Cultura

Lula, o Filho do Brasil teve lançamento apoteótico no 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Cena do filme Lula, o Filho do Brasil

[nextpage title="p1" ]

Os primeiros quinze minutos de Lula, o Filho do Brasil, recriação cinematográfica do livro homônimo de Denise Paraná, evocam clássicos cinema-novistas da linhagem de Vidas Secas (Nelson Pereira, de 1963). Lá estão o chão seco, as plantas raras, os bichos poucos, o pai bruto, a mãe de prole numerosa. O pai, de nome Aristides (Milhem Cortaz), que aparenta ter mais amor pelo cachorro doméstico que pelos filhos, abandona a casa, a mulher e os meninos para ir tentar a sorte numa grande metrópole do Sudeste. Escondida atrás de uma árvore seca e retorcida, uma adolescente (Mocinha, interpretada pela atriz Rayana Carvalho) o espera, já grávida. Mais tarde saberemos que a mocinha é prima de dona Lindu, a mãe dos filhos de Aristides (interpretada com segurança por Glória Pires).

A história ganha um novo espaço: a Baixada Santista. O homem que migrou do agreste pernambucano e estabeleceu-se num barraco em Itapema (hoje o bairro de Vicente de Carvalho, no Guarujá) vive maritalmente com Mocinha e o filho recém-nascido. E também com Jaime (Maicon Gouveia), filho adolescente de seu casamento oficial com dona Lindu. Aristides tornou-se estivador. Trabalha como um bruto carregando sacas de café no Porto de Santos. Analfabeto, pede que o filho escreva carta à mãe, Lindu, pedindo notícias dos familiares. E mandando instruções de como ela deve proceder lá no agreste pernambucano. Ou seja, não deve vender os poucos bichos nem o pedacinho de terra que os abriga.

O filho, que vive com o pai e a madrasta, torce pela vinda da mãe e dos irmãos para a Baixada Santista. Num dos bons momentos do filme, montagem paralela mostra o pai ditando a carta, que exige zelo pelo mínimo patrimônio da Família Silva, e a leitura da carta real, escrita por Jaime. O adolescente, aproveitando-se do analfabetismo do pai, pede que a mãe venda a cabrita e os raros pertences e migre para Itapema, vindo ao encontro dos seus. A carta é lida para dona Lindu, também analfabeta, pelo dono da venda da pequena Caetés pernambucana, seu Tosinho (Jones Melo). Crente de que, passados sete anos (idade do menino Luiz Inácio, que nascera meses depois da partida do pai), Aristides estava pronto para receber os familiares, dona Lindu vende tudo e pega o pau de arara. O diretor Fábio Barreto constrói mais uma sequência que evoca os filmes cinema-novistas. Aqueles que registraram, com paixão e empenho, as grandes sagas migratórias de nordestinos rumo ao Sul.

Até a migração no pau de arara, acreditamos que Fábio Barreto ­ depois de três fracassos de crítica e público (Bela Donna, Jacobina e Caravaggio, obras que sequenciaram sua indicação ao Oscar, com O Quatrilho) ­ havia reencontrado o bom caminho cinematográfico. Afinal, filmara o agreste sem estetizações vazias (apoiado na fotografia poderosa de Gustavo Hadba, tributária da luz nua de Luiz Carlos Barreto em Vidas Secas e de Mauro Pinheiro em Cinema, Aspirina e Urubus) e acreditara na potência da imagem. A ponto de abrir mão de diálogos. As falas emitidas até então eram rarefeitas, mínimas. Ainda por cima, mesmo confessando ter feito um filme de gênero ("um melodrama épico"), fora econômico no uso de trilha sonora.

Impressão enganosa. Depois que a primeira família de seu Aristides se encontra com a segunda (a de dona Mocinha), o filme desanda e transforma-se em um melodrama simplista e despolitizado. Um melodrama dito "épico", que, porém, não consegue dar conta das duas "teses" que sustentam seu roteiro (assinado pelo cineasta em parceria com Fernando Bonassi, Denise Paraná e Marcelo Santiago).

Tese 1: Luiz Inácio da Silva, o filho do Brasil, é fruto da dedicação de sua mãe, dona Lindu, lavradora que envidou esforços sobre-humanos para evitar que seus oito filhos caíssem na marginalidade. Por esforço dela, nenhuma das meninas seria prostituta e nenhum dos meninos seria ladrão.

