entender por que o pobre não é pobre, e sim um explorado e injustiçado. Ele é um empobrecido, feito pobre por fatores de ordem econômica, social e cultural, que hoje ganham corpo especialmente no capitalismo. Isso deu lucidez à Teologia da Libertação, mas também atraiu as acusações das classes sociais conservadoras − que sempre usaram a Igreja para legitimar seu projeto, que implicava a exclusão do povo −, e também do Vaticano, que, no contexto da guerra fria, sempre era contra o marxismo e a favor das forças do mundo ocidental. Estes nos viam como aliados dos “inimigos” ou inocentes úteis. E moveram todas as forças contra esse tipo de teologia: desde a difamação, a condenação por autoridades eclesiásticas, até o seqüestro, tortura e assassinato de alguns teólogos e agentes de pastoral.

Essa teologia é a única no mundo de hoje que tem mártires, no Brasil, na Argentina, no Chile e na América Central. Em razão dos conteúdos evangélicos e do alto teor ético da causa dos oprimidos presentes na Teologia da Libertação, foi sempre constrangedor para as autoridades eclesiásticas e para o Vaticano condená-la. De fato, implicava reforçar o lado conservador, anticomunista e capitalista do mundo. A mídia mundial captou essa contradição e assumiu, praticamente, a defesa do ponto de vista da Teologia da Libertação. Isso ficou claro por ocasião de meu interrogatório pela Congregação da Doutrina da Fé, uma semana depois da publicação do documento condenatório da Teologia da Libertação pelo então Cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI. Mas, com a queda do Muro de Berlim e com a homogeneização do espaço político sob o neoliberalismo e o modo de produção capitalista com seu mercado total, apareceram claramente para Roma as contradições da nova situação. Deram-se conta da barbárie que o capitalismo introduz onde se instala e da negação sistemática que faz na prática dos ideais e da ética cristã. João Paulo II e o Vaticano acabaram por arrefecer em suas críticas à Teologia da Libertação. O papa chegou a escrever uma carta à Conferência dos Bispos do Brasil (com o significado de uma pacificação) na qual dizia que, em contexto de pobreza social generalizada, “a Teologia da Libertação não é apenas útil, mas necessária”.

De fato, a Teologia da Libertação foi feita invisível na Igreja e na sociedade a ponto de muitos perguntarem se ela ainda existia. Mas, surpreendentemente, seus principais conteúdos foram assimilados pelo discurso oficial dos papas e do Vaticano: a opção pelos pobres, a dimensão política e pública da fé, a expressão libertação integral, a vinculação da evangelização com a justiça social, sem o que não existe verdadeira evangelização, a missão da Igreja de estar do lado dos injustiçados. Nunca tais temas eram explícitos e claros nos discursos oficiais, que tendiam a espiritualizar as questões conflitivas da sociedade. Nisso a Teologia da Libertação deu uma contribuição à Igreja. Dentro de uma geração partiu da periferia e ecoou fortemente no centro do poder religioso.

No grande esforço de renovação das perspectivas da Teologia da Libertação, assume-se como central a problemática de que vivemos uma crise de civilização e que é preciso buscar conformar os princípios de uma alternativa à globalização do capital. Essa problemática parece-me rica e fecunda. Em que medida, nos últimos dez anos, a TL caminhou no sentido de responder a esse grande impasse civilizacional?
Esteve sempre presente no discurso da Teologia da Libertação, desde seus primórdios, no final dos anos 60, e em todas as suas fases, a convicção de que a grande busca não é o socialismo, mas um novo mundo, outra forma de convivência global que incluísse todos e também a natureza. Aquilo que são temas do Fórum Social Mundial eram os temas da Teologia da Libertação em todos os encontros dos anos 70 em diante. E houve a cada dois anos encontros internacionais que envolviam os cinco continentes, com vasta participação de leigos e leigas, bispos e cardeais (como dom Aloísio Lorscheider e dom Paulo Evaristo Arns), mas sempre sob vigilância e temor do Vaticano. A questão se tornou mais candente quando entrou na reflexão teológica a questão da ecologia. Se a Teologia da Libertação nasceu ouvindo o grito dos oprimidos (pobres, negros, indígenas, mulheres, discriminados), deveria incluir também a escuta do grito das águas, das florestas, dos animais em extinção, enfim, dos ecossistemas e da própria Terra. Na opção pelos pobres deveria entrar também o grande pobre, a Terra. Aí se viu claramente que a questão é de civilização. Há um tipo de civilização, seja de corte capitalista, seja de corte socialista, que se relaciona com violência com a natureza, devastando-a e pondo em risco o futuro comum da vida, da humanidade e do planeta.

Precisamos de outro paradigma de civilização, que inaugure outro tipo de relação, não contra a natureza, mas em sinergia com ela, com respeito pela alteridade e com a consciência de que somos parte e parcela dessa natureza. Nossa missão é ética, a de preservar o criado e resgatar o que foi desfigurado. Nesse campo se está trabalhando muito na atual fase da Teologia da Libertação, que somente agora ganhou efetivamente uma dimensão integral e global. Ou mudamos de paradigma ou então corremos o risco de ir ao encontro do pior. As religiões e o cristianismo devem ajudar com uma pedagogia libertadora, de responsabilização pelo futuro comum e de respeito e veneração diante de todo ser.

