Economia

A Grande Depressão trouxe lições esquecidas no século passado e a crise volta a assombrar

A Grande Depressão mostrou ações necessárias, como a regulação do sistema financeiro, que no milênio seguinte foram deixadas de lado e acabaram por reproduzir de forma assustadora eventos idênticos aos do passado

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Poucos fenômenos marcaram tanto a memória popular, em praticamente todo o mundo, quanto a Grande Depressão dos anos 30, no século passado. As economias mais avançadas do mundo viram o desemprego chegar a inacreditáveis 25% da força de trabalho (o que não inclui aqueles trabalhadores que, desencorajados pela inutilidade do esforço, simplesmente desistiram de procurar emprego), a produção nacional cair dramaticamente, o desaparecimento de empresas, o aguçamento dos conflitos internacionais, a perseguição a imigrantes se tornar um movimento político e, finalmente, a ascensão de regimes políticos de força, entre os quais, certamente, o mais sinistro e selvagem foi o nazismo alemão.

As economias mais avançadas estavam, em sua maioria, já em situação crítica pela herança deixada pela Primeira Guerra Mundial. Paradoxalmente, porém, o empurrão para o salto no abismo veio da economia que mais teve a ganhar com aquele conflito, a americana. Os Estados Unidos dele saíram como o grande supridor e financiador da economia internacional, o mais provável candidato a ocupar o trono deixado vago pela decadência da Inglaterra como país hegemônico.

Depois de pelo menos meia década de euforia econômica, na segunda metade dos anos 20 a economia americana entrou em colapso, abrindo um período de crise profunda, da qual só sairia com o grande estímulo representado pela Segunda Guerra Mundial.

A crise americana começou em 1929, com o crash da Bolsa de Nova York, continuou com a crise bancária de 1930 a 1932, quando os setores produtivos foram finalmente atingidos e todo o sistema econômico rodou vertiginosamente ladeira abaixo. O diagnóstico oferecido à época para explicar como algo tão terrível pôde acontecer com uma economia tão próspera, como tantas máquinas puderam ficar paradas, tantos trabalhadores ociosos, apontava diretamente para o mau funcionamento do sistema financeiro, que nos anos imediatamente anteriores à crise tinha promovido uma verdadeira orgia de inchaço de mercados de papéis, crescimento do endividamento de famílias e empresas, manipulação de mercados e de poupadores etc. Todos esses desequilíbrios convergiram para criar a mais violenta crise econômica jamais vivida no capitalismo moderno.

Assim, se era urgente tomar medidas que contribuíssem para o fim da crise e a recuperação da economia, impunha-se também reformar o sistema financeiro de modo a impedir que catástrofe semelhante voltasse a ocorrer no futuro. Uma peça fundamental dessa reforma foi a criação de um conjunto de regras de operação para limitar a ação das instituições financeiras, conter seus efeitos mais nefastos, bem como de instituições que servissem para policiar sua ação, a fim de garantir o cumprimento dessas regras. Regulação financeira refere-se a esse conjunto de regras, enquanto supervisão financeira é a função de monitoração dos mercados para verificar a obediência à regulação.

Nessa época, na verdade, formulou-se uma doutrina de regulação, conhecida como regulação prudencial, parte essencial da estratégia de defesa da estabilidade do sistema econômico contra a ocorrência de crises catastróficas. Parte-se de uma hipótese relativamente simples: a operação de um sistema financeiro é fundamental para o funcionamento de uma economia capitalista moderna. Empresas precisam de crédito para financiar a compra de matérias-primas e pagar o salário dos trabalhadores que contrata. Ainda mais, empresas precisam captar recursos para financiar seus investimentos. Consumidores também precisam de acesso a crédito para comprar bens de consumo duráveis, cujo valor é alto demais em relação a sua renda. Entre esses bens, o mais importante deles, de longe, tão caro e tão importante que normalmente nem é considerado bem de consumo, são as casas onde moram. Sem crédito, praticamente só os muito ricos poderiam adquirir residências.

O sistema financeiro é essencial, ainda, por uma razão nem sempre muito visível, que se refere ao chamado sistema de pagamentos. Para perceber a importância do que estamos falando, basta parar para pensar alguns segundos: com que eu pago minhas despesas? Ao contrário do que seria, talvez, intuitivo, não pagamos despesas com o papel-moeda que carregamos na carteira, senão nos casos daqueles gastos de pequeno valor, como o cafezinho, o jornal, a passagem de ônibus. Praticamente todo o resto é pago com cheques, que nada mais são do que ordens de pagamento a serem executadas com o que temos no banco, sob a forma de conta corrente. Se os bancos fecharem, a economia sofre os efeitos da paralisação de todo o comércio, já que fica impossível passar cheques se os depósitos que temos não puderem ser usados.

Isso é o que os mais velhos de nós aprenderam com o Plano Collor, quando fomos impedidos de usar os depósitos, não podíamos fazer pagamentos nem receber nada ­ e a economia encolheu por causa disso. Mais recentemente, quando os bancos argentinos fecharam durante a crise de 2002, o produto nacional caiu quase 15%, pela mesma razão.

O sistema financeiro é importante como ofertante de crédito e como administrador das contas correntes, mas é também a maior fonte de riscos para a operação de economias capitalistas. Instituições financeiras têm interesse, naturalmente, em estimular o endividamento de famílias e empresas, porque os empréstimos que fazem são remunerados pelas taxas de juros. Mas têm interesse também em criar bolhas, isto é, fazer crescer o valor dos ativos financeiros porque isso excita as pessoas, induzindo-as a tomar mais e mais emprestado, pagar mais e mais juros, e aumentar mais e mais seus lucros.

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Na verdade, as próprias instituições produzem muitos dos ativos que venderão a preços crescentes a compradores excitados pela expectativa de ganhos descomunais, em geral ignorantes dos riscos a que estão se expondo. Assim, ganham pela receita dos papéis que criam, pelos juros que cobram pelos empréstimos que permitem ao público comprar esses papéis e pelas comissões que ganham na corretagem desses mesmos ativos. Além disso, a experiência mostra que, para o público, a atração por esses negócios é irresistível, e o desprezo ou a ignorância sobre os riscos que caracterizam esses "investimentos" tendem a crescer enquanto não se experimenta uma perda mais significativa. É como nas corridas de cavalos ou no jogo de pôquer.

O que se aprendeu com a crise que levou à Grande Depressão foi precisamente que sistemas financeiros eficazes são necessários para o bom funcionamento da economia, mas, deixados a si mesmos, são a mais perigosa ameaça à estabilidade sistêmica da economia.

Em razão desse entendimento, formulou-se uma estratégia de controle do sistema financeiro definida por alguns princípios básicos.

Primeiro, a separação entre os segmentos do mercado, de modo a evitar que, em caso de problemas localizados, as dificuldades contagiassem outros segmentos. Por exemplo, a crise da Bolsa em 1929 não teria atingido também o sistema bancário comercial (isto é, a captação de depósitos e a concessão de empréstimos) se as atividades fossem exercidas por instituições diferentes.

Segundo, a imposição de regras para o mercado de capitais que evitassem o conflito de interesses (por exemplo, uma corretora que representa compradores de ações, mas também presta serviços às empresas que emitem essas ações e tem interesse em enganar o investidor para favorecer às firmas suas clientes).

Terceiro, o controle estrito do que era permitido aos bancos, a principal das fontes de crédito e onde estão as contas correntes que usamos para fazer nossos pagamentos. Bancos não podiam se envolver em negócio algum nem se expor a nenhum risco que quisessem porque seus serviços são essenciais para a sociedade como um todo.

Quarto, instituições específicas de supervisão financeira foram criadas, para os mercados de capitais, para os bancos, para as seguradoras etc., de modo a garantir que as regras fossem respeitadas.

Finalmente, quinto, uma rede de segurança era criada para o caso de uma crise acontecer, mesmo com todas essas precauções. O Banco Central serviria para dar apoio aos bancos que estivessem sofrendo retiradas em massa de depósitos e seriam criados seguros de depósitos para garantir aos correntistas que suas contas sobreviveriam mesmo se o banco em que estivessem sofresse algum tipo de intervenção.

