Sociedade

Autor de corajosas denúncias em defesa dos perseguidos, dom Hélder Câmara é considerado uma das grandes personalidades do século passado

Solidário, parceiro atencioso, autor de corajosas denúncias e ações em defesa dos perseguidos, dom Hélder Câmara, um nordestino com olhos voltados para o Brasil, é considerado uma das maiores personalidades do século passado

Recém-nomeado pelo seu amigo, o bondoso papa Paulo VI, dom Hélder Câmara chegou para assumir seu lugar como 30º bispo e 6º arcebispo de Olinda e Recife no dia 12 de abril de 1964, um sábado de muita chuva. Eu tinha, então, 20 anos. Espremido em meio à multidão que foi recepcioná-lo na Matriz de Santo Antônio, saboreei cada palavra do corajoso discurso proferido por aquele cearense baixinho, magrinho, orelhudo, sorridente, grande orador, que emoldurava seus pensamentos com largos gestos dos braços e das mãos. Em sua mensagem, disse ele que era um nordestino falando a nordestinos com os olhos postos no Brasil, na América e no mundo. Um cristão dirigindo-se a cristãos, mas de coração aberto, ecumenicamente, para os homens de todos os credos e de todas as ideologias. Um bispo da Igreja Católica que, à imitação de Cristo, não vem para ser servido, mas para servir. Finda a cerimônia, voltei para casa, em Olinda, levando comigo duas certezas. A primeira era que teríamos no novo arcebispo um aliado na luta pela volta do Estado Democrático de Direito, derrubado havia onze dias. A segunda era que essa luta seria de curta duração.

Os moços são, por natureza, otimistas e idealistas.

Errei as duas previsões.

A ditadura se estenderia por duas décadas, ao longo das quais causaria tremendos danos políticos, sociais, éticos e culturais ao país, cujas profundas cicatrizes até hoje carregamos. E dom Hélder Câmara se transformaria não apenas em um aliado contra o regime militar ­ que aqui implantou o arbítrio e a violência institucional ­, mas, talvez, seu principal opositor. Mais do que isso, tornou-se o Profeta da Utopia, o Pastor da Liberdade, uma das maiores personalidades brasileiras do século passado, várias vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz. O dom do Amor e da Justiça Social. O confidente, o parceiro atencioso, o autor de corajosas denúncias e ações em defesa dos perseguidos. Solidário bem de perto, por exemplo, entre muitos outros casos, ao drama vivido por minha mãe, Elzita Santa Cruz, que viu ser presos, exilados, perseguidos e sequestrados seus filhos e filhas, e um deles, Fernando Santa Cruz, desaparecer para sempre.

Eu mesmo viria a utilizar um manifesto de autoria dele, em minha defesa, em um dos inquéritos a que respondi na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. O processo se fundamentava no Decreto-Lei nº 477/69, o famigerado "477" que permitia o afastamento , dos estudantes de seu curso, além de proibi-los de se matricular em qualquer universidade do país durante três anos (ao final, eu seria condenado). No manifesto, ele se posicionava contra essa punição "antipsicológica e revoltante" afirmando que feria em , cheio a Declaração Universal de Direitos Humanos; teria efeito retroativo em matéria penal; era incompreensível, sobretudo em um país em que apenas se achava nas universidades 1% daqueles que ali teriam direitos de encontrar-se; anulava a autonomia universitária, obrigando os professores a trocar a autoridade paterna por uma atitude policial; e golpeava vidas adolescentes, marginalizando os punidos ou impelindo-os para os descaminhos da radicalização e da violência.

Hoje, parece pouco, mas era preciso muita coragem para erguer a voz dessa maneira contra os donos do poder no Brasil, em 1969.

Hélder Pessoa Câmara foi o décimo primeiro rebento de João Eduardo Torres Câmara Filho, guarda-livros, e de Adelaide, professora primária. Dos treze filhos do casal, apenas sete "se criaram" sendo que quatro deles, justamente os mais novos, se foram, um a um, durante uma epidemia de crupe, em 1905. Quando ele nasceu, em 1909, o repertório de nomes prediletos dos pais já fora utilizado nos filhos anteriores. Seu João foi, então, até a estante da sala, tomou um velho atlas geográfico e começou a folheá-lo, até deparar com um ponto no norte da Holanda chamado Den Helder, que caiu no seu agrado. E para dissuadir Adelaide, que pretendia batizar o recém-nascido de José, argumentou que assim já haviam chamado um dos meninos que morrera, e isso poderia trazer má sorte...