Tese 2: Luiz Inácio da Silva seria, ao longo de sua vida profissional e sindical, um conciliador. Um homem do diálogo. Teria conflitos de consciência ao ver os companheiros grevistas (trabalhadores de uma pequena fábrica, um de seus empregos de juventude) "justiçarem" o patrão, depois de assistir à morte de um grevista.

Para dar vida à saga do "filho do Brasil", de sua mãe abnegada e de seus irmãos, todos oriundos da pobreza do agreste pernambucano, e da "peonada" sindical, Fábio Barreto escalou bons atores. Fugiu dos galãs televisivos que arruinaram seus filmes anteriores (com suas belas estampas) e buscou, especialmente no teatro paulista, nomes respeitáveis como Celso Frateschi, Marat Descartes e Marcos Cesana. Eles se somaram ao estreante Rui Ricardo Diaz, que dá conta de sua difícil missão (interpretar o sindicalista que comandou as greves do ABC). Para o papel de dona Lindu, escalou a talentosa Glória Pires (atriz desde os 6 anos de idade, que nunca precisou de beleza física para se notabilizar).

O bom elenco, incluindo crianças e adolescentes que interpretam os filhos de dona Lindu, não impediu que Fábio Barreto se perdesse. Os problemas do filme se avolumam por falta de ideias sólidas. O diretor não conseguiu justificar cinematograficamente suas duas "teses", até porque abandonou os irmãos de Luiz Inácio (meros figurantes na narrativa) e transformou o sindicalista num semideus. O diretor (e depois presidente) do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, sucessor do menino que apanhava do pai bruto e alcoólatra, não comete deslizes de nenhum tipo.

[/nextpage]

[nextpage title="p2" ]

O Lula que acompanhamos do nascimento aos 35 anos (1945-1980) é um ser tão perfeito que uma aura chega a emoldurar sua figura até em momentos prosaicos. Quando ele vai ao cinema (para ver o mazzaropiano O Noivo da Girafa), enquadramento grandiloquente o sacraliza. Fiel ao ideário nacional-popular, o filme apaga qualquer referência à indústria cultural norte-americana (tão forte no Brasil, após a Segunda Guerra). No caminhão pau de arara que traz Lula e família um olhar de hoje para o Sudeste, há uma bandeira do Brasil pintada na modesta carroceria. Lula dança nos bailinhos da Grande São Paulo ao som de Tim Maia (Você), Paulo Sérgio (Última Canção, na voz de Nana Caymmi) e assemelhados. Na TV, assiste a Irmãos Coragem (numa liberdade temporal, pois edição extraordinária do Jornal Nacional interrompe o namoro de Glória & Tarcísio paraanunciar a edição do AI-5, ocorrida em dezembro de 1968. A telenovela só iria ao ar em 1970). Se hoje Lula tem Cinema Paradiso e 2 Filhos de Francisco como seus filmes prediletos, em muitas ocasiões confessou-se fã de filmes de ação made in USA (na linha do que a esquerda nacionalista chamava nos anos 70 de "enlatados").

Diálogos sofríveis

Depois da bem resolvida saga inicial da família de migrantes nordestina rumo à Baixada Santista, Lula, o Filho do Brasil abandona os silêncios e torna-se palavroso. Troca a potência da imagem por diálogos sofríveis. Embora o ator mirim Felipe Falanga seja carismático e talentoso, fica difícil acreditar nos sofrimentos que lhe são infligidos, aleatoriamente, pelo pai Aristides. Somos forçados a acreditar que o moleque que sonha com jujubas e sorvetes, que se tornou engraxate e vendedor de frutas nas ruas de Itapema e Santos é um escravo do pai tirano. Um pai sempre embriagado, que não deixa nem o menininho Lula jogar futebol com os coleguinhas.

No livro de Denise Paraná (tese de seu doutoramento na USP), o Lula real evoca suas lembranças de infância, lembra a vontade de tomar sorvete e mastigar jujubas. Lembra que o pai não valorizava, como dona Lindu, a escola que instruiria os meninos. Com os oito da primeira família, somados aos que nasciam na segunda (a de Mocinha), ele transformava o trabalho (dele e dos filhos pequenos) em obsessão. Tinha de arrumar comida para quase 20 pessoas. Dona Lindu catava os grãos de café que sobravam no porto, os meninos faziam bicos (catavam lenha, vendiam doces, engraxavam sapatos). A cachaça "aliviava" a tensão de ter de alimentar tantas bocas.

