Política

O estrondoso sucesso popular do governo é resultado de sua política social e dos 30 anos de presença carismática de Lula na política nacional

O estrondoso sucesso popular em que se converteu o segundo mandato de Lula é o fator-chave que indicaria, hoje, a considerável possibilidade de a faixa presidencial passar à ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Mas o fenômeno não é mero reflexo dos indicadores econômicos porque nele estão compactados elementos diferentes, como a política social adotada desde 2003 e a presença carismática de Lula na política nacional por mais de 30 anos

[nextpage title="p1" ]

O temerário exercício de projetar cenários eleitorais envolve o perigo de ser desmentido pela dura realidade. Para diminuir o risco de futurologia, pedimos aos leitores que aceitem duas premissas antes de iniciar a leitura. A primeira é que um governo bem avaliado sempre conta com chances razoáveis de continuidade. Como não temos espaço para demonstrar a tese, que seja tomada como axioma. A segunda é que fatos imprevisíveis têm o dom de produzir mudanças bruscas, e muitos deles podem ocorrer em prazo tão extenso como dezesseis meses, com uma campanha eleitoral no meio, situação em que as tensões pressionam os atores ao máximo.

Isso posto, nas condições atuais (meados de julho de 2009), é considerável a possibilidade de a faixa presidencial passar à ministra-chefe da Casa Civil em 1º de janeiro de 2011. O fator-chave para tanto é o estrondoso sucesso popular em que se converteu o segundo mandato de Lula. Até o final de 2007, o presidente estava em situação confortável, com metade do eleitorado considerando o seu governo ótimo ou bom1. Até aí não se tratava de caso excepcional. Fernando Henrique Cardoso chegou quase a isso em 1996. Mas quando os indicadores de apoio continuaram a subir, atingindo 70% em novembro de 2008, configurou-se um quadro talvez sem paralelo na história do presidencialismo brasileiro e, com certeza, inédito desde a volta da democracia, em 1989. Para um governante, contar com aprovação acima de dois terços do eleitorado significa possuir um capital fora do comum. A brincadeira de Obama sobre "o cara" tinha esse fundo de verdade, o qual entre políticos que vivem de voto é mais perceptível.

Sem pretender esgotar o tema, que é complexo, a recente ascensão do lulismo parecia ter relação direta com o desempenho da economia. Tendo iniciado o segundo mandato com a bandeira de acelerar o crescimento, Lula viu o PIB se elevar 5,7% em 2007, um resultado equivalente ao do ótimo ano de 2004, com a vantagem de se dar sobre patamar superior. Embalado, o país entrou com tudo em 2008. Analistas falavam no tão aguardado fim da semi estagnação que vinha desde a década de 1980, e os três primeiros trimestres confirmaram a expectativa. Com o emprego e o consumo em alta, o forte ritmo de expansão levou a um ponto impressionante a popularidade lulista.

Porém, se o elo de causalidade que liga elevação da atividade econômica e avaliação governamental é plausível, como dar conta da variação dos últimos seis meses? Quando o Brasil pisava no acelerador, e poderia até engatar uma quinta marcha, veio a derrapada da crise financeira internacional. A economia despencou 3,59% no último trimestre de 2008, o que não acontecia desde a época da hiperinflação, e de repente o luar de prata virou chuva fria. Os indícios de que as condições tinham mudado foram vários no verão do "fim-do-capitalismo-que-não-aconteceu". Enquanto os empresários que produzem para o mercado interno aproveitavam para ajustar a folha de pagamentos, os exportadores viam desabar as vendas, provocando cortes expressivos. O círculo virtuoso de trabalho e renda foi substituído por manifestações de trabalhadores nas ruas contra as demissões e o medo do que viria foi a tônica do momento.

Conforme ansiosamente esperado pela oposição, o fim da bonança econômica refletiu-se nas pesquisas de opinião, e março de 2009 trouxe um recuo de 5 pontos percentuais na satisfação com o Executivo federal. Até aí, a lógica que havia imperado na fase de auge continuava a mandar, invertidos os sinais. No entanto, quando tudo fazia imaginar um longo período de baixa, os levantamentos de maio indicaram recuperação da aceitação do presidente, recolocando Lula em lugar privilegiado para comandar a própria sucessão. Como explicar o fenômeno?

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

Embora tecnicamente em recessão, a economia ainda consegue desvendar parte do mistério. O consumo das famílias, aliado ao gasto público e a decisões governamentais acertadas, como a retirada do IPI dos automóveis, conteve a catástrofe anunciada. A produção ainda recuou no primeiro trimestre de 2009, mas muito menos que na fase anterior. Diversos setores começaram a emitir sintomas de retomada e, assim, chegamos ao ponto em que, mesmo restando dúvidas sobre se o duplo gráfico PIB/aprovação do governo manterá o viés de alta, a paisagem já não é aquela de um semestre atrás.

Embora ninguém possa garantir que não sobrevenha outra freada de origem externa, Delfim Netto, por exemplo, prevê que a eleição de 2010 se dará com o Brasil "rodando" perto dos 4%. A confiar nessas previsões, teremos um quadro muito melhor que o do final de 2008, ainda que sem a euforia que precedeu a débâcle de Wall Street.

Mas reduzir o lulismo a mero reflexo dos indicadores econômicos é um equívoco porque nele estão também compactados elementos diferentes, como a política social adotada de 2003 para cá e a identificação produzida por quase três décadas de presença carismática no espaço público. Desse amálgama pouco conhecido resulta a capacidade que terá o presidente de comandar os votos de que dependem as possibilidades da candidatura Dilma e o prolongamento de uma liderança que tem potencial para influir na política brasileira por mais uma década.

Curiosamente, a posição alcançada por Lula favorece também Serra. Se a correlação de forças apontasse para uma vitória oposicionista, a postulação de Aécio Neves teria apelo nos segmentos conservadores. Mantidas as linhas gerais traçadas aqui, tenderá a haver uma pressão para que o governador de Minas Gerais abra mão em favor do colega paulista e, sobre este, para assumir a condição de candidato. A razão é óbvia: enquanto Serra precisa lutar para manter os quase 40% de intenção de voto de que dispõe, Aécio teria o duplo trabalho de obter essa adesão e, depois, não deixá-la desidratar. Em outras palavras, diante da dificuldade de vencer um presidente de enorme aceitação, a oposição não rasgará dinheiro. Visto em perspectiva, e preservadas as proporções, o lento acúmulo de Serra guarda analogia com o de Lula, os dois sendo da mesma geração. No fundo, é o confronto entre ambos a que se assistirá no ano que vem.

Por ora, a pretensão de Aécio justifica-se perante o PSDB, pois ajuda a segurar eleitores que, na sua ausência, caminhariam para Dilma, dada a aceitação de Lula em Minas, assim como a atitude ambivalente que o neto de Tancredo sempre teve com relação a ele e o fato de que Dilma tem um pé no Estado, já que nasceu e criou-se lá, embora ao voltar do exílio tenha se radicado no Rio Grande do Sul. Uma alternativa para a sobrevivência da pré-candidatura mineira é que José Serra, convencido de que será derrotado, prefira uma recondução segura ao Palácio dos Bandeirantes. Mas será que a convocação partidária e o sonho de uma vida inteira não terão força suficiente para empurrá-lo à disputa federal?

Assim, o problema presente dos oposicionistas está em reter em torno de Serra os votantes que gostam do governo Lula. Em uma estimativa superficial, faz sentido imaginar que apenas metade dos que agora declaram inclinação pelo tucano integra o núcleo duro que o apoiou mesmo em 2002, quando a administração Fernando Henrique Cardoso sofria uma rejeição consolidada. Esses 20% são o piso tucano, que corresponde, de certa forma, àqueles que, mesmo nos melhores momentos, desaprovam a gestão do PT. Como esses são votos seguros, todo o empenho do PSDB e dos Democratas estará em reter os outros, aqueles que sem serem petistas ou lulistas apreciam o que foi realizado de 2003 em diante. Note-se que Geraldo Alckmin perdeu 2,5 milhões de votos entre o primeiro e o segundo turno de 2006, quando, atendendo à sua base de direita, resolveu endurecer com Lula e, assim, alienou parte do eleitorado que era simpático ao governo.

Além do respeito pela trajetória do governador de São Paulo, e da vaga noção de que chegou a sua vez na fila, os eleitores terão de ser convencidos de que Serra vai manter tudo de bom que Lula fez e, de quebra, acrescentar algum benefício, pois a pura continuidade aponta para Dilma. Mas qual benefício? É o que tira o sono dos tucanos. Ao evitar a confrontação, Lula fez concessões importantes ao capital financeiro, como a independência operacional do BC. Em troca, garantiu paz para utilizar as margens disponíveis na ampliação do mercado interno e na implantação de relevantes programas sociais, cujo símbolo é o Bolsa Família. Em suma, o êxito do modelo lulista esvaziou o discurso do centro-direita ao lhe tomar a bandeira da estabilidade. Daí que a única saída serrista seja, estranhamente, pela esquerda, prometendo uma alteração na política econômica, com redução substantiva de juros, para favorecer uma aceleração do crescimento ainda maior do que a alcançada em 2007-2008. Joga a favor da hipótese o fato de ele defender essa posição desde a era FHC. Mesmo sendo o partido do coração do setor financeiro, poderá o PSDB ser convencido de que é a única brecha para ganhar a eleição?

Se assim for, o nó de 2010 será formado por contradições profundas. Dilma vai ter de escolher entre repetir o projeto de Lula e ficar, desde esse ponto de vista, à direita de Serra, ou cobrir a aposta serrista e tirar-lhe a única bandeira consistente. A segunda opção condiz mais com sua biografia e com o que deseja a maior parte do PT.

O suporte das correntes internas do partido equivale a dispor de uma organização enraizada nos quatro cantos do Brasil, que levará Dilma a um patamar de cerca de 30%, a julgar pela preferência partidária apurada na pesquisa Vox Populi de maio passado, à medida que a informação de que é a candidata petista for chegando aos simpatizantes do PT. A dificuldade de transmitir informações novas ao eleitorado explica o presidente ter começado a mencionar o nome de Dilma como possível sucessora três anos antes da eleição, em uma atitude que se revelou premonitória, uma vez que lhe permitiu gastar o ano de 2008 na unificação do PT ao redor da ministra. Manter a unidade conquistada, e provocar o entusiasmo da base social que representa, é parte da equação para prosseguir na trajetória que, em um semestre, fez Dilma, agora com a saúde restabelecida, passar de 8% para 16% nas pesquisas.

O elemento decisivo da composição, contudo, cuja magnitude é difícil aquilatar, consiste no segmento do eleitorado que seguirá Lula, independentemente de partidos. O fenômeno da transferência de voto é central porque os 30% do PT são um excelente ponto de partida, mas não garantem a chegada. Quantos são os lulistas puros? Pesquisa CNT/Sensus feita em 2007 indicava que 11% do eleitorado escolheria, acima de tudo, o candidato indicado por ele. O número terá aumentado de lá para cá? Pesquisa GPP, realizada entre 11 e 14 de junho de 2009, mostrava que Dilma já chegou a 41,4% no Nordeste, a base do lulismo, quando o nome de Ciro Gomes não era apresentado, deixando José Serra com 37,6%.

Sem conhecimento da quantidade de sufrágios que o presidente arrasta, as alianças funcionam como precaução. Com 15% das intenções de voto, o pré-candidato do PSB seria um bom vice de Dilma, embora a vaga pareça reservada a um representante do PMDB, cujo passe vem sendo objeto de disputa estado a estado, trazendo não poucos problemas aos petistas locais. Não se sabe ao certo quantos votos traz o PMDB, sem candidato presidencial desde 1994. Ocorre que, em uma eleição que pode ser apertada, ninguém quer correr o risco de deixar esses votos ­ e o tempo de TV ­ para o adversário.

Como o segundo turno interessa à oposição, não seria de estranhar movimentos no sentido de inflar Ciro (ou Itamar Franco, que acaba de se filiar ao PPS), assim como Heloísa Helena. Com 10% das intenções de voto, a possível candidata do PSOL deverá desfrutar de maior espaço na mídia daqui para a frente. Paradoxalmente, a presença de uma candidatura à esquerda do PT, mesmo sem chance de vencer, deslocaria um pouco o eixo do debate, pois obrigaria a campanha de Dilma a usar um tom que deixe uma porta aberta aos que optarem pela ex-senadora, pensando em um possível segundo turno.

Enfim, a um ano da definição das candidaturas, diversos balões de ensaio vão decolar. O fator-chave para projetar o resultado, entretanto, está na cabeça dos milhões de brasileiros que, entre 2007 e 2009, mudaram de posição e passaram a achar que valeria a pena ter um terceiro mandato de Lula.

André Singer é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo

[/nextpage]