Internacional

Não se pode perder de vista que mudanças já estavam em curso antes de Fidel anunciar seu afastamento

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A questão da “transição” política em Cuba tem sido o foco de enorme interesse e discussões durante anos entre estudiosos, think tanks, jornalistas e analistas internacionais (de distintos matizes ideológicos), tanto nos EUA como no resto do continente. Mas o que não se pode perder de vista é que essa “transição”, na prática, já vinha ocorrendo muito tempo antes de Fidel Castro anunciar sua decisão de não concorrer mais ao cargo de presidente do Conselho de Estado do país. E, mais, vem sendo conduzida, lenta e habilmente, há algumas décadas, pelo próprio jefe máximo da revolução. Por isso, não se pode esperar erupções abruptas de protestos populares ou uma virada radical na política cubana. As mudanças são sutis, brandas, sem rupturas dramáticas, feitas para que a população possa assimilá-las sem nenhuma pressa ou surpresa. São pequenos ajustes, seja na economia, seja nos postos-chave do governo. Certamente há alguns setores da intelligentsia insatisfeitos com a condução do Partido Comunista nos diferentes aspectos da vida econômica e cultural do país, assim como indivíduos em busca de novos horizontes fora da ilha, mas, de maneira geral, ainda se vê um apoio real da maioria da população ao PCC e às decisões da Assembléia Nacional. Uma mudança para um sistema “democrático” nos moldes preconizados pelos EUA (como tanto desejam os dissidentes da Flórida) parece muito pouco provável, pelo menos a curto prazo.

Desde o triunfo da revolução, em 1959, até o final do século 20, Cuba passou por transformações profundas, que alteraram radicalmente a face e o caráter do país. Se em 1950 a ilha possuía 6 milhões de habitantes, em 1999 sua população chegava a 11 milhões de pessoas. E, se antes da revolução 80% do comércio se dava com os EUA, depois do rompimento de relações diplomáticas e comerciais com Washington, em 1961, foi necessária uma conversão econômica e industrial completa para o sistema soviético.

Os números mostram os avanços alcançados nesse período. Antes da entrada triunfante dos barbudos do Movimento 26 de Julho em Havana, havia apenas três universidades; quatro décadas mais tarde eram cerca de 50, onde aproximadamente 600 mil estudantes se formam a cada ano, dos quais 57% são mulheres. A pesquisa científica foi incrementada, passando de cinco centros de investigação para os atuais 106. Em 1959, o país contava com apenas 8 mil médicos; quarenta anos depois, eram 70 mil. Com a criação de uma rede de ensino primário gratuito, o analfabetismo caiu de 23% para 3%, e a partir daí se desenvolveu um sistema de editoras que aumentou em 616 vezes a produção de livros no país. Antes da vitória dos rebeldes do M-26-7, havia somente 40 bibliotecas públicas; em 1999, somavam 700. Praticamente a ilha inteira foi eletrificada e investimentos foram feitos na indústria farmacêutica (80% dos remédios eram produzidos no país em 1999); nas fábricas de fertilizantes (90% de origem nacional); no desenvolvimento de uma nova marinha mercante, com capacidade para 1,5 milhão de toneladas; a produção de açúcar foi significativa (em torno de 7 milhões de toneladas); a produção de cimento chegou a 4 milhões de toneladas; a de níquel, a 48 mil toneladas; e a de arroz, a 500 mil toneladas. A produção de cigarros subiu 14 vezes; a de rum, 36 vezes; e a de charutos, 14 vezes. Já o consumo de petróleo atingiu, na virada do milênio, a cifra de 14,5 milhões de toneladas.

