Mundo do Trabalho

O movimento operário de Contagem (MG) ressurgiu apesar do cenário cinzento da ditadura militar e fez a primeira greve com ocupação de fábrica

 

Passados 40 anos, principais lideranças da greve dos metalúrgicos de Contagem (MG), de abril de 1968, relembram aquele período. Foto: Cristina Ricaldoni

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Não é preciso pensar muito para encontrar diversos significados para o ano de 1968. Repressão, violência, resistência, censura, restrição, são os mais recorrentes de uma longa lista que se forma na parte que cabe à memória política brasileira. E não por acaso. Foi em 1968 que a ditadura, instaurada em 1964 com o Golpe Militar, aprofundou a repressão e deu início aos “anos de chumbo”, o período mais duro do regime das fardas.

O cenário delineado era realmente pesado e cinzento: violenta repressão militar e policial ao movimento estudantil, censura à imprensa, restrição à ação parlamentar e institucionalização da política do terror que cassou direitos civis, prendeu, torturou e exilou milhares de brasileiros que ousaram ter um pensamento dissonante. Foi exatamente nesse ambiente inóspito que ressurgiu o movimento operário, disposto a enfrentar o regime militar e o poder patronal.  Infelizmente, a história dos trabalhadores durante a ditadura é composta de fragmentos esparsos e estudos acadêmicos que, sem a devida profundidade, sugerem uma interpretação distante dos fatos.

A começar pela primeira greve com ocupação de fábrica do período da ditadura militar, relatada como um fato espontâneo e de caráter meramente econômico. Passados 40 anos, o depoimento das principais lideranças da greve, realizada em abril de 1968 pelos metalúrgicos em Contagem, Minas Gerais, contradiz essa versão e mostra que havia uma organicidade no movimento operário e a intenção real de romper com a política econômica recessiva imposta pelos militares.

Após o Golpe Militar, cada uma das forças progressistas e de esquerda postas na clandestinidade – agora subdivididas em “correntes” - produzia uma enxurrada de informação distribuída diariamente nas portas das fábricas e de casa em casa na Cidade Industrial, em Contagem. As correntes e a oposição sindical, organizada após a intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos, ocupavam espaço nas fábricas, igrejas e associações, fazendo um trabalho político a conta-gotas, de forma quase imperceptível, mas intensa.

Maria Imaculada Conceição, operária da Metalúrgica Santo Antônio, estava na ampla frente formada contra o regime. Ela começou sua militância aos 16 anos como ativista sindical, se tornou membro do Partido Comunista e, mais tarde, viria a ser secretária-geral do Sindicato dos Metalúrgicos e uma das principais lideranças da greve de 68. “A gente trabalhava de dia e a noite ia para o cinema escrever os jornais. Às quatro, cinco da manhã a gente distribuía o jornal do Partido e fazia pixação de muro. Depois a gente fazia uma distribuição mais legal, na porta da fábrica, e já entrava para trabalhar”, relembra a rotina dos anos anteriores a greve.

De uma classe social e com uma experiência política bem diferente, Delsy Gonçalves da Paula, mais conhecida como Sisse, era integrante da Ação Popular e, em 1966, por opção pessoal, foi dar aulas de português em Contagem. Mas a rotina era mais ou menos a mesma da jovem operária comunista. “Esse era um trabalho que todas as organizações faziam. A gente trabalhava para ganhar dinheiro e à noite panfletava a Cidade Industrial toda. Íamos de casa em casa colocando o material debaixo da porta. E durante o dia fazíamos reunião com os trabalhadores para poder discutir a sua realidade”, conta Sisse.

Suas turmas eram compostas basicamente de operários de empresas como a RCA Vitor, Belgo, Mannesman e as aulas extrapolavam a disciplina. “Eu era professora de português, mas dava também aula de política, através de textos de jornais e letras de música que escolhia de forma estratégica. Ali a gente trabalhava a consciência política”, relata.

O contexto para construir um movimento operário vigoroso também era favorável, apesar da repressão individual e coletiva. Além da pressão econômica, gerada por uma inflação elevada e nenhuma correção salarial, as condições de trabalho e a perda de direitos eram combustíveis para o movimento.

“Lutávamos pela construção das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e contra o FGTS, porque nós tínhamos a estabilidade para o trabalhador com mais de 10 anos na empresa, o que era muito comum naquele tempo. Não era essa rotatividade como tem hoje. Os patrões falavam que o FGTS era uma opção espontânea, mas na verdade não era. Ou você optava ou perdia o emprego”, conta Imaculada Conceição, operária da Metalúrgica Santo Antônio e ativista sindical, que viria a ser secretária-geral do Sindicato do Metalúrgicos e uma das principais lideranças da greve de 68.

Tudo isso coincidia com a introdução da automação industrial no Brasil, o que criava um caldo cultural propício para a insatisfação. “No começo a própria empresa não tinha experiência e colocava regras super-rigorosas. Como eles não sabiam como lidar com o equipamento, achavam que se um trabalhador parasse, todos tinham que parar. Era proibido até mesmo ir ao banheiro ou beber água, isso causava uma revolta e foi criando uma tensão muito grande entre os trabalhadores”, relata.

Aproveitando o clima favorável para a discussão, correntes como Ação Popular, Polop, Colina, Corrente Revolucionária, assim como o Partido Comunista e o próprio Sindicato dos Metalúrgicos, criaram pequenas células nas fábricas. Praticamente todas possuíam trabalhadores organizados em comissões.

“As linhas de trabalho político eram completamente diferentes. Tinham pessoas que achavam que era preciso fazer só trabalho de base, outros faziam o trabalho de base para se vincular a uma coisa mais avançada lá na frente. Mas uma coisa unificava: aquelas reivindicações eram comuns. Todo mundo estava contra a lei do arrocho, todo mundo estava contra o FGTS e acreditavam na importância das Cipas. Todo mundo era contra a ditadura. Aí não tinha divergência”, conta Imaculada Conceição.

João Anunciato Reis, o Canela, era metalúrgico da SBE e passou a fazer parte da comissão de fábrica formada pela oposição sindical. “A idéia era ter células do sindicato dentro da empresa, e eu ajudei a fazer isso”. O que o levou para a militância foi a luta contra o arrocho salarial, mas Canela se tornou um militante importante e referência para os trabalhadores. “Barriga vazia é tambor de revolução e o que arrocha mais é a barriga dos filhos”, ensina.

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Abril vermelho

Era 16 de abril de 1968 quando a primeira greve com ocupação de fábrica eclodiu na Cidade Industrial, e se transformou em marco histórico para o movimento operário pela resistência à política econômica do regime militar. O trabalho subjetivo das organizações clandestinas e da oposição sindical realizado nos quatro anos anteriores se materializou na luta objetiva contra o arrocho salarial.

A greve começou com os 1.2000 trabalhadores da Belgo Mineira tendo como reivindicações principais o reajuste de 25% nos salários e melhoria nas condições de trabalho. Uma comissão foi criada para negociar com a diretoria da empresa, mas a contraproposta feita pelos patrões, 10% de aumento, foi considerada insuficiente e o movimento se espalhou rapidamente pelo parque industrial através das comissões de fábrica, onde os trabalhadores, já organizados, entenderam exatamente o que deveriam fazer.

No dia seguinte a Delegacia Regional do Trabalho decretou a ilegalidade da greve e surgiram rumores de uma possível invasão policial da fábrica ocupada pelos trabalhadores. Mas isso não enfraqueceu o movimento, que ganhou a adesão de duas empresas importantes, a Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE) e a Mannesmann. Nesse momento já eram 6 mil trabalhadores em greve.

A falta de perspectivas de um acordo, a firmeza dos operários e, principalmente, o crescimento da greve fizeram com que o governo federal se movimentasse: o ministro-coronel Jarbas Passarinho conclamou os trabalhadores a retomarem as atividades sob a argumentação de que não se tratava “de um movimento justificado, legal ou tolerável, mas de uma pura e simples agitação” e ameaçou com a intervenção do Sindicato dos Metalúrgicos e Bancários, que também acolheu os grevistas.

Contudo, o pronunciamento teve um efeito contrário ao esperado e a paralisação cresceu atingindo outras empresas. O ministro decidiu, então, conversar pessoalmente com os operários e, numa cena histórica, se dirigiu para a assembléia geral no Sindicato dos Metalúrgicos.

“Quando chegou ao sindicato, ele pensou que ia se sair muito bem no debate com os trabalhadores. Quando ele falava que o salário não era tão baixo assim e que essa história de arrocho era coisa de agitador, de subversivo, os operários falavam o preço do produto anotado na caderneta e mostravam que o salário não dava para pagar a comida. Ele chegou a pedir um quadro negro em que ele, meio afobado, tentava fazer as contas. Quanto mais ele tentava explicar, mais complicado ficava. Aí ele se desesperou e resolveu ir embora”, conta Imaculada Conceição, então secretária-geral do Sindicato dos Metalúrgicos.

