Política

O cientista social Emir Sader foi condenado à perda de seu cargo de professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a um ano de detenção, em regime aberto. Não estariam cerceando a liberdade de expressão na academia?

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Este artigo não trata da pessoa de Emir Sader ou do senador Bornhausen: trata da liberdade de expressão e de seus limites – e, sobretudo, de quando essa liberdade é usada ou abusada por políticos, intelectuais e jornalistas, que são quem mais fala e mais é ouvido em nossa cena pública.

Este esclarecimento seria dispensável, não fosse o fato de que, após a condenação de Emir Sader, ele foi atacado na qualidade intelectual do seu trabalho e até em sua ética pessoal. Ora, isso não vem ao caso. Emir Sader dirige um doutorado em Políticas Públicas na Uerj, é editor ativo e presidente do Clacso, órgão que reúne cientistas sociais de toda a América Latina – e toda essa história de êxito não importa, aqui. A lei não foi feita para proteger algumas pessoas, mas a todas. Não precisamos elogiar Emir para que lhe seja feita justiça. Por isso me impressionou que alguns jornalistas e mesmo um promotor subordinassem o direito de Emir a se expressar à condição, por exemplo, que denunciasse Fidel Castro ou que não processasse ninguém por difamação. Há dois problemas nesse raciocínio.

Primeiro: alguém condenado injustamente por um crime não poderia acusar outros do mesmo crime? Se eu for acusado de assalto, jamais poderei me insurgir contra alguém que, de fato, me roube? E não é exatamente isso o que se está dizendo? Que uma pessoa injustamente condenada por difamação não poderá defender sua honra contra quem a conspurque? Quer dizer, uns teriam menos direito que outros a invocar a proteção da lei?

Sem dúvida, há leis injustas, que não merecem obediência. Nosso Código Penal ainda diz que os que acusarem de crime chefes de governo, nacional ou estrangeiros, serão necessariamente caluniadores – sem o direito de provar que suas acusações têm base (direito esse que se chama “exceção de verdade”). Foi essa lei absurda – e covarde, porque tudo isso está escrito em juridiquês, para que não fique evidente a iniqüidade do dispositivo (art. 138 do Código Penal) – que permitiu ao ditador Geisel condenar o deputado baiano Francisco Pinto, em 1974, quando o parlamentar oposicionista acusou de criminoso o ditador chileno Pinochet, em visita ao Brasil para a posse do colega. Essa lei é iníqua e não deve ser aplicada. Aliás, não o tem sido, porque por ela quem acusasse o então presidente Saddam Hussein de genocídio seria condenado à prisão por nossa Justiça. Provavelmente, o dispositivo é inconstitucional, mas, mais que isso, é infame. Esse é um caso claro em que é digno opor-se à lei, embora num Estado democrático isso se deva operar de preferência pela sua revogação, e não só por seu descumprimento.

Mas não é essa a questão. Não nego que haja a honra, e que seu respeito deva ser determinado pela lei e aplicado pelo Judiciário. Difamação, injúria e calúnia são delitos que devem ser punidos. Portanto, não é o fato de ter sido acusado e mesmo condenado injustamente (ou mesmo justamente!) por um crime que proíbe alguém de acusar outrem do mesmo crime, ou de qualquer outro. Somos todos iguais perante a lei: os zeros à esquerda e os zeros da direita, os inocentes e os criminosos.

Segundo problema: esse tipo de raciocínio, além de negar que os atacados em juízo tenham direito aos direitos, requer um adicional – para certas pessoas terem direitos, elas precisam mostrar-se muito superiores às demais. De modo geral esse raciocínio se aplica aos pobres, aos excluídos, aos humilhados: para terem os direitos de que um branco, um incluído, um privilegiado desfrutam, precisam se mostrar pessoas excelentes, sem mácula. É o que nos Estados Unidos logo antes da Guerra de Secessão se viu no célebre romance A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (1852): o personagem negro era tão bom que... podia ter os mesmos direitos que os brancos nada bons que o rodeavam. Igualmente, hoje se pede da esquerda que, para ter direito a exercer o poder ou para dizer a política, seja superior moralmente à direita. Para alguns serem simplesmente humanos, precisam ser santos – enquanto outros, para terem os mesmos direitos, podem até ser bestas. Tal raciocínio é absurdo. Emir Sader não precisa, para não ser condenado, considerar Cuba uma ditadura (o que, pessoalmente, considero). No debate político, é justo perguntar isso a ele e a seus defensores. Mas não é justo condicionar seus direitos de cidadão ao que ele pensa sobre outros regimes. Ele, como qualquer um, é um cidadão qualquer, com os deveres e direitos de qualquer um.

O iníquo na sentença que condena Emir Sader a um ano de prisão substituído por uma pena alternativa de prestação de serviços mais a demissão de seu cargo de professor na Uerj – é que o juiz não cotejou o que disseram ele e o senador Bornhausen. Não há como avaliar um debate se apenas uma parte é examinada. Pela sentença do juiz, um anjo foi difamado. No entanto, o senador dissera, e não se retratou, que “ficaríamos livres dessa raça por trinta anos”, acrescentando que por “essa raça” se referia ao presidente da República e aos militantes do PT. Os termos não poderiam ser mais infelizes. O Supremo Tribunal Federal, em 2003, condenou um racista do sul do país após depoimento de Celso Lafer, que mostrou que segundo a ciência raça não existe, mas racismo sim: é o propósito de difamar ou exterminar pessoas que pertençam a um grupo que compartilha algumas características comuns, ainda que estas não constituam uma raça. “É impossível, assim me parece, admitir se a argumentação segundo a qual, se não há raças, não é possível o delito de racismo”, concluiu a ministra Ellen Gracie, hoje presidente do STF.

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A expressão do senador Bornhausen foi, pois, na melhor das hipóteses, infeliz. Mesmo não tendo a intenção do racismo, um político deve evitar expressões que façam entender que se estaria propondo a liquidação ou neutralização de uma raça. Após um século que conheceu inúmeros casos de genocídio, certas palavras têm tom assustador. Agrava o caso o senador ter pronunciado essa frase em tom jovial e que fosse aplaudido pela liderança do empresariado paulista e brasileiro.

Evidentemente, em favor do senador pode-se dizer que ele falava em linguagem figurada e que apenas queria tirar do poder, por trinta anos, os partidários do PT. Pode ser, e assim desejo crer. Não considero o senador Bornhausen nazista nem defensor do extermínio da esquerda ou dos pobres. Mas entendo que suas frases possam ser assim compreendidas, causando certa revolta. É possível que, se movimentos dos negros e organizações judaicas interpelassem em juízo o parlamentar, ele se retratasse.

As expressões certamente duras com que Emir Sader respondeu às declarações do senador – ademais, presidente do PFL, um dos grandes partidos nacionais, que poucos anos atrás ocupava a Vice-Presidência da República e ministérios importantes – não podem ser avaliadas abstrain- do-se o que Bornhausen disse. A sentença judicial tem dois pesos e duas medidas. Contra Emir Sader, alega-se que ofendeu um senador eleito pelos votos de muitos cidadãos. Contra Emir Sader, alega-se que seu texto foi amplamente difundido pela internet que, sendo professor, forma (ou deforma, no entender do juiz) alunos e jovens. Mas não se considera que o senador possa formar (ou deformar?) a opinião pública e contribuir para a aprovação de leis e formulação de políticas oficiais. Não se considera que suas declarações tiveram enorme repercussão na mídia. Não se leva em conta que – falando para a elite do PIB brasileiro e sob seu aplauso – possa ter influenciado grandes empresários, suscitando entre eles a idéia de que os petistas são uma “raça” desprezível, o que ajudaria a gerar um preconceito contra posições políticas legítimas e legais. O peso do público do senador, na tomada de decisões em nosso país, é maior que o dos estudantes que terão lido a reação de Emir Sader.

