Internacional

Após trinta anos, os caminhos trilhados pela China não são exatamente os pretendidos pelos capitalistas, tampouco os previstos pelos socialistas

Após trinta anos, a questão chinesa é bastante complexa. De qualquer ângulo que se olhe, tornou-se um perigo para o capitalismo. Assim, não é por acaso que os países centrais tomam a China, cada vez mais, como alvo principal de suas estratégias políticas e militares

 

China: paz e boas relações com as nações para completar seu desenvolvimento

China: paz e boas relações com as nações para completar seu desenvolvimento. Foto: Pixtal/Grupo Keystone

[nextpage title="p.1" ]Não é só o Brasil que se vê às voltas com o que poderíamos chamar de questão chinesa. Essa questão está, praticamente, diante de todos os países e povos. Não tem, porém, a mesma forma de quando emergiu, no final dos anos 1970 e início dos 1980. A questão chinesa atual parece haver se transformado no contrário daquela.

Nos anos 1980, todos os empresários relativamente bem informados, em qualquer parte do planeta, saudavam o ingresso da China no caminho do capitalismo. Tal virada seria o complemento final da reversão do sonho comunista e socialista à realidade inexorável e eterna do modo de produção capitalista. A rigor, nada muito diferente do que pensava a maior parte dos comunistas e socialistas, em todo o mundo. É verdade que para estes, diferentemente dos detentores de capital, o ingresso da China na globalização capitalista não representava apenas uma regressão social e a implantação do iníquo processo de exploração da força de trabalho chinesa. Representava, também, uma nova subordinação da China às potências capitalistas.

Trinta anos depois, muita gente ainda acredita na China completamente perdida para o socialismo. Mas até esses céticos são obrigados a reconhecer que a questão chinesa se tornou bem mais complexa. Por exemplo, na atualidade, pouco mais de 50% das empresas do país são privadas. Pertencem tanto a capitalistas estrangeiros quanto a uma florescente burguesia nacional chinesa. E ambos reclamam maior participação nos mercados e menos travas na exploração de seus trabalhadores.

No entanto, ao contrário da divulgada privatização completa da economia chinesa, cerca de 50% das demais empresas continuam nas mãos do Estado e de cooperativas, com predomínio nos setores econômicos estratégicos, e não há indício de que o Estado esteja disposto a abrir mão delas. Antes estão se tornando grandes corporações, utilizadas como instrumentos econômicos para orientar o conjunto da economia e corrigir os desvios erráticos do mercado. Ao desfazer os monopólios, o Estado chinês impôs a suas estatais aprender a operar no mercado sem preços administrados, competindo tanto com as empresas privadas quanto entre si.

Do ponto de vista social, o panorama também não é o céu de exploração desejado pelos capitalistas nem o inferno previsto por socialistas. Hoje, enquanto os empresários privados chineses reclamam do crescimento dos salários e dos benefícios aos trabalhadores, os dos demais países, diante da concorrência dos produtos chineses, acusam a China de dumping social, salários de fome, trabalho escravo e outras práticas que feririam os direitos humanos. Muitos socialistas também se preocupam com o evidente crescimento das desigualdades econômicas e sociais chinesas. Sem dúvida, como em todos os países onde há capitalistas, é possível encontrar na China casos pontuais de extrema pobreza, salários abaixo do limite legal, superexploração de trabalhadores e mesmo trabalho escravo.

No entanto, ao contrário do que aconteceu no desenvolvimento de muitos países, essas desigualdades ocorrem no contexto de um enriquecimento geral. A China retirou da linha da pobreza e da miséria, no curto espaço de trinta anos, cerca de 800 milhões de pessoas, elevando-as acima do nível de classe média baixa. O poder de compra dessa imensa população criou um mercado doméstico inigualável.

E, mais importante que tudo, em termos sociais, a China está transformando uma parte de seu enorme campesinato numa pequena burguesia abastada e outra parte numa classe de trabalhadores assalariados industriais, cuja força é crescente. Em relação a esse aspecto, a questão chinesa consiste em saber se o PC e o Estado continuarão administrando a intensificação das reivindicações e lutas da pequena burguesia e da classe trabalhadora a favor delas e contra a burguesia.

O aspecto ambiental da questão chinesa, por outro lado, é alvo constante de críticas, à direita e à esquerda. O grau de emissão de gases poluentes e de outros tipos de poluição no país já seria superior ao dos Estados Unidos. Embora em termos per capita isso não seja verdade, a própria China reconhece que sua poluição está passando dos limites. E, embora os meios de comunicação não deem atenção ao que vem sendo feito para reverter essa situação, como o reflorestamento intensivo, a ampliação do uso de energias alternativas e de sistemas de economia energética, é bem provável que, a esse respeito, a questão chinesa dos próximos anos também se transforme no contrário da atual.

Do ponto de vista das relações internacionais, a questão chinesa apresenta-se totalmente oposta à maior parte das previsões dos anos 1980. Estas deduziam que a instalação, na China, de quase todas as quinhentas grandes corporações transnacionais, além de uma série considerável de outras empresas estrangeiras, liquidaria a indústria nacional e subordinaria o mercado interno à hegemonia do capital internacional. A China chafurdaria no atraso neoliberal e se tornaria, inexoravelmente, dependente dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.