No início do ano, realizou-se, às vésperas do Fórum Social Mundial, um encontro ecumênico da Teologia da Libertação. Como foram a representatividade, os avanços e limites desse encontro?
De fato, uma semana antes do Fórum Social Mundial de Porto Alegre de 2005, houve o Fórum Mundial da Teologia da Libertação, com cerca de duzentos representantes (o número foi intencionalmente limitado) de todos os continentes, inclusive dos grandes centros metropolitanos de pensamento teológico. Pode-se constatar a força de mobilização que essa teologia ainda possui. Diria até, em termos gramscianos: ela não domina o campo teológico, mas hegemoniza o discurso cristão sobre as grandes questões da humanidade, da justiça, do feminismo, do fundamentalismo, do terrorismo e do drama ecológico. Sobre todas essas questões possui reflexões pertinentes e articuladas com os outros discursos da sociedade.

Viu-se também como em cada continente se trabalhou a crise interna da Teologia da Libertação, pois também nela foi notado o reflexo do rebaixamento do horizonte utópico em todo o mundo. Não há a ousadia e o fervor utópico dos anos 70. Todos conheceram a repressão política em sua sociedade e o controle das doutrinas promovido pelo Vaticano. Não se deve esquecer que mais de cem teólogos foram condenados, depostos de suas cátedras e silenciados sob o pontificado de João Paulo II. Ele não se mostrou um amigo da inteligência da fé, mas um controlador severo das novas visões e possibilidades do cristianismo face aos desafios contemporâneos. Todos ficaram mais pragmáticos, sem entretanto perder o entusiasmo pelas mudanças necessárias. Já que não há muita liberdade para pensar, a grande maioria optou pela inserção nos meios populares para trabalhar e, a partir do trabalho, fazer reflexões ligadas àquela prática, sem os grandes vôos dos anos 70. Isso ajudou a Teologia da Libertação a se manter como processo concreto de libertação, mais do que uma reflexão sobre e a partir da libertação. O que finalmente conta é a libertação concreta do povo, e menos a reflexão religiosa sobre ela.

Com referência ao PT, penso que a chave para ele se renovar e voltar a seu antigo fervor é buscar o contato orgânico com as bases. São os oprimidos que continuamente motivam e desafiam os políticos. Não se pode ficar indiferente ao sofrimento de multidões, diante de rostos cansados, pés inchados, mãos calosas e olhos despertos e brilhantes quando vêem e ouvem mensagens que animam suas esperanças. Aí o político do PT encontra as muitas razões para continuar lutando e levando avante a bandeira das transformações sociais, com ética e inclusão social no marco da democracia. O resgate do PT depende dessa volta às fontes de seu nascedouro e de sua utopia originária. Ela tem vigor suficiente para sanar os desvios e fechar chagas abertas.

Eu mesmo, quando desesperado pelas contínuas repreensões por parte das autoridades doutrinárias do Vaticano (a partir de 1971 e praticamente todo ano recebia admoestações e interrogatórios escritos), encontrava consolo, ânimo e sentido de continuidade na inserção nos meios pobres e populares. Jogam-se outros valores, e as questões com o poder central se tornam irrelevantes. Meu sofrimento não era nada diante da paixão dolorosa da grande maioria de nossa gente, sobrevivente de uma via-sacra que tem mais estações do que aquela do Filho de Deus.

Neste momento de crise do PT, há grande risco de dispersão da esquerda, o que seria fatal para o povo brasileiro. Como o processo de renovação utópica das comunidades eclesiais de base pode alimentar uma renovação das esperanças do povo brasileiro e ser por ele alimentado?
O povo brasileiro possui um capital de esperança inesgotável. Resistiu a todo tipo de dominação e exclusão, conservando sua bonomia, seu sentido lúdico da vida, seu bom humor e o caráter encantado do mundo, que lhe vem de sua dimensão mística. Em contato com ele somos literalmente contaminados e convertidos. Caso contrário, inflacionamos nosso discurso ideológico e não sabemos em que cabide da vida vamos dependurá-lo. Uma vez levei um jornalista alemão, sensível ao drama humano, que havia feito uma cobertura dos grandes conflitos mundiais dos últimos anos, a uma roda de forró, onde o povo dançava, comia churrasquinho, tomava cerveja e se divertia com grande alegria e efusão. De repente, vi que chorava. Dizia que estava fazendo uma oração a Deus, de agradecimento, pois estava vivendo um pedaço do paraíso que ele sonhara para a humanidade. E pedia a Deus que, quando o chamasse desta vida, o fizesse num ambiente assim. Dessa forma passaria do paraíso terrenal ao paraíso celestial...

Isso é uma pequena amostra do que pode o povo da opressão: viver espaços de libertação e de liberdade dos filhos e filhas da alegria, e não do vale de lágrimas. Os membros do PT encontrarão mil razões para viver, para continuar no PT, quando se ligarem a essa vida concreta do povo, quando deixarem seu gabinete de administração e mergulharem no mundo dos oprimidos, em sua forma de viver, festejar, rezar e dar sentido à vida no meio de tantas tribulações. Sentir-se-ão comprometidos com ele e entenderão a política como o grande instrumento de realização do sonho que o povo continua a sonhar, na certeza de que um dia vai dar certo, de que Deus vai olhar por nós e de que o governo será feito pelos legítimos representantes de suas lutas. Os grupos cristãos de base estão sofrendo com a crise do PT, mas não estão desanimados. O que predomina não é a desistência, mas a vontade redobrada de retomar a caminhada e resgatar o PT para que seja o conduto de expressão e realização de seu sonho. Vêem tudo isso à imagem de Jesus, que foi um fracassado, pois morreu na cruz, mas ressuscitou para se insurgir contra esse mundo opressor e levar avante a luta pela vida em abundância para todos. Pois esse é o desígnio do Criador. São visões religiosas, mas infundem coragem para viver e lutar, porque é isso que fundamentalmente conta.

Juarez Guimarães é cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais

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