No filme, Aristides não tem nuances. É um ogro, um vilão que inferniza a vida dos filhos. Já no livro, quando dona Lindu resolve abandonar o marido e deixar Itapema, ela o faz em razão de acontecimento dramático, paroxístico. Os meninos costumavam buscar lenha numa canoa do pai. Um dia a canoa desaparece, por descuido dos garotos. Furioso com a perda daquele "instrumento de trabalho", o pai espancou brutalmente os filhos (em especial Lula) com uma mangueira. Na tela, o episódio dilui-se de tal forma que o espectador não entende bem por que aquela mãe coragem está partindo. Como tem muita história para contar (uma enchente que levou colchões e panelas, deixando o barraco da Família Silva em petição de miséria, o aprendizado do ofício de torneiro mecânico no Senai, os dois casamentos, a prisão de Ziza, o irmão comunista, apelidado Frei Chico, a militância sindical, a prisão política e a ida ao enterro de dona Lindu, em maio de 1980), Fábio e sua montadora (Letícia Giffoni) se apavoram e transformam o filme numa sucessão de episódios fragmentados. E sem liga entre eles.

Na tentativa de dar organicidade ao material, o "melodrama" de Fábio Barreto exacerba-se com seus dois componentes: o drama propriamente dito e a melodia. A música de dois craques (Antônio Pinto, de Cidade de Deus, e Jacques Morelembaum) ganha tamanho relevo que nos soterra. Faz ansiar por momentos de silêncio.

Oito filhos de Lindu

O modelo assumido da Família Barreto ao levar o livro de Denise Paraná às telas foi o blockbuster brasileiro 2 Filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005). Luiz Carlos Barreto, o produtor, pensou até em chamar o filme de "Lula, o Filho de Dona Lindu". Só que Fábio Barreto não seguiu as principais lições de Breno. Ou seja: não apostou em base documental (preferiu o melodrama folhetinesco), não evitou excessos musicais, nem escorou o filme em protagonista de essência (alma) brasileira. Francisco é um sonhador cheio de macetes, que tem muito do João Grilo suassúnico: vende um sítio para comprar sanfona para os filhos, alimenta-os com gema de ovo, "elixir" do bem cantar, compra centenas de fichas de telefone e liga para emissora de rádio, cabalando a execução de um futuro hit dos filhos.

O protagonista de Lula, o Filho do Brasil é um homem perfeito, sem máculas. Tão perfeito que não poderia ter uma filha (Lurian) fruto de breve relacionamento, com Miriam Cordeiro. Tão perfeito que se politizou de forma mágica. Saiu de um sindicalismo pelego (representado no filme por personagem de nome fictício: Cláudio Feitosa) para o sindicalismo combativo das grandes greves do ABC paulista, sem que saibamos que caminhos trilhou.

Paula Barreto, irmã de Fábio e produtora do filme, justificou a ausência do relacionamento de Lula com Miriam Cordeiro (na época, ele era viúvo) e o nascimento de Lurian por "razões ligadas a direitos de imagens". Miriam cobraria reparações financeiras por via judicial. Tal justificativa não procede, na medida em que o cinema pode recorrer a personagens fictícios. Fábio lançou mão desse recurso ao transformar o sindicalista que iniciou Lula nas lides do Sindicato de São Bernardo do Campo, Paulo Vidal, em personagem fictício (o Feitosa, interpretado por Marcos Cesana).

Se tivesse tratado Lula como um  ser dotado de qualidades e defeitos (como todos os seres humanos) e preservado o humor da dupla Taturana & Lambari (apelidos de juventude de Lula e do amigo depois cunhado) O Filho do Brasil teria mais a ver com 2 Filhos de Francisco.

O livro-tese de doutorado de Denise Paraná, embora não seja uma narrativa biográfica à moda de Fernando Morais (Chatô, Olga) e Ruy Castro (Anjo Pornográfico, Carmen Miranda), dá-se o direito de registrar muitos momentos de humor. Os mais divertidos são, mesmo, as histórias narradas por Lambari (no filme, o ator Clayton Mariano), o  maior amigo do jovem Lula. Os dois dividiam maços de cigarro barato e um único paletó. Se viraram nos bailinhos das periferias em busca de namoradas, enfrentavam com criatividade a aguda falta de grana. Lula viria a se casar com Lourdes, irmã de Lambari (perderia a mulher e o filho, num dos dias mais difíceis da sua vida).