Ocorreu, porém, o inverso. O Estado chinês atuou para que as companhias estrangeiras transferissem altas e novas tecnologias às nacionais chinesas, estatais e privadas, dando-lhes musculatura empresarial e tornando-as capazes de competir com as transnacionais tanto no mercado interno quanto no externo. Um exemplo dessa situação são as empresas automobilísticas chinesas, que nenhum oráculo supôs capazes de algum dia se internacionalizar e concorrer, em qualidade e preço, com as marcas estrangeiras tradicionais, há mais de 100 anos no mercado mundial.[/nextpage]

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Paralelamente, a China tornou-se a segunda potência econômica mundial e ameaça tornar-se a primeira, na pior das hipóteses, nos próximos dez anos. Fez isso tendo por base seu rápido crescimento econômico e social, invertendo sua relação com os Estados Unidos, a Europa e o Japão. São esses que hoje dependem da China, em grande medida, para reestruturar a própria economia e enfrentar a crise em que estão afundando.

Assim, os que falam da pretensa simbiose entre a China e os Estados Unidos não entendem a estratégia defensiva do primeiro, diante da inevitável tendência da potência americana de querer isolá-lo dos demais países, sobretudo os asiáticos, e congelar sua internacionalização. Mesmo porque a internacionalização de suas empresas, tanto estatais quanto privadas, tornou-se vital para a China, tendo em vista as tensões causadas pelo crescimento demasiadamente rápido do PIB, o incremento dos investimentos estrangeiros diretos, superiores a US$ 100 bilhões anuais, e suas reservas internacionais acima de US$ 3 trilhões.

Intensificada a partir de 2004, essa internacionalização tem aumentado a competição com as corporações transnacionais nas diversas regiões do mundo, assim como com muitas empresas nacionais de diferentes países. As chinesas possuem hoje vantagens que pareciam impensáveis, como níveis tecnológicos comparáveis às das corporações líderes de cada setor. No entanto, ao contrário destas, utilizam tais vantagens não para praticar preços administrados, mas para reduzir custos e preços.

Desse modo, o sucesso no desenvolvimento, combinado à internacionalização crescente, reverteu as expectativas iniciais quanto à questão chinesa, mas também a transformou em um grande problema para as potências capitalistas – e em desafios complexos para os países emergentes e em desenvolvimento. Por um lado, o desenvolvimento chinês acelerou a desindustrialização dos países capitalistas desenvolvidos, em especial dos Estados Unidos, embora estes divulgassem haver ingressado numa era pós-industrial. A China também impôs às corporações estrangeiras a implantação de centros de pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico em seu território, em parceria com instituições chinesas. Desse modo, retirou dessas corporações as pretensas vantagens econômicas e financeiras que manteriam se tais centros permanecessem apenas nos países de origem.

Por outro lado, sem lastro de commodities minerais e agrícolas exportáveis, a China teve de amargar déficits comerciais durante todos os anos 1980, para atrair capitais estrangeiros e importar altas e novas tecnologias. Tudo, tendo como foco reforçar suas empresas estatais e privadas e capacitá-las a competir com as corporações estrangeiras. O sucesso desse modelo de industrialização, que lhe permitiu integrar-se de forma soberana no mercado mundial, tornou-se um exemplo para países capitalistas de baixo e médio desenvolvimento, que buscam formas de industrializar-se sem ficar subordinados a corporações estrangeiras nem dependentes delas.

Bem vistas as coisas, a questão chinesa subverteu a globalização do capital corporativo. Ao promover um certo ressurgimento do capitalismo em seu próprio território, mas sob regulação e orientação do Estado, estimulou outros países a seguir um caminho independente de desenvolvimento capitalista. Com isso, contribuiu para intensificar as contradições internas do capitalismo central, minando alguns dos instrumentos que os países capitalistas desenvolvidos utilizavam para resolver suas crises, através da transferência de recursos dos países da periferia. E, talvez mais importante que tudo, transformou em pó a suposição em voga, nos anos 1980 e 1990, de que a classe dos trabalhadores assalariados, a famosa classe operária, ou proletariado, havia entrado em processo irreversível de extinção.

É evidente que a questão chinesa não tem a mesma conotação trágica de decifra-me ou te devoro, proclamada pela Esfinge dos tempos imemoriais. Ao contrário das potências capitalistas, que utilizaram as guerras e a rapina como ferramentas para seu desenvolvimento industrial e seu enriquecimento, a China precisa de paz e de relações amistosas com as demais nações para completar seu desenvolvimento, e passar da fase primitiva de sua transição socialista para uma fase mais avançada.

No entanto, até mesmo esse pacifismo da questão chinesa virou um problema para as potências capitalistas, que continuam pensando nas ações armadas como forma de solução de suas crises de realização. De qualquer ângulo que se olhe, a questão chinesa se tornou um perigo para o capitalismo. Assim, não é por acaso que os países centrais tomam a China, cada vez mais, como alvo principal de suas estratégias políticas e militares. Basta consultar a doutrina militar do governo Obama para comprovar isso.

Nesse sentido, talvez a solução da questão chinesa resida em saber se os demais países do mundo, em especial os emergentes e em desenvolvimento, seguirão os países centrais e tomarão a China, ao invés de aliada, como inimiga principal. Por incrível que isso possa parecer, há muita gente com pena do capitalismo norte-americano e europeu, olhando a China como o inimