Nacional

O crescimento da candidatura Dilma dependerá de uma ação política virtuosa

Há razões de sobra para descrer da avaliação corrente na mídia de que a microconjuntura de junho-agosto tenha fôlego para deter o crescimento da candidatura Dilma. Mas o vasto potencial aberto à sua construção hegemônica dependerá cada vez mais de uma ação política virtuosa

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A campanha de denúncias de corrupção contra a Petrobras, os ataques exacerbados, unilaterais e estrategicamente dirigidos ao senador José Sarney, com seus desdobramentos, a violência das agressões à figura de Dilma Rousseff, a oposição midiática liderada pelo secretário de Saúde de São Paulo às ações do ministro Temporão em torno do surto da gripe suína, a publicação de pesquisas discrepantes (lideradas pelo Datafolha) conformaram nos três últimos meses uma cena artificialmente negativa ao governo Lula. Além disso, houve a saída do PT para o PV da grande liderança ecológica que é a companheira Marina Silva. Seria insensato negar essa microconjuntura negativa. Mais insensato ainda seria sobredimensioná-la e dar-lhe um poder de inverter as grandes linhas que vão delineando o cenário da disputa das eleições presidenciais de 2010.

O cenário de 2010 pode ser decomposto em três dimensões mutuamente dependentes: a legitimidade do governo e oposição, a construção da agenda pública que vai centralizar o debate e a construção das candidaturas e das coalizões. A microconjuntura negativa apenas alterou na margem e em um sentido provisório essas três dimensões.

O mês de agosto trouxe a boa nova de que foram criados 242 mil empregos formais líquidos, recorde para o mês nos últimos quinze anos. O Brasil passou pela crise gerando de janeiro a agosto 680 mil empregos formais, elevando o poder de compra do salário mínimo, diminuindo o número de pobres, alargando as suas políticas sociais com uma vasto programa habitacional, aumentando o mercado interno, fortalecendo a sua posição soberana (recorde de US$ 222,6 bilhões de reservas, crescimento do superávit comercial, embora com queda porcentual dos manufaturados nas exportações). A recessão ficou para trás com o anúncio do crescimento de 1,8% do PIB no segundo trimestre: o mercado financeiro e o próprio Banco Central refazem suas previsões, já reconhecendo a possibilidade de um PIB positivo neste ano. E deram-se passos importantes na desfinanceirização com a redução em 5,25 pontos na taxa Selic e o maior protagonismo dos bancos públicos frente aos bancos privados.

Como grande sinal positivo de que o núcleo da base social organizado do governo não cedeu a uma estratégia defensiva está o movimento sindical. A CUT, com o apoio engajado do ministro do Trabalho, liderou a luta para frear o mote de que se deveriam trocar direitos por empregos. Dados do Dieese indicam que as principais categorias continuaram negociando acordos coletivos com reposições salariais iguais ou acima da inflação no período. Trabalhadores das montadoras de veículos em greve saíram com conquistas salariais importantes. O Ministério do Desenvolvimento Agrário anunciou uma série de medidas receptivas à agenda das recentes campanhas do MST, embora a atualização dos índices de produtividade continue, até agora, travada pelo Ministro da Agricultura.

Enfim, não foram desfeitas a base macrossocial nem a dinâmica que carrega para cima a popularidade do governo Lula e a aprovação do presidente. Em pesquisa Sensus/CNT, divulgada no dia 8 de setembro, o governo teve avaliação positiva em 65,9% dos entrevistados e a aprovação do presidente Lula ficou em 76,8%. E a tendência nos próximos meses é de elevação.

A alta legitimidade e a capacidade de iniciativa do governo como bem demonstram a centralidade e as enormes possibilidades abertas pelo pré-sal ­ deflagram permanentemente um vasto repertório de ações de democratização, de distribuição de poder e renda, de afirmação de direitos: nas políticas sociais, nas políticas agrárias, nas diretivas relativas ao trabalho, à previdência e à educação, na promoção dos negros e das mulheres, nas políticas culturais e na abertura à participação popular. É essa agenda ampla de democratização, oposta ao estreitamento dos tempos neoliberais, que tende a ir ao centro da disputa em 2010.

Não se pode dizer que o quadro das candidaturas e coalizões tenha se fixado, mas continua tendendo fortemente à centralidade da polarização Dilma-Serra, com a primeira apoiando-se em uma forte coligação entre PT, PMDB, PCdoB, PDT e PSB. O possível lançamento da candidatura Marina Silva não parece ter, por si só, forças para deslocar o eixo de gravidade da disputa, embora, é claro, possa vir a influenciá-lo. Nesse quadro, como se afirmou em "O claro enigma de 2010" (Teoria e Debate, março/abril de 2009), é ainda correto avaliar que a vitória de Dilma em 2010 continua sendo provável "num padrão de sete chaves ­ quase certa, muito provável, provável, incerta, pouco provável, improvável, quase nula".