Além disso, faz parte da democracia que não pretendamos nos ver “livres” de gente de quem discordamos. Podemos não querê-los como amigos, podemos desejar que nenhum deles jamais seja eleito para coisa alguma, mas temos de reconhecer seu direito a estar na cena pública, a disputar o voto e a exercer os cargos para os quais sejam eleitos. Aliás, espanta que o juiz invoque, em favor do senador Bornhausen, os votos que recebeu dos catarinenses e esqueça que políticos a ele ligados falaram em agredir fisicamente o presidente da República, eleito com muito mais votos e principal representante do povo brasileiro. Discordar, sim. Mas ameaçar de agressão física?

Quando me pediram este artigo para um livro em defesa de Emir Sader, solicitaram que tratasse de sua dimensão acadêmica. Com efeito, a sentença decreta a perda do cargo público que Emir Sader exerce, como professor em universidade pública. A questão, como bem a formulou Rogério Cerqueira Leite, é se alguns juízes não estariam assumindo o papel que os militares outrora exerceram, cerceando a liberdade de expressão na academia. Aqui, mais uma vez, a discussão deve se concentrar na aplicação da lei. É justo que uma pessoa condenada por crime de alguma seriedade seja privada de seu cargo público. Não queremos criminosos exercendo cargos oficiais. Mas a questão é mais delicada quando está em jogo a opinião. Recorramos a alguns exemplos.

No começo de outubro de 2006, no primeiro debate entre os candidatos ao segundo turno presidencial, o ex-governador Alckmin disse mais de uma vez: “Lula, você (sic) mente”. Faltou à educação, que pedia que tratasse o adversário com respeito, mas também lhe dirigiu uma acusação séria. Estava previsto, no regulamento do debate, direito de resposta de um minuto em casos tais. Porém a produção do programa negou esse direito a Lula. Isso contribuiu para o candidato de oposição manter seu nível de agressão – e, penso eu, concorreu para que a opinião pública se afastasse dele, não reconhecendo mais o bom moço da propaganda tucana naquela figura indelicada. Mas, se num debate alguém pode dizer sem direito de resposta que o outro mente, o que ensejaria um direito de resposta? Que o candidato acusasse o outro de assassino? Que o candidato desse um tiro no outro? Foi parcial a decisão da emissora, que facilitou uma escalada de agressões verbais e até uma física, mas penso que os eleitores souberam, com isso, quem eram as pessoas que disputavam seu voto.
No Congresso, dois senadores, um de centro-direita, uma de extrema esquerda, ameaçaram bater no presidente da República. O presidente da Casa deveria tê-los censurado, submetido a uma pena de advertência verbal ou escrita, aplicada pela Mesa, ou mesmo suspendido por curto prazo o exercício de seu mandato. Nada disso se fez. Ambos declaravam sua disposição a praticar um crime. Iam além do delito de opinião. Anunciavam que queriam espancar alguém que, por sinal, é presidente do país. Não foram punidos pelo Senado.

Quais são os limites, então, da liberdade de expressão? Temos acreditado que é melhor seu excesso do que sua falta. É melhor ela não ter limites do que os ter muito estritos. In dubio, pro libertate, poderíamos dizer. Mas será mesmo esse o caso? Estudantes de Jornalismo deveriam ler o livro A Honra Perdida de Katharina Blum (1974), do romancista alemão Heinrich Böll, ou assistir ao filme de mesmo nome (1975), em que uma jovem, depois de ter a reputação achincalhada pela imprensa marrom, mata o jornalista autor dos artigos mentirosos. Lembro o incômodo que o filme causou no Brasil, entre nossos jornalistas, que então tinham como principal inimigo a censura e a ditadura, ao se verem no papel não de heróis da verdade, mas de campeões da mentira. Esse, porém, é um risco que a liberdade de expressão porta em seu seio: o de destruir o outro. E por sinal a liberdade de opinião não teria valor se palavras fossem meras palavras, isto é, se não pudessem acarretar resultados, espera-se que positivos (pelo menos, um conhecimento mais multifacetado, mais plural, dos fenômenos), mas, por vezes, negativos (como a negação do Holocausto, que em alguns países hoje é crime). A palavra do político não é estéril: ela causa impacto, forja realidades, que podem ser boas ou nocivas. O que contribui para o debate e alimenta a dúvida é positivo. Já o que destrói ou prejudica o outro sem justificativa é negativo. Mas é verdade que, entre o uso positivo e o abuso negativo da liberdade de expressão, há uma vasta área neutra e/ou duvidosa.

Não defendo, pois, Emir Sader em nome de um suposto direito de cada um a dizer tudo o que quiser. Mas assinalo que vários políticos e jornalistas se dão um direito ilimitado, uma imunidade e mesmo impunidade em nome de uma liberdade sem responsabilidade. Não podemos esquecer que Ibsen Pinheiro, o presidente da Câmara que dirigiu o processo de impeachment contra Collor, teve cassado o mandato com base numa mentira divulgada pela imprensa. Nem que Alceni Guerra, ministro de Collor, teve a carreira política truncada por outra mentira levianamente espalhada. Nem que os donos da Escola de Base da Aclimação, em São Paulo, tiveram a vida devastada por falsidades informadas por um delegado e difundidas urbi, senão et orbi, pela imprensa. Neste último caso, os grandes veículos da mídia brasileira têm sido condenados, quase quinze anos decorridos do episódio, a elevadas indenizações, que eles geralmente não noticiam e tentam não pagar.
Em síntese, discordo da condenação de Emir Sader no todo, e não em parte. Não é que, por ser professor universitário, esteja isento de responder por seus atos. Mas há enorme desproporção entre o papel conferido a ele – o de ofensor irrestrito – e ao senador (o de vítima inocente) na sentença, visivelmente equivocada e que certamente será reformada em instância superior, do juiz. Não separo, por isso, a pena “acessória” de perdimento do cargo público e a principal. Se alguém comete um crime sério, faz sentido essa decorrência. Mas considero Emir Sader inocente. Acrescento que a pena “acessória” é na verdade a única pena real no processo, porque a condenação à pena privativa de liberdade, que seria a principal, foi convertida em prestação de serviços. Em suma, o objetivo real da sentença é excluir da vida universitária um professor porque, num debate, reagiu a quem iniciou o uso de expressões absolutamente impróprias e agressivas. Isso, sim, é inaceitável. Quer-se excluir Emir Sader da universidade pelo simples uso da defesa num debate de opiniões. Isso, nem a ditadura militar ousou fazer nos seus anos de lenta, gradual e irrestrita agonia. Quando cassou Francisco Pinto, já não ousava cassar professores universitários – apenas, pelo SNI, impedia ou retardava sua contratação. Aqui não cabe tergiversação: as pessoas podem discordar de Emir Sader, podem não gostar de suas idéias ou de sua plataforma no Clacso, mas quem é democrata não pode negar o apoio à primeira vítima, em trinta anos, que se tenta produzir na universidade só porque expressou idéias dentro da lei. Para resumir e deixar tudo límpido, afirmo, primeiro, que a condenação é errada; segundo, que podemos discordar de Emir Sader em tudo, contestar suas idéias, sua prática, seu estilo, mas isso não se deve confundir com o seu direito a, livremente, reagir a uma provocação que justificava o princípio de sua resposta.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na USP. Autor de Ao Leitor sem Medo – Hobbes Escrevendo contra o Seu Tempo (1984; 3a ed., 2003), A Sociedade contra o Social – O Alto Custo da Vida Pública no Brasil (2000), A Universidade e a Vida Atual – Fellini não Via Filmes (2003) e O Afeto Autoritário – Televisão, Ética, Democracia (2005), entre outros.

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