Desde bem novo, Hélder manifestava o desejo de ser padre, e de tanto ouvi-lo falar a respeito o pai um dia o chamou para uma conversa. Ele teria entre 8 e 9 anos de idade. "Você sabe de verdade o que significa ser padre?" , seu João perguntou. "Uma pessoa que quer ser padre não pode ser egoísta, não pode pensar só em si mesma. Além disso, os padres acreditam que quando se celebra a eucaristia o próprio Cristo está presente. Você já pensou nas qualidades que devem ter as mãos que tocam diretamente o Salvador?" O pequeno, então, respondeu: "Se ser padre é como o senhor está dizendo, é isso que eu quero ser". E tanto fez que se ordenou sacerdote em 1931, com 22 anos, dois a menos do que exigia o Direito Canônico, o que somente foi possível mediante autorização especial do Vaticano.

Dois gestos feitos por ele, ao assumir a Arquidiocese de Olinda e Recife, são bons indicadores de sua personalidade e da linha que imprimiria a sua ação pastoral: mudou-se do Palácio dos Manguinhos para um humilde alojamento nos fundos da Igreja das Fronteiras e dispensou o carro com motorista. Sua luta permanente pelos Direitos Humanos, contra as torturas, os assassinatos e os desaparecimentos de cidadãs e cidadãos brasileiros, começava a repercutir cada vez mais no exterior. Mais lá do que aqui, posto que, sob censura, os meios de comunicação estavam proibidos de falar no seu nome ­ a não ser para criticá-lo.

Pernambuco e o Brasil viviam um clima de efervescência política, principalmente no meio estudantil. Era a época das grandes manifestações, como a Passeata dos 100 Mil, no Rio de Janeiro, e a Passeata dos 25 Mil, no Recife. No Rio tombava o estudante Edson Luiz. E aqui, no dia 28 de abril de 1969, ocorria o atentado a Cândido Pinto de Melo, estudante de engenharia e presidente da União dos Estudantes de Pernambuco, perpetrado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Cândido não morreu, mas as balas que levou o deixariam paraplégico.

No dia seguinte, um grupo de estudantes, no qual eu me incluía, fomos procurar o arcebispo. Queríamos lhe comunicar o ocorrido e pedir apoio para preservar a vida de nosso líder. Dom Hélder, como era de seu perfil, nos ouviu pacientemente, disse que poderíamos contar com sua solidariedade e ­ para nossa surpresa ­ adiantou que já tomara conhecimento do atentado e, desde o dia anterior, não havia parado de contatar autoridades exigindo providências. Já acertara até mesmo uma visita ao próprio Cândido, por meio de pessoas de seu círculo de amizades!

Com sua segurança, porém, não se preocupava. Sua humilde residência foi metralhada mais de uma vez. E no dia 27 de maio daquele mesmo ano sofreria o mais duro golpe de sua vida de pastor: o assassinato, com requintes de barbaridade, do padre Antônio Henrique Pereira Neto, seu auxiliar direto e responsável pela Pastoral da Juventude ­ um jovem de apenas 29 anos, queridíssimo da garotada do Recife. Mas essa ação brutal, que chocou Pernambuco inteiro, não o intimidou. Ao contrário, fez com que sua luta recrudescesse. E, se seu nome não saía na imprensa local, lá fora era cada vez mais conceituado e respeitado.

Em 1970, grupos de parlamentares da Holanda, Suécia, França e Irlanda, além de René Cassin, premiado com o Nobel da Paz em 1968, propuseram a candidatura de dom Hélder ao Prêmio, apoiado por 5 milhões de assinaturas de trabalhadores, recolhidas pela Confederação Latino-Americana Sindical Cristã. Para os parlamentares irlandeses, "atribuir a dom Hélder o Nobel da Paz seria uma manifestação valiosa de solidariedade humana numa situação dominada pelo terrorismo e pela opressão" Os suecos argumentaram que dom Hélder, "além de importante protagonista da não violência, exerce uma posição de liderança dentro da Igreja, ao mesmo tempo em que atua de maneira importante na luta pela obtenção de reformas sociais" E destacaram seu papel no Concílio Vaticano II e em várias conferências internacionais. O próprio consultor do Comitê Nobel, Jakob Sverdrup, manifestou-se favoravelmente, pois o Prêmio "simbolizaria a luta para a melhoria das condições de vida por meios pacíficos" Não obstante todos esses pareceres, o Nobel da Paz de 1970 foi surpreendentemente atribuído ao norte-americano Norman Borlang, especialista em fisiologia das plantas, que realizara pesquisas sobre cereais para o Instituto Rockefeller do México...