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Operação estratégica

Assim como o primeiro semestre de 2005 foi cenário de uma grande ação estratégica liderada pelo PSDB para desestabilizar o governo Lula, incidindo sobre a adaptação aos valores antirrepublicanos que ainda organizam a relação do sistema político com os interesses privados, no primeiro semestre de 2007 foi desencadeada uma operação estratégica pela oposição.

Sem aderir a uma visão conspirativa da política, definimos operação estratégica como aquela ação conscientemente elaborada e decidida, capaz de organizar os meios para atingir objetivos tático-estratégicos bem definidos. Sua inteligência central (que elabora e decide) é certamente o núcleo do PSDB nacional e paulista, reunida em torno de FHC e Serra, coordenando as ações do DEM e de um agrupamento de parlamentares do PMDB, PSB e PDT, alinhados na oposição tucana. Seu modo de operação na democracia brasileira é muito claro: movimenta uma vasta convergência midiática, e dezenas de colunistas entrincheirados na mídia empresarial nacional e regional, que se relacionam e amplificam a ação parlamentar da oposição, produzindo uma agenda política.

A operação estratégica de 2007 tinha três objetivos: abrir uma campanha de denúncias e CPI contra a Petrobras (visando deslegitimá-la para o pré-sal e, de quebra, confirmar a lenda do assalto petista ao Estado), promover uma campanha sistemática contra Sarney, de modo a desestabilizá-lo da presidência do Senado e criar uma brecha na coalizão PT-PMDB, e, por fim, atacar, com toda a sorte de calúnias, a figura de Dilma.

A campanha de denúncias contra a Petrobras, em sua evidente inconsistência e parcialidade, ficou em boa medida desmoralizada com a iniciativa da Petrobras de criar seu blog. Já a campanha contra Sarney pôde ganhar fôlego porque incidiu sobre um repertório de odiosos privilégios corporativos, apropriação do público pelo privado, ausência de transparência, evidentes distorções de critérios mínimos de representação e impunidade que compõem a cultura do Senado brasileiro e, em alguma medida, também da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores no Brasil.

O Senado brasileiro, na verdade, é pouquíssimo republicano: exacerba o critério federativo em detrimento do critério da representação democrática, exerce um papel indevido e fortemente conservador de câmara revisora, produz mandatos longos, é pouco transparente e funciona com inaceitáveis privilégios corporativos. O sentido estratégico da campanha orquestrada pelo PSDB estava na personalização da crítica ao Senado na figura de Sarney, como se não fosse um princípio básico da ética pública exercer igual vigilância e punição a todos os que incidem em práticas antirrepublicanas.

A companheira Dilma, por sua vez, já havia sido alvo em 2008 da campanha sobre o "dossiê", orquestrada por um senador peessedebista do Paraná que confessou ter passado tal documento à revista Veja. Depois, veio o caso da ficha do Dops, documento forjado utilizado pela Folha de S.Paulo, de um suposto plano de sequestro de  Delfim Netto. Uma informação errada e depois corrigida no currículo de Dilma virou caso nacional. E, agora, em um episódio não comprovado sobre um encontro com a ex-secretária da Receita Federal, uma campanha duríssima sobre a “mentira” de Dilma. No auge da campanha, o colunista Elio Gaspari, em sua seção dominical de 23 de agosto, em um ataque histérico que conspira contra suas pretensões de historiador, compara a “mentira” de Dilma àquela dos comandantes militares no episódio do sequestro, tortura e morte de Rubens Paiva pela ditadura militar e... à de Stalin, quando do processo do fuzilamento de bolcheviques! A “palavra nasce-me/ fere-me/ mata-me/ coisa-me/ ressuscita-me”, escreve o poeta Murilo Mendes. A revista Carta Capital, em sua edição de 26 de agosto, flagrou na boca do presidente do PSDB a frase: “Matar a Dilma”. Aqueles que dizem representar a modernidade da civilização produzem sem cessar no  plano da cultura documentos de barbárie.
Política virtuosa

É quase fatal que, diante da ilegitimidade do discurso liberal, a inteligência da oposição esteja já planejando novas “ações estratégicas”. O alvo principal  não é mais Lula, mas claramente Dilma e o PT: trata-se de construir uma barragem de fogo contra a sua ascensão política. Por onde virão essas “ações estratégicas”?

Não é possível prevê-las. O que é possível é diagnosticar que o campo de operações estratégicas dá-se exatamente onde o governo Lula e o PT ainda não foram capazes de construir uma práxis (uma prática transformadora e seu conceito público de legitimação) que responda à altura às aspirações democráticas e republicanas dos brasileiros. Uma política virtuosa é, assim, aquela que, de um lado, maximiza as potencialidades  democráticas e republicanas contidas na experiência e, de outro, recompõe autocriticamente as brechas que incidem sobre os pontos fracos da legitimidade pública e democrática.

Ao anunciar no jornal Valor Econômico, no dia 17 de setembro, que pretende enviar ao Congresso Nacional uma legislação ampla de consolidação institucional das políticas sociais do governo (da valorização do salário mínimo ao Bolsa Família, integrando também as conferências nacionais), o presidente Lula indica uma iniciativa política capaz de estar no centro da agenda de 2010. Trata-se de assumir, de fato, uma dinâmica de construção do que poderíamos chamar de um "Estado da cidadania ativa", que pode superar no plano democrático e da afirmação de novos direitos, desmercantilizando a reprodução da vida social, o padrão mesmo dos Estados do Bem-Estar Social europeus.

Há, pelo menos, três grandes brechas no que diz respeito à legitimação pública: aquela do combate à corrupção, aquela ecológica e aquela da saúde. Cada uma deveria merecer um estudo programático mais aprofundado, o que não impede de indicar algumas linhas de reflexão.

Reconhecer a brecha da "corrupção" não é aderir ao discurso liberal da mídia, mas exatamente o contrário disso. Entre a postura liberal ("Lula é mais corrupção e, por isso, menos Estado") e a de uma esquerda tradicional ("A corrupção é agenda udenista, sem centralidade para uma política de esquerda enquanto houver Estado burguês"), já há na cultura petista e no governo Lula uma compreensão de que é programaticamente central desprivatizar o Estado brasileiro, isto é, torná-lo cada vez mais público, mais para todos e controlado democraticamente por todos.

Não é verdade que já perdemos essa batalha na opinião pública. Pesquisa nacional do Instituto Vox Populi realizada entre os dias 11 e 18 de julho, para o Centro de Referência do Interesse Público da UFMG, constata pela segunda vez que 15% dos brasileiros acham que durante o governo Lula houve grande aumento da corrupção no país; 75% concordam com a afirmação de que "o que aumentou não foi a corrupção, mas a apuração dos casos escondidos". É preciso, pois, unir na mesma práxis a luta pela reforma política (que tem tido um encaminhamento minimalista e parlamentar), a luta contra a corrupção e a participação popular no governo Lula em torno da bandeira democrática da desprivatização do Estado.

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O que se chama de "brecha ecológica" foi dramatizada com a saída da companheira Marina Silva do PT em nome da urgência e da centralidade da adoção de um novo paradigma ecológico. O risco maior de Marina está em ser inserida na rede de um ecoliberalismo, já que o Partido Verde nos três maiores estados do país ­ São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ­ está firmemente aliado aos neoliberais. Em particular, a liderança de Gabeira pretende unir a defesa de "mais capitalismo" a uma plataforma ecológica, como fez em sua campanha ao governo da cidade do Rio de Janeiro. A adoção de um discurso de "equidistância" entre as lideranças de Lula e FHC e o convite a um empresário para ser seu possível vice na eleição presidencial, como se noticia, só agravariam essa dinâmica.

Dignificar e tornar presente a herança de Chico Mendes vai em um caminho inverso, de maximizar as relações entre os valores ecológicos e socialistas. É por essa razão que o PT ­através de sua cultura do socialismo democrático  tem muito mais condições que o PV de desenvolver programaticamente, em relação com a práxis do governo Lula e com a liderança ecológica muito dinâmica do companheiro Carlos Minc, a construção de um caminho de desenvolvimento autossustentado. A inclusão da ecologia no Fundo Social do pré-sal, a conquista de maior redução do desmatamento da Amazônia, o lançamento do Plano Cerrado, a restrição do cultivo da cana em 81% do país e o lançamento de um plano para controlar o acesso à biodiversidade são medidas recentes que indicam o enorme potencial aberto.

Enfim, os impasses no incremento do SUS, que são explorados por uma postura agressiva de crítica e construção de um modelo liberal pelo governo Serra em São Paulo, devem ser objeto de um esforço amplo capaz de reconstruir a unidade da coalizão sanitarista, de suas bases sociais, de uma relegitimação do projeto histórico do SUS e da conquista de um outro patamar de financiamento público.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG

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