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O final melancólico da União Soviética e do bloco socialista, por outro lado, foi um golpe duríssimo em Cuba. Nos anos do “período especial”, o governo da ilha procurou se adaptar ao máximo aos novos tempos, com racionamento de energia e alimentos, inversões em setores “alternativos” (como o turismo) e a busca de novos parceiros comerciais. Afinal de contas, houve a perda de 80% de seu tradicional mercado de exportação e importação, e a necessidade de reconverter toda a maquinaria e as fábricas obsoletas que ainda utilizavam tecnologia soviética. Alguém poderia argumentar que na pior fase do “período especial”, entre 1991 e 1994, as condições para dissensões, protestos e manifestações populares não só estavam presentes como seriam até mais propícias do que as atuais. Mas nada realmente significativo ocorreu. É bom lembrar que Cuba é um país que tem, tradicionalmente, uma história de lutas populares contra potências estrangeiras e ditaduras internas. As rebeliões não são uma novidade por lá. Assim foi contra a Espanha, contra a ingerência norte-americana, contra o governo Machado e contra a ditadura de Batista. Se as massas cubanas de fato quisessem derrubar o governo revolucionário, já teriam pelo menos tentado. A dissidência interna, contudo, é conduzida por uma minoria. O que se constata é que, por maiores e mais legítimas que sejam as insatisfações, a população, em sua grande parte, ainda admira e respeita enormemente Fidel Castro, que, na prática, construiu uma nação, colocando Cuba no mapa, criando um nítido senso de dignidade pessoal em seus cidadãos e fazendo com que o país desempenhasse um papel de protagonista no cenário internacional por quase cinqüenta anos.

É verdade que o país se abriu demasiadamente devagar... Mas se abriu. Turistas estrangeiros chegaram aos milhares (foram 2,2 milhões em 2006) e, com eles, dólares e euros. Investimentos foram feitos. Os preços do cobalto e do níquel (produzido com a empresa canadense Sheritt), importantes produtos de exportação de Cuba, subiram no mercado internacional. E o comércio com vários países, especialmente a China e a Venezuela, seu principal parceiro, aumentou de maneira sensível. Cuba produz, atualmente, em torno de 50% de seu petróleo (em parcerias com empresas multinacionais) e o resto de suas necessidades é suprido pelo governo de Hugo Chávez, que envia aproximadamente 100 mil barris por dia, com a amortização a ser paga em quinze anos, a apenas 2% de juros anuais. Não só isso. A ilha tornou-se, de certo modo, uma economia de “serviços”, já que 76% do PIB corresponde ao envio de professores e médicos overseas, transação, em muitos casos, remunerada pelo país anfitrião (o que tem causado, por outro lado, uma falta de especialistas na ilha). O transporte público ainda é precário. Na capital, contudo, quase todos os infames “camelos” (caminhões com carrocerias adaptadas para “carregar” mais de 250 passageiros) já foram substituídos por modernos e baratos ônibus chineses biarticulados. E a construção civil (de acordo com números ofi ciais) foi responsável, só em 2006, por 100 mil unidades habitacionais.

O grande influxo de moeda estrangeira, por sua vez, criou uma situação paradoxal na ilha. De um lado o peso “oficial”, altamente desvalorizado e utilizado para o pagamento dos salários dos trabalhadores; e de outro o CUC, o peso “conversível”, artificialmente sobrevalorizado, equivalente a mais de US$ 1. Assim, enquanto 1,2 milhão de pessoas recebem um salário mínimo de 225 pesos (em torno de US$ 12), uma parcela da população, em geral ligada ao turismo ou ao aparelho burocrático, vai acumulando os CUCs, que cada vez mais circulam no país. Há quem diga que surge aí uma nova burguesia, ou, como diria Milovan Djilas mais de quarenta anos atrás em relação à Iugoslávia, uma nova “classe”, certamente privilegiada, dentro do socialismo. Se isso é verdade ou não, é inegável que se pode perceber a cada dia uma maior distinção entre os haves e os have nots no país. Essa situação é acompanhada pelo aumento de uma silenciosa, mas real, corrupção administrativa em alguns setores da economia nacional.

