Internacional

A retomada das negociações na Rodada de Doha significa ganho para poucos em troca dos efeitos perversos sobre a renda e o mercado interno do país

Desde o fim do processo eleitoral, vimos fortes movimentações do governo brasileiro, em geral, e do Ministério das Relações Exteriores, em particular, ministro Celso Amorim à frente, na tentativa de retomada da Rodada de Doha, curso de negociações comerciais na Organização Mundial do Comércio (OMC). Intensificadas a partir do Fórum Econômico Mundial em Davos no começo deste ano, essas movimentações passaram por várias reuniões formais e informais, nas quais se busca driblar os impasses que perduram desde meados do ano passado, quando as negociações travaram.

Como é conhecido, para os que acompanham, o impasse central continua a se dar em torno da tentativa de abertura de mercados e redução de subsídios, em produtos agrícolas, dos países de maiores mercados, particularmente os Estados Unidos e membros da União Européia, em troca da abertura do mercado de produtos industriais (conhecido nas negociações pela sigla em inglês NAMA – Non- Agricultural Market Access) e serviços dos países em desenvolvimento.

Essa troca tem uma consequência evidente do ponto de vista de estratégia de desenvolvimento: significa consolidar alguns países como exportadores de produtos primários e outros como os setores industriais e de serviços, mais dinâmicos, com maior capacidade de formar os próprios preços, ao invés de tomar preços de mercado como os dos setores de primários, capazes de gerar melhores empregos e mais renda, de desenvolver mais tecnologia, de ser mais autônomos e menos dependentes. Consequências que têm impactos não só econômicos, mas fundamentalmente sociais e políticos. Além disso, ambientais, uma vez que os setores produtores de primários, sejam agrícolas, agroindustriais ou de mineração, são os de maior impacto – negativo – sobre o meio ambiente. Assim, é bom que fique bem clara a estratégia, para que se possa identificar com clareza os ganhadores e perdedores com sua adoção.

Existem muitos outros pontos importantes que devem ser levados em consideração nessa discussão, mas o objetivo a partir daqui é mais preciso, e bastante atual: demonstrar que, em um momento em que as discussões internas no Brasil apontam para a questão do crescimento econômico, em especial pelos discursos da campanha eleitoral e, mais recentemente, pelo lançamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), existe uma contradição forte entre o objetivo do crescimento econômico e a ampliação da opção preferencial pelo mercado externo, em especial a inserção internacional que prioriza a obtenção de mercados para produtos primários.

O primeiro ponto é a relação tênue entre crescimento das exportações, ou crescimento do comércio exterior, e crescimento do PIB.

A tabela a seguir mostra que em  um ano como 2003, por exemplo, em que as exportações aumentaram 21% e o saldo comercial quase 89%, o PIB teve um pífio crescimento de 0,5%. Ou, enquanto o saldo comercial crescia apenas 3,1% em 2006 (contra mais de 30% nos dois anos precedentes e quase 89% em 2003) e as exportações 16%, bem menos que nos anos anteriores, o PIB crescia 2,9%, mais que no ano anterior – ou seja, as exportações e o saldo comercial cresceram menos em 2006 do que em 2005 e o PIB mais. Isso não quer dizer necessariamente que não exista relação entre o PIB e o saldo comercial, mas apenas que essa relação é muito tênue e, como mostrou o ano de 2006, as explicações para o crescimento do PIB devem ser buscadas muito mais no mercado doméstico.

Do ponto de vista do mercado doméstico, a troca proposta para viabilizar o rompimento do impasse na Rodada Doha é dramática. De um lado, mais dinamismo para um setor exportador cujo saldo comercial advém fundamentalmente de commodities agrícolas e minerais de baixo ou nenhum processamento e cuja renda se concentra em alguns poucos grandes produtores e empresas nacionais e transnacionais que dominam o circuito de produção e comercialização desses produtos, com baixa capacidade de repassar a dinâmica de seu crescimento exportador para os demais setores. De outro, menos renda e emprego em uma série de setores industriais internos em que a renda dos trabalhadores e a capacidade de encadeamento das cadeias viabilizariam uma dinâmica maior de crescimento da economia. Estaremos, assim, trocando a garantia da renda exportadora para uns poucos pela perda de renda e emprego de muitos, o que poderá ter impactos negativos se o objetivo declarado – a aceleração do crescimento econômico – for para valer.

Mais complicado ainda – pois em um momento de forte restrição orçamentária, em que o Ministério da Fazenda anuncia que um dos objetivos do PAC é reduzir o déficit nominal das contas públicas –, prometem-se recursos aos setores  industriais que serão afetados pela barganha que permitiria viabilizar a retomada das negociações (que hoje já são, antes do eventual rebaixamento das tarifas de importação, atingidos por uma taxa de câmbio fortemente apreciada), para que possam se reestruturar, caso isso aconteça. Em um quadro em que os responsáveis pelo Orçamento se dispõem a fazer milagres para a ampliação do investimento público que possa promover o crescimento e é restringida a possibilidade de melhorias salariais para o setor público, além de todas as restrições que já sofre a oferta de serviços públicos em setores sociais, a promessa significa ainda menos recursos orçamentários disponíveis para esses setores. (A menos que o governo esteja pensando em financiar a reestruturação dos setores perdedores com as negociações taxando mais os setores exportadores que seriam beneficiados, o que não foi anunciado hora nenhuma e seria uma surpresa, pois a trajetória recente é de permanentes e ampliadas concessões a estes setores.)

Teríamos ainda, caso fossem retomadas as negociações com a barganha proposta, e esta tivesse sucesso, uma nova forte pressão do eventual dinamismo dos setores da grande agricultura comercial de exportação sobre a produção e a propriedade da agricultura familiar – cuja capacidade de empregar brasileiros na produção rural e se encadear dinamicamente com outros setores é muito maior que a da grande agricultura comercial. Isso concentraria mais ainda a renda e a produção no campo ou exigiria a ampliação de recursos orçamentários para o apoio à agricultura familiar como forma de mantê-la viável.

Vista desse prisma, a finalização com sucesso da Rodada Doha na OMC por meio da equação hoje colocada – a troca de abertura da possibilidade de expansão das exportações da grande agricultura comercial por perdas no setor industrial – apresenta contradições agudas com o objetivo de uma aceleração do crescimento econômico. E, de novo, assim como em relação à política de taxas de juros e de câmbio do Banco Central, se deve ter bastante claro que, se crescer de forma mais acelerada é efetivamente um objetivo, este se mostra contraditório com a opção que viabiliza o fechamento da Rodada de Doha hoje, em que o que vale é o ganho de poucos com a expansão do comércio internacional do país, em troca dos efeitos perversos sobre a renda e o mercado interno.

Adhemar S. Mineiro é economista, assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)