Sociedade

O educador-educando Paulo Freire ensinou, escreveu e lutou por uma educação humanizadora e contra a anulação do sujeito-cidadão. Praticou, por onde passou, sua teoria baseada na pedagogia da vida e de respeito à vida. Ainda hoje inspira pessoas e grupos que teimam em trabalhar por um mundo justo, tolerante e menos violento

Paulo Freire. Foto: Acervo Instituto Paulo Freire

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A experiência da pobreza no Nordeste brasileiro, na sua infância e juventude, fez o professor primário Paulo Freire identificar-se com “os oprimidos” e o levou a enfrentar o desafio de inventar mais do que um método de alfabetização, uma prática pedagógico-política contra a exploração, a discriminação e a exclusão. Pedagogia do oprimido, pedagogia da libertação, pedagogia da esperança, pedagogia do diálogo são alguns dos nomes que ele foi encontrando para nomear sua proposta de “ação cultural liberadora”. Os nomes são óbvios e, talvez por isso mesmo, de fácil repercussão. Paulo Freire sabia dessa obviedade e se dizia ele próprio um pensador, divulgador e militante do óbvio. Mas essa pedagogia do óbvio nunca foi ingênua, pois é enfática em denunciar as mais diversas formas de dominação – inclusive aquela que se internaliza nos dominados – e em propor ações para combatê-las, apoiada numa heterodoxa mistura de cristianismo e marxismo. Aí cabe tanto o reconhecimento realista da luta de classes e das barreiras que esta cria à convivência pacífica das pessoas neste mundo quanto a afirmação do amor e da fé num outro mundo possível.

Essa experiência nordestina de Paulo Freire foi alargada para o âmbito nacional na década de 1960, quando o seu assim chamado “método” foi sendo utilizado por diversos grupos de educadores dos círculos populares de cultura e foi sendo reinventado localmente, com maior ou menor criatividade e êxito, pelos que acreditavam no poder da educação para construir um Brasil menos injusto. Educador engajado na construção de uma democracia para além do meramente político e para além de um desenvolvimento centrado apenas no crescimento da economia, Paulo Freire soube identificar a riqueza da recriação coletiva de sua pedagogia e, no diálogo permanente com seus interlocutores, aproveitar as oportunidades de superação de sua prática e de seus escritos, abrindo-se a um processo também permanente de autocrítica que o acompanharia até o fim.

A ditadura o fez sair do Brasil e exilar-se no Chile em 1964, mas, em vez de desanimá-lo, o exílio lhe trouxe novas oportunidades de aprender e de ensinar, a partir do conhecimento de outras lutas pela democratização e por justiça social. Não apenas na América Latina, mas, a partir daí, nos Estados Unidos, Europa, Ásia e, sobretudo, África.

No Chile trabalhou até 1969, entre outras atribuições, nos programas de alfabetização patrocinados pela Unesco. Daí saiu para os Estados Unidos, onde lecionou durante 10 meses na famosa Universidade de Harvard. Finalmente, acabou optando por trabalhar no Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, onde ficou até 1980, quando de sua volta ao Brasil. O Conselho proporcionou-lhe local, condições materiais e ambiente apropriado para dedicar-se livremente aos seus projetos de formação, alfabetização e pós-alfabetização, principalmente pensados e incrementados com parceiros africanos. E deixou-lhe tempo para viajar, proferir conferências e também dialogar com educadores e militantes de movimentos sociais em toda a Europa.

Na Alemanha1 sua trajetória começou em 1972, em Hamburgo, a convite do amigo e colega professor Gottfried Hausmann. Nesse mesmo ano, surgiu na cidade o primeiro Grupo Paulo Freire. No ano seguinte, a revista Referente: Educação dedicou um número inteiro à pedagogia da libertação, merecendo sete reedições e servindo de referência bibliográfica central a quem trabalhava com educação popular. Ao grupo de Hamburgo seguiram-se outros tantos, que não apenas discutiam idéias como elaboravam projetos concretos de reformulação da educação no país. Da necessidade de intercambiar e coordenar o trabalho desenvolvido pelos diferentes grupos nasceu, em Munique, uma associação de círculos de cultura no setor social, AGSpak. Aproximadamente cem grupos articularam-se em torno dessa associação, que organizou seminários e publicou cerca de vinte livros sobre a teoria e a prática da educação pela e para a liberdade dentro e fora da Alemanha2.

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A partir daí fez-se necessária uma integração maior com experiências análogas dos grupos freirianos em outros lugares da Europa. Criou-se então, junto à Academia da Juventude de Walberberg, perto de Colônia, a Associação Européia para a Conscientização. Outras organizações surgiram logo depois, como a Universidade de Paz, na Bélgica, e o Instituto Ecumênico para o Desenvolvimento dos Povos (Inodep), na França, que, juntamente com a AGSpak de Munique, promoveram uma troca intensa de informações e de materiais.

Na década de 1990, com a unificação da Alemanha, que segundo Ilse Schimpf-Herken significou a “apropriação neocolonial da RDR”3, e com os cortes de verbas para educação, cultura e saúde, que se sucedem até hoje, arrefeceu o ímpeto dessa militância freiriana. Mas em 1994 foi criada a Associação Paulo Freire, que reuniu novamente os simpatizantes e ativistas da pedagogia da esperança. Entre as suas principais atividades está a publicação regular da revista Educação Libertadora4 e o desenvolvimento de um trabalho de formação de educadores, por meio do que se chamou uma “pedagogia da memória”5.

Voltando ao Brasil, em 1980, Paulo foi um dos fundadores do PT e, em 1989, assumiu a Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina. Sua atuação nessa secretaria demonstrou como, à medida que sua prática e sua formação teórica se aprofundavam e se diversificavam, ele foi desenvolvendo ainda mais a capacidade de autocrítica, sendo mais aberto do que muitos de seus “seguidores” a uma utilização heterodoxa de seus próprios métodos e princípios. Como foi o caso do tema gerador, princípio que norteou a reorientação curricular pela via da interdisciplinaridade, desencadeada na sua gestão e tomado muitas vezes de modo rígido, o que Paulo Freire soube criticar com afabilidade e firmeza em algumas reuniões de avaliação desse programa. Pois, como outros pesquisadores já sublinharam, ele estava constantemente alerta para flagrar os efeitos perversos de alguns conceitos que cunhou. Foi o que ocorreu também com o conceito de conscientização, que a certa altura resolveu não mais usar, porque teria se prestado a uma utilização distorcida, abstrata e conservadora, sobretudo nos Estados Unidos.

Apesar do desastre que representou para São Paulo os oito anos das gestões de Paulo Maluf e Celso Pitta, a histórica experiência da Secretaria de Educação sob a coordenação de Paulo Freire não se perdeu. Muitas das conquistas dessa época continuam a inspirar a prática de educadores dedicados e conscientes do seu papel pedagógico-político, não apenas aí, mas em todo o território brasileiro por onde se espalhou.

Os institutos e centros Paulo Freire no Brasil e no exterior atuam de forma cooperativa, no sentido de levar adiante as iniciativas dos círculos de cultura. Estes permitem divulgar a obra de Paulo Freire e as experiências e projetos pós e ainda freirianos, locais e globais. A dimensão globalizada do seu pensamento e prática chegou a ser vivenciada e teorizada por ele mesmo ainda em pleno exílio, quando reconheceu neste uma forma de se universalizar, vencendo o provincianismo e o nacionalismo tacanhos. Isso lhe permite estar presente hoje em muitos movimentos sociais progressistas.

Os grupos europeus desenvolvem cada vez mais sua articulação com outros no Brasil e no mundo, sobretudo por meio do Instituto Paulo Freire, de São Paulo. Em espaços reais e virtuais, impera a consciência de que ser fiel a Paulo é reinventá-lo por exigência da realidade, dos problemas a enfrentar e tentar resolver, juntamente com os movimentos sociais organizados, trabalhando com eles e não para, por ou sobre eles. Esse trabalho ajuda a desenvolver uma competência intercultural em várias áreas, da educação de adultos à teologia, do teatro à economia e até mesmo à medicina. As questões da violência na escola e fora dela foram e são objeto desse pensamento-ação, procurando propor ações concretas para a melhora da vida de imigrantes, moradores de rua, desempregados, mas também buscando dar lugar ao desenvolvimento humano como um todo, onde o crescimento da economia não seja destruidor das pessoas e da natureza e onde a própria teoria do desenvolvimento seja tratada na sua dimensão cultural, tendo em vista o trabalho intercultural6 e a competência para a cooperação internacional na superação dos conflitos da era global.

As inúmeras publicações daí decorrentes deixam visível essa diversidade. Para terminar, gostaria de destacar uma entrevista com a médica Ulrike Keim, publicada na revista Paulo Freire Kooperation , sob o título de “Paulo Freire e a medicina”. Nela Ulrike fala de sua opção por uma medicina dialógica, alternativa à tradicional. Concebe o paciente como um parceiro, um agente, co-responsável pela gestão de sua saúde e faz desta, e não da doença, o objeto da prática médica7. Nada mais oportuno numa sociedade em que os médicos estão cada vez mais burocratizados, pensando nos minutos que não querem perder com o paciente e atentos mais ao computador do que ao exame clínico do doente.

Paulo Freire, educador-educando, como costumava dizer, ensinou, escreveu e lutou contra uma pedagogia da passividade e da anulação do sujeito-cidadão. Trabalhando por uma educação humanizadora, defendeu e exerceu na teoria e na prática uma pedagogia apoiada na vida e respeitosa à vida. Por isso mesmo essa pedagogia ainda vive, inspirando pessoas, grupos e instituições que teimam em trabalhar por um mundo mais justo, mais tolerante e menos violento.