Apesar das imperfeições, há uma tentativa de oxigenar o debate interno na ilha. Nas universidades, estudantes e professores discutem os rumos revolução da em grande medida, a partir das correntes de esquerda internacional. Isso significa dizer que autores como Gramsci, Rosa Luxemburg e José Carlos Mariátegui ganham nova importância e são usados para fundamentar e buscar caminhos alternativos de desenvolvimento, mais livres e abertos, dentro do próprio socialismo. Por outro lado, no governo cubano, as imagens mais recorrentes não são as de Marx e Engels, mas as de José Martí e Che Guevara. Isso como simbologia e forma de dar maior coesão interna na ilha, porque, na realidade, os dirigentes cubanos parecem mais preocupados mesmo é em enfrentar de modo pragmático os problemas econômicos do país. A principal intenção é aumentar e desenvolver os meios de produção e melhorar, o mais rápido possível, a qualidade dos produtos e da vida de seus cidadãos. E tudo isso, é claro, com a participação direta de Fidel nos bastidores. Mesmo que ele tenha dito que agora vai lutar como um “combatente de idéias”, escrevendo sua coluna “Reflexiones del Comandante”, no Granma, podemos ter certeza que ele continua, mesmo atrás da cortina, sendo uma peça fundamental na direção da ilha. Todas as escolhas de dirigentes que Castro tem feito ao longo dos anos (e até mesmo após o anúncio de que não concorreria mais à Presidência) mostram que ele ainda desempenha um papel fundamental
na condução política de Cuba. Se Fidel tivesse falecido abruptamente ainda no cargo de presidente, sem ter delegado suas funções a uma “equipe” de “transição”, o trauma certamente seria muito maior. Da forma que fez, não. Ele sai de cena ainda em vida, sabendo todos os detalhes da sucessão, observando o desenrolar dos acontecimentos e podendo, mais livremente, influenciar todo o processo. Uma jogada de mestre. E uma necessidade. Fidel, recuperando-se de uma operação gástrica extremamente delicada, via-se exaurido, debilitado, cansado demais para exercer plenamente todas as suas funções políticas. Mas ainda mantém a mente lúcida e as idéias afiadas. Por isso, não é de estranhar que agora escreva mais do que nunca, e inclusive queira preparar suas memórias.

Para conduzir essa “transição”, Fidel e seu irmão Raúl atribuíram às Forças Armadas Revolucionárias um papel de destaque em diversos setores da economia do país. De um lado, as FAR precisavam encontrar novos meios de manter e modernizar, na medida do possível, todo o aparato bélico de Cuba. De outro, o governo via nos militares (formados no Grupo de Administração Empresarial) elementos mais preparados e com disciplina suficiente para gerir (ou pelo menos, ter uma presença marcante) uma diversidade de ministérios e empresas ligados ao turismo (a Gaviota,por exemplo), agricultura, pecuária, telecomunicações, construção, açúcar, tabaco e serviços de importação e exportação. Raúl, considerado por alguns como mais pragmático e “duro” que Fidel, conseguiu expandir as empresas de capital misto (as joint ventures), abrir mercados livres agropecuários internamente e legalizar o dólar durante certo período.

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Esse “novo” estilo administrativo tem dado bons resultados. Em 2006, de acordo com estatísticas governamentais (que seguem uma metodologia muito particular, incluindo também os serviços sociais, que são gratuitos em Cuba, mas remunerados em outros países), a economia teria crescido 12,5% (o que parece muito otimista). Pelos cálculos mais conservadores, baseados em parâmetros internacionais, o crescimento chegaria a 7%, uma cifra, de qualquer modo, bastante impressionante.

Mas, se o turismo é responsável por fazer girar boa parte dessa economia, outros setores, como a agricultura, perderam espaço. E essa questão é prioridade para Raúl e o novo governo. Cuba importa quase 50% de todo o alimento consumido na ilha (alguns analistas aumentam esse número para 84% dos produtos alimentícios básicos ao mercado interno em pesos oficiais), e seus cidadãos gastam 57% do salário para comprar comida. Ou seja, Cuba importa em torno de US$ 1 bilhão em arroz, frango e peixe em lata. Além disso, um terço das terras cultiváveis está ocioso. De acordo com a Cepal, 20% da população urbana de Cuba não tem condições de satisfazer suas necessidades básicas, num país onde a maioria de seu povo vive nas cidades. Esse é um fardo demasiadamente pesado para carregar e um problema que deve ser resolvido a curto prazo. A luta contra o burocratismo e a ineficiência também é algo que deve ser promovido pelos atuais dirigentes. De qualquer forma, há quem diga que as medidas que vão sendo tomadas pelo governo representariam uma volta ao capitalismo, algo com que os dirigentes do país não concordam. Os métodos semelhantes ao capitalismo, implantados através do Sistema de Aperfeiçoamento Empresarial, seriam apenas a forma, e não o verdadeiro conteúdo, do atual estágio da revolução socialista.