O fato é que, enquanto os apoiadores da candidatura de dom Hélder se moviam aberta e publicamente, nos bastidores, à socapa, também corria uma sórdida campanha coordenada pela Embaixada brasileira em Oslo, atendendo às determinações do governo do general Emílio Garrastazu Médici ­ tão eficiente que conseguiu inviabilizar a propositura. A existência dessa trama seria denunciada mais tarde pela rede de televisão norueguesa Norwegian Broadcasting (NRK TV) e comprovada com documentos.

A ação se deu em duas frentes: uma delas trabalhava para que os membros do Comitê Nobel votassem contra a premiação; e a outra, por meio de alguns jornais noruegueses, tentava criar uma corrente de opinião que legitimasse a rejeição do nome do arcebispo. Um dos artigos contra ele, por exemplo, assinado pelo jornalista Arild Lillebo, foi publicado no Morgenposten; e também no Brasil por O Estado de S. Paulo, em 18 de outubro de 1970, com o título "Prêmio Nobel à violência" Segundo o autor dessa peça . difamatória, dom Hélder Câmara teria sido um "camisa verde" na década de 30 ­ fascista, seguidor de Hitler e Mussolini no Brasil­, mas depois se orientara no sentido oposto e muita gente o considerava, então, comunista. Ele teria se transformado num admirador de Fidel Castro e adotado Ernesto Che Guevara e Camillo Torres como modelos... Essas acusações hoje nos soam ridículas, mas naqueles tempos conturbados do Vietnã, da Guerra Fria, e mal esfriadas as cinzas do Maio de 68, foram suficientes para empanar uma parte do brilho da candidatura.

A NRK TV também denunciou a atuação do sueco Tore Munch, que teria conseguido persuadir alguns dos cinco membros do Comitê Nobel a votar contra. Esse Munch era amigo pessoal de pelo menos dois deles: Sjur Lindebraekke, na época o maior banqueiro da Suécia, presidente do Privat Bank de Bergen; e de Bernt Ingvaldsen, presidente do Parlamento norueguês e vice-presidente do mesmo Comitê.

Insatisfeitos, os partidários da candidatura de dom Hélder a ratificariam nos três anos seguintes, e a imprensa sempre lhe dava destaque. Em 1973 era de novo apontada como a virtual vencedora. No dia 17 de outubro, porém, quando se preparava para rezar a primeira missa do dia, às 6 da manhã, na Igreja das Fronteiras, o dom recebeu por telefone a notícia de que o Nobel da Paz daquele ano fora atribuído ao norte-americano Henry Kissinger e ao vietnamita Le Duc Tho, a dupla que negociara o fim da Guerra do Vietnã.

Para ele, pessoalmente, essas derrotas nada significaram. Lamentou-as, é claro, pois as causas que defendia teriam ganhado muito com a vitória, mas jamais se deixou abater.

Em dezembro daquele mesmo 1973, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos completava 25 anos ­ e, na contramão, o Ato Institucional n° 5 fazia seu quarto aniversário, no Brasil­, ele estava em Houston, nos Estados Unidos, e assim se pronunciou, numa palestra: "Quando se lê e relê essa Declaração, que é uma síntese dos mais altos e mais puros anseios da pessoa humana, verifica-se que todos esses direitos estão longe de se transformar em realidade (...). Ou esta Declaração é desprezada e vista como um papel a mais, entre tantas outras letras mortas, ou vira carne de nossa carne, sangue de nosso sangue, pedaço de nossa alma. Não temos o direito de simplesmente armar discussões amáveis sobre assuntos tão graves, para depois dar tudo em nada".

Em nosso país, entre inumeráveis outras iniciativas, ele teve destacada atuação na fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na organização da Campanha da Fraternidade, no Movimento Ano 2000 sem Miséria, que inspirou os comitês e a bela e humanitária campanha do Betinho ­ Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria pela Vida. Várias entidades não-governamentais também foram criadas e até hoje trabalham sob inspiração dele, como o Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), o Instituto Dom Hélder Câmara (Idhec), o Serviço Comunitário Justiça e Paz, o Mulheres contra o Desemprego, a Igreja Nova, a Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e o Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC). Por seu trabalho, sua dedicação, seu amor ao próximo e à Justiça, dom Hélder Pessoa Câmara tornou-se um ícone da Paz, da Esperança e da Cidadania não apenas em seu país, mas em todo o mundo. Plantou uma valiosa semente dos Direitos Humanos que germinou, tornou-se árvore frondosa e continua dando bons frutos.

Marcelo Santa Cruz é advogado, vereador em Olinda (PT-PE) e coordenador adjunto do Cendhec