Esse conjunto de medidas foi adotado originalmente nos Estados Unidos, na primeira metade dos anos 30, e depois copiado e adaptado a condições e à legislação locais, no mínimo parcialmente, em todas as economias capitalistas do mundo, incluindo o Brasil. Sua aplicação garantiu que nos países avançados, por quase cinquenta anos, não se conhecessem crises financeiras, nem mesmo de pequeno impacto, e muito menos que se passasse por outra depressão.

O sucesso, porém, gerou complacência no mundo político e permitiu a instituições financeiras, bancos em particular, pressionar pela recuperação de sua liberdade. As crises pareciam ser coisa do passado. Com o tempo, e o obscurecimento da memória, mesmo a crise de 30 foi parecendo menos e menos grave e seus remédios resultado da precipitação ou mesmo da histeria de intervencionistas que não confiavam no capitalismo. Os interesses dos mercados financeiros encontraram no pensamento político neoliberal o veículo perfeito para sua promoção. Sua vanguarda, representada nos Estados Unidos por Ronald Reagan e na Inglaterra por Margaret Thatcher, passou a propor um movimento de redução da participação do Estado na economia, da qual um elemento essencial era o que se chamou de desregulação, ou seja, o encolhimento do poder do Estado para ditar regras de comportamento a empresas privadas.

Um dos setores-alvo mais importantes desse movimento foi o sistema financeiro. As barreiras que separavam segmentos foram gradualmente erodidas nos Estados Unidos e, por fim, em dezembro de 1999, eliminadas. A liberdade de ação de bancos e outras  instituições financeiras aumentou, e muito, enquanto os supervisores se tornavam cada vez mais lenientes com relação àquelas instituições que se notabilizavam por adotar modelos estatísticos mais sofisticados de mensuração e administração de riscos. Novos instrumentos e novos mercados foram sendo criados, como os de derivativos, sem que se fizesse grande esforço para enquadrá-los em alguma forma de regulação ou que se definissem supervisores com a responsabilidade de monitorá-los.

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O resultado só surpreende quem ignora completamente a história do capitalismo dos últimos cem anos. Na verdade, os anos 90 e, em especial, a primeira década do milênio reproduzem o que ocorreu na década de 20 de forma quase assustadora. Manipulação de mercado, excesso de endividamento, exposição a riscos mal conhecidos e mal administrados, excitação do público com bolhas insustentáveis, como as de imóveis, de ações etc., tudo isso é déjà vu. Até mesmo a atitude das autoridades, em países como Estados Unidos ou Inglaterra, é uma repetição, farsesca talvez, do já vivido. Bush Jr. pareceu uma reedição mal escrita de Calvin Coolidge, sob cuja Presidência muito das bolhas dos anos 20 teve origem. O conservadorismo inglês daquela época certamente teria atraído os novos trabalhistas de Tony Blair.

A crise atual segue os movimentos da Grande Depressão, que se iniciou com um choque relativamente menor (nos anos 20, a crise da Bolsa; agora, o crescimento da inadimplência das hipotecas subprime), transformou-se numa crise bancária e, daí, atingiu forte e duravelmente o setor real da economia, gerando desemprego e redução da atividade produtiva. Sua raiz é a mesma de então: o excessivo endividamento (que no jargão econômico é referido como alavancagem) alimentou a operação de mercados cada vez mais especulativos até que a bolha estourou ­ e aqueles apostadores (mais do que investidores) se viram incapazes de pagar o que tomaram emprestado para comprar ativos que, na realidade, nada valiam. O crescimento descontrolado do endividamento, por sua vez, é resultado do movimento de desregulação (ou liberalização) financeira iniciado nos anos 80 do século passado.

As lições desta crise, infelizmente, parecem ser as mesmas de setenta anos atrás. Infelizmente porque a crise de hoje parece sugerir que nada se aprende com a experiência. A liberalização financeira não foi o resultado apenas da pressão de banqueiros querendo aumentar seus lucros, mas também de movimentos políticos que tiveram apoio suficiente da população para se tornar governos. Certamente, apesar dos esforços dos mesmos banqueiros em contrário, sairemos desta crise com um novo movimento de regulação. Quanto tempo, no entanto, se passará antes da próxima onda de pensamento liberal?

Fernando Cardim é economista, professor do Instituto de Economia da UFRJ

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