Mas antes de se retirar, Passarinho perdeu a compostura, bem como a atitude negociadora, e elevou o tom da conversa: “se as condições se agravarem, passando para a provocação e o desafio, vai haver luta e perderá quem tiver menos força, embora não queiramos fabricar nem nos transformarmos em cadáveres porque há muita gente interessada em transformar operários em carga de canhão, iniciando uma contra-revolução que saberemos enfrentar com as mesmas armas”.

De forma surpreendente, no dia seguinte à assembléia, os trabalhadores de mais quatro empresas – Acesita, RCA-Vitor, Demisa e Industam – cruzaram os braços. O governo decidiu lançar uma proposta de reajuste para os metalúrgicos: os mesmos 10% de reajuste acompanhado de um ultimato –, a recusa significa uma declaração de guerra”. Era a primeira vitória dos trabalhadores brasileiros diante de um arrocho salarial sem precedentes e, pressionado, o Sindicato dos Metalúrgicos decide encaminhar a proposta à assembléia com a indicação de aceitação.

Mas os trabalhadores surpreenderam mais uma vez e rejeitam a proposta, intensificando o movimento com a entrada de mais 10 empresas na greve, dentre elas a Mafersa, Polig-Heckel e Cimec. Já eram 16 mil grevistas dentre os 21 mil trabalhadores da Cidade Industrial.

Em cadeia nacional de rádio e TV, Jarbas Passarinho declarou “o início da guerra” contra os operários mineiros. A Cidade Industrial foi tomada por 1.500 policiais, o sindicato fechado e aproximadamente 20 lideranças presas. Foram proibidas assembléias, aglomerações operárias, panfletagens e as empresas começaram a convocar os trabalhadores sob ameaça de demissão por justa causa.

Com a greve esvaziada pela repressão, os metalúrgicos voltaram ao trabalho contrariados, mas conquistando um reajuste de 10% e com a certeza de que haviam aberto uma fissura no modelo econômico da ditadura militar. Dias depois, às vésperas do 1° de Maio,  o presidente de turno, o general Arthur da Costa e Silva, anunciou a extensão do reajuste de 10% para todos os trabalhadores brasileiros.

Para os líderes dos operários de Contagem, a greve de 68 não poder ser vista como uma simples reação a um ambiente hostil. A dificuldade econômica e o clima de pressão já existiam há algum tempo e não tinham produzido um movimento vigoroso e com a força da greve dos metalúrgicos mineiros. O mais correto seria tomá-la como uma ação coletiva movida por dois aspectos centrais - a opressão e exploração da classe trabalhadora e a intensa ação política dos grupos de esquerda.

“Dizer que a greve foi espontânea é um erro. Existia toda a problemática dos trabalhadores e, por outro lado, a conjuntura política pós 64. Havia um movimento operário em ascensão que foi cortado, mas as lideranças continuavam lá. Ninguém pode afirmar, nem eu mesma, que o dia e a hora da greve não tenham sido marcados por alguma corrente. Eu creio que não, mas todos já trabalhavam para eclodir o movimento grevista”, analisa Imaculada Conceição.

Ênio Seabra, presidente eleito do Sindicato dos Metalúrgicos destituído pelo Ministério do Trabalho e uma das principais lideranças da greve, também não comunga a tese de uma greve espontânea. “Dizer que o pessoal estava despreparado não é verdade. Os metalúrgicos tinham uma tradição de luta. Além disso, muitos trabalhadores dentro do movimento metalúrgico já eram militantes do partido comunista há muitos anos. Esses tinham uma posição política bem avançada, assim como as pessoas vinculadas à Polop. Eu participa da AP e existia um intercâmbio grande desses vários grupos. Também havia muito contato entre os operários das diversas fábricas porque todo mundo morava por ali. Dava para difundir a luta”, relata

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A retomada do Sindicato dos Metalúrgicos

O Golpe Militar que derrubou o governo constitucional de Jango Goulart, chamado de “república sindicalista”, atacou a base onde se construiu o trabalhismo: os sindicatos. Entre as primeiras medidas, estava a intervenção direta nas entidades, a substituição de lideranças e a perseguição de quadros. Os sindicatos assumiram uma nova função, passaram a ser parceiros do Estado.

No Sindicato dos Metalúrgicos de Contagem e Belo Horizonte a primeira reação veio de uma nova geração de militantes, que ao lado das poucas lideranças que restaram após o Golpe, organizaram a oposição sindical e passaram a trabalhar como um sindicato paralelo durante os primeiros anos da ditadura.