Ligia Chiappini é professora titular de Literatura Brasileira da Universidade Livre de Berlim

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Quadro I - Educar para um outro mundo possível

O Instituto Paulo Freire (IPF) é uma associação civil, sem fins lucrativos, criado em 1991. Desde a sua fundação, Paulo Freire acompanhou todos os momentos da história do IPF: apresentou nomes, participou da discussão dos estatutos, da definição da linha básica de atuação da instituição, tomou parte nas principais decisões e contribuiu sempre com suas valiosas e esclarecedoras reflexões sobre os projetos desenvolvidos.

Atualmente, considerando-se Cátedras, Institutos Paulo Freire e o Conselho Internacional de Assessores, o IPF constituise numa rede internacional que possui membros distribuídos em mais de 90 países em todos os continentes. A fim de possibilitar a troca de experiências e aprofundar as reflexões teóricas em torno de seus campos de atuação, o Instituto se organiza em três áreas: educação popular, educação cidadã e educação de adultos. Cada área desenvolve atividades de estudos, pesquisas, publicações, formação inicial e educação continuada, consultorias e assessorias educacionais.

A utopia que move o IPF é construir a cidadania planetária, combatendo a injustiça social provocada pela globalização capitalista, educando para um outro mundo possível, à luz de uma nova cultura política inspirada no legado freiriano.

A atuação do Instituto compreende, entre outras ações, formação sobre: currículo da escola cidadã; reorientação curricular da educação de jovens e adultos; ecopedagogia; educação de jovens e adultos; educação popular; gestão compartilhada de projetos e programas; gestão democrática e princípios de convivência na perspectiva da cultura da paz e da sustentabilidade; tecnologias aplicadas à educação; elaboração do projeto político-pedagógico da escola; avaliação institucional, dialógica, formativa e continuada; orçamento participativo; criação de sistema municipal de educação; elaboração de plano municipal da educação; economia solidária; exercício da cidadania desde a infância e orçamento participativo criança.

Registros audiovisuais, manuscritos e documentos estão na sede do instituto em São Paulo. Dentre eles, merecem destaque os originais da Pedagogia do Oprimido e a farta correspondência que manteve com alguns dos personagens mais importantes do final do século passado.

No início de 1998, o IPF recebeu a biblioteca que Paulo Freire vinha formando em sua casa há mais de 50 anos, antes e após o exílio. Ela é composta de aproximadamente 7 mil volumes, entre livros, revistas e documentos, acessível a pessoas e instituições no Brasil e no exterior. O IPF informatizará o acervo de livros, periódicos e documentos de que dispõe, colocando todos os títulos em sua página na internet. Informações em www.paulofreire.org

Angela Antunes , diretora pedagógica do IPF

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Quadro II - Paulo Freire no mundo

Na Alemanha há grupos estabelecidos em Berlim, Oldenburg e Munique. As principais atividades desses grupos, como das demais associações e institutos Paulo Freire, são, além dos projetos de pesquisa e da produção de materiais didáticos, a publicação de leitura especializada e a manutenção e alimentação de uma rede de informações entre faculdades e instituições pedagógicas na Alemanha e no estrangeiro, visando a cooperação em nível nacional e internacional, para fazer jus ao nome. A Editora Paulo Freire, de Oldenburg, publica trabalhos científicos nas áreas de pedagogia, sociologia e serviço social, publicações de preços mais acessíveis, pensadas para um público mais amplo. Além das publicações especializadas em diferentes áreas, destaca-se aí a revista Educação Dialógica .

Fora da Alemanha podemos citar, entre outros: Caap – Centro de Animação para Autogestão Popular, na Itália; SPE  – Escola Profissional do Emigrante, na Suíça; Cedal – Centro de Estudos do Desenvolvimento na América Latina, na Suécia; Cetal – Centro de Estudo e Trabalho América Latina – e FoNoLa-Sol – Associação para o Intercâmbio Popular entre os Países Nórdicos e Latino-Americanos, na França; Ibis – Contato Dinamarquês Norte-Sul – e Icea – Associação Internacional de Educação Comunitária, na Dinamarca; Inodep – Instituto Ecumênico de Desenvolvimento e Educação de Adultos, na França; IPF – Instituto Paulo Freire, em Portugal. Há também dois grupos que foram criados quando Paulo Freire ainda estava vivo: o Idac, nascido em Genebra, transferido para o Rio de Janeiro, mas com representantes na Suíça, e o Idea – Instituto para o Desenvolvimento da Educação de Adultos, dirigido até o ano passado por Antonio Faúndez. Em 2006 o Idea fundiu-se à organização não-governamental EDM, “Crianças do Mundo”, fundada em 1968, também sediada em Genebra. Cunhando a expressão “pedagogia do texto”, os pós-freirianos do Idea retomam criticamente o “método Paulo Freire”, nem sempre com o devido crédito. Mas o curioso é que até isso pode ser interpretado como uma grande vitória na trajetória do educador, pois a sua despersonalização só reforça a vitalidade da  sua pedagogia. (LC)

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