O filme de Fábio Barreto não tem humor. É solene, elegíaco, hagiográfico. Lambari torna-se personagem secundaríssimo, assim como ocorrera com os irmãos e as irmãs de Lula. Até Frei Chico, o irmão comunista de Lula e um dos vetores de sua politização, assume caráter por demais secundário.

Gasta-se mais tempo nas histórias conjugais do Filho do Brasil que em sua politização. Em benefício do filme, vale um registro: no processo de aproximação de Marisa Letícia (Juliana Baroni), o filme se permite uma brevíssima passagem bem-humorada. Lula e outro pretendente a namorado da moça de São Bernardo, jovem viúva de um taxista assassinado, se "enfrentam" no portão da casa dela. Lula, com certa picardia, leva a melhor. Mas logo o filme recobra o tom solene e pomposo.

Outra sequência de Lula, o Filho do Brasil merece registro. As greves do ABC começam a ganhar forma. Uma assembleia fora marcada para a Vila Euclides. Ninguém esperava multidões. Nem sistema de som adequado havia. Só que 80 mil metalúrgicos marcaram presença. O jeito foi Lula discursar para a "companheirada" e pedir que repetissem, em ondas, as palavras ditas no palanque improvisado. A sequência foi construída com apenas 600 figurantes, multiplicados com recursos digitais e enriquecidos com imagens reais de documentários da época. Por essa sequência, pelo silencioso início, pelo bom trabalho dos atores e pela competente fotografia de Gustavo Hadba, vale assistir a Lula, o Filho do Brasil.

[/nextpage]

[nextpage title="p3" ]

 

Um olhar de hoje

"A história de Lula é impressionante, fantástica. Metade dela parece inventada. A versão que o filme faz do livro da Denise Paraná é interessante. Mas não chorei uma lágrima. Fiquei tocado, não nego, em alguns momentos. Acho que isso aconteceu porque sou meio casca grossa. Se senti falta do relacionamento de Lula com Miriam Cordeiro e do nascimento de Lurian? Não vou dizer que senti, mas seria muito natural que estivesse no filme, pois se trata de um fato por demais conhecido e Lurian é filha legítima, reconhecida por Lula. A Lurian está no livro da Denise. Mas temos de entender que a história de Luiz Inácio da Silva foi condensada em um filme de duas horas e oito minutos. Muita coisa ficou de fora. O Élio Gaspari, num artigo, registrou que Lula dissera a Denise Paraná "não ter visto nada de errado, pois eles estavam fazendo justiça" ao referir-se a ato de seus colegas (eles teriam jogado o dono de uma pequena fábrica de certa altura, matando-o, depois que morrera um operário, durante uma greve). Isso aparece no filme com outras características. Lula se incomoda com o que vê. Conversa sobre o assunto com outras pessoas. Creio que o diretor e os roteiristas quiseram, com essa sequência, realçar o lado conciliador de Lula. Na minha avaliação, o filme vê Lula com os olhos de hoje. O presidente é realmente um homem de diálogo. Mas tenho minhas dúvidas, se na época das greves do ABC, era tão conciliador. Ele não era medroso, correu muitos riscos, foi preso. Lula nunca foi comunista, mas era um incendiário, tanto que liderava imensas assembleias no ABC. A imagem que guardo dele é a do "João Ferrador", personagem de história em quadrinho que ilustrava as publicações do sindicato."

Paulo Bernardo, ministro do Planejamento

Vai emocionar

"O filme é muito linear, mas o vi com interesse. A cena final, da morte de dona LIndu, é emocionante. Vi algumas pessoas muito tocadas. Algumas choravam. Eu não chorei em nenhum momento. Se falta humor ao filme? Nem tanto. Há algumas passagens que divertem o público. Claro que a dupla Taturana & Lambari, que é como os mais próximos chamavam Lula e seu grande amigo de juventude, poderia render passagens mais divertidas. Eu vi, no começo da narrativa, imagens que me fizeram lembrar de Vidas Secas, mas não posso avaliar o filme como crítico de cinema. Não tenho essa qualificação. Acho que o Lula que aparece no filme é mais humano que herói. Ele nunca teve formação teórica de esquerda. Entrou para o sindicalismo e foi se politizando no processo, na prática. Não vou comentar esta ou aquela opção dos roteiristas, pois sei que eles tiveram de resumir 35 anos de história do Lula em pouco mais de duas horas. Acho que o filme vai emocionar o público, pois a vida de Lula é semelhante à de milhões de brasileiros."

Ricardo Berzoini, deputado federal e presidente nacional do PT

[/nextpage]