Somente em meados de 1967 a oposição sindical venceu a eleição e assumiu novamente a direção do Sindicato. Dirigida por Ênio Seabra, a chapa defendia um programa bastante avançado para a época: expulsão dos pelegos, oposição à política de arrocho salarial do governo e ao fim da estabilidade no emprego, dentre outras medidas impostas pelo regime militar aos trabalhadores.

Ênio Seabra, que já tinha sofrido a impugnação do seu nome pelo Ministério do Trabalho durante o processo eleitoral, reverteu a situação e ganhou a eleição, mas foi impedido de tomar posse por uma intervenção do Ministério. Antônio Santana é quem o substitui, mas as principais referências dos trabalhadores no sindicato passaram a ser Imaculada Conceição, Joaquim de Oliveira, Luiz Fernando, que formavam um núcleo mais atuante, com presença constante nas portarias das fábricas.

“Eu estava com 20 anos e pra gente tudo aquilo era muito novo porque nossa experiência era de trabalhador, era dentro da fábrica. Mas nós queríamos fazer um sindicato atuante, então logo criamos o jornal O Metalúrgico e intensificamos o trabalho na porta das fábricas”, conta Imaculada Conceição, relembrando que o grupo logo foi taxado de subversivo por reivindicar a criação das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipa).

Como membro da diretoria do Sindicato, era ela quem facilitava a ação das correntes nas fábricas. Após fazer o trabalho “legal”, que era conversar com os operários em nome do sindicato, Imaculada percorria as empresas levando recados das correntes para os trabalhadores organizados nas comissões de fábrica. “O pessoal não podia chegar sem chamar a atenção. Muitos estavam sendo seguidos pela Polícia Federal, pelo SNI, pelo Dops, pela Polícia Civil. E pra mim ficava mais fácil. Quando era abordada, eu dizia que era da diretoria do sindicato e que estava ali para conversar com os trabalhadores, assim eu passava todos os recados”.

Foi esse mesmo grupo que atuou ativamente na greve iniciada na Belgo Mineira. “Quando eu cheguei no sindicato fiquei sabendo que tinha começado a greve. Fomos para lá e encontramos a fábrica toda parada. A Belgo já tinha um trabalho político muito bem organizado e menos repressão interna, não foi à toa que começou por lá. Montamos uma comissão para negociar com a empresa, que parecia espontânea, mas não era tanto assim. Muitos já trabalhavam com a gente, eram lideranças. Chegamos a conclusão de que só eu – que era do sindicato – seria permanente na comissão para evitar as demissões”, diz.

Ênio Seabra, que havia sido destituído pela ditadura da presidência do Sindicato, foi eleito em assembléia como presidente do Comando de Greve Unificado, retomando por outro caminho a liderança dos metalúrgicos de Contagem. Para ele, a confiança dos trabalhadores foi um reflexo do trabalho desenvolvido nos anos anteriores. “Muito antes do regime já existia bastante luta dentro do sindicato e nas fábricas por reivindicação salarial, por melhoria nas condições de trabalho. A gente começou em 57 e a ditadura veio em 64. A gente não estava esperando, mas já sabia que haveria um embate”, conta.

O fato é que o carisma aliado à perseguição política transformou Ênio Seabra num mito para os trabalhadores. Seu discurso e sua história de militância geravam uma enorme confiança nos operários, que seguiam a orientação política defendida pelo líder.  Alguns episódios revelam que a sua presença foi decisiva para a manutenção da greve por longos 15 dias.

Durante esse período, o Sindicato dos Metalúrgicos se transformou em base dos trabalhadores e Ênio Seabra voltou pela porta da frente. Mas a diretoria do sindicato não tinha a unidade necessária para sustentar um movimento tão forte e passou a ter uma posição ambígua a partir do ultimato no ministro-coronel Jarbas Passarinho. Ao mesmo tempo em que era forçado por parte dos diretores e militantes a tomar uma posição de vanguarda, publicamente assumia uma posição mais legalista, absorvendo o discurso dos militares sobre a ilegalidade da greve.

“Naquela época o sindicato era um pouco complicado porque na própria diretoria tinha opiniões muito divergentes e até mesmo pessoas que a gente supunha que não eram da luta. A gente fazia as reuniões, mas muita coisa não era tratada ali. Cada grupo da diretoria fazia sua articulação de trabalho depois. Mas acho que tudo que fizemos teve muito valor. Pelo menos não ficamos na escuridão aguardando as coisas acontecerem Já que chegou uma ditadura, não tinha outro caminho, tinha que participar. Só as conseqüências é que são difíceis... mas aí é uma opção”, analisa.

Andréa Castello Branco é jornalista

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