As atuais lideranças de Cuba são em parte membros da velha guarda da revolução e em parte da chamada geração “intermediária”, mais jovem. Ou seja, há uma busca por equilíbrio entre os dirigentes mais experientes, que vivenciaram os primeiros anos do socialismo na ilha, e fi guras que surgiram mais tarde, na faixa etária dos 40 e 50 anos. Também foram eleitos 390 novos membros da Assembléia Nacional, metade desses mulheres, e cresceu em 36% a participação do grupo entre 18 e 30 anos.

Talvez o Conselho de Estado ainda seja muito “conservador” para alguns. Mas há motivos para isso. Por um lado, essa escolha se deve à indefinição eleitoral nos EUA, seu vizinho ao norte. A possibilidade de uma vitória republicana preocupa o governo, que vê nas FAR e nos velhos dirigentes maior capacidade de defender o país em caso de uma suposta invasão militar. As Forças Armadas, por isso, começam a se mobilizar novamente e as mulheres a se recadastrar, algo que não faziam há muito tempo. Uma vitória democrata nas eleições norte-americanas seria um aceno alentador para uma possível melhora nas relações entre os dois países. É difícil imaginar que o embargo econômico acabará a curto prazo, em grande medida devido à força política dos dissidentes cubanos anticastristas da Flórida. Mas se poderá deslumbrar uma maior abertura comercial com os democratas no poder. Na prática, hoje em dia os EUA são o maior parceiro agrícola de Cuba, tendo superado, já em 2003, a União Européia nessa questão. Para se ter uma idéia, em 2007, de acordo com estimativas do US-Cuba Trade and Economic Council, os EUA venderam o equivalente a US$ 437 milhões em produtos agrícolas a Cuba (para Havana, o valor dessas transações teria sido ainda maior, em torno de US$ 600 milhões). Entre os itens exportados estão milho, frango, trigo, soja e arroz. Uma delegação comercial agrícola dos EUA esteve em Havana, em fevereiro passado, para conversas sobre possíveis acordos com o país. Uma abertura na relação das duas nações, mesmo que lenta, parece inevitável, mesmo com a continuidade de um embargo, ainda que apenas de fachada. O que se pode constatar é que Cuba se abre para parcerias com investidores estrangeiros, como Venezuela, Espanha, Canadá, Índia, Brasil e China, que penetra com força no mercado da ilha.

A velha guarda também tem um papel importante a cumprir como “fiel da balança” do processo revolucionário. Em outras palavras, essa mistura de militantes antigos e mais jovens possibilita uma transição mais lenta e segura para os caminhos que o próprio Fidel deseja para a ilha. Por isso, não é de estranhar que nomes como Carlos Lage, Ricardo Alarcón e Felipe Pérez Roque, homens muito próximos a Fidel, continuem sendo figuras de destaque.

Ainda é cedo para antecipar o desfecho dos recentes acontecimentos em torno do afastamento de Fidel do poder. Mas o que se pode dizer é que essa transição, que já vem sendo feita com cautela há um bom tempo, tende a garantir a estabilidade política e social de Cuba, preservando o sistema de partido único e abrindo a economia, de maneira controlada, para que o país possa se desenvolver em todos os setores.

Luiz Bernardo Pericás é historiador pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP, fez pós-doutorado em História pela Universidade do Texas e em Ciência Política pela Flacso, no México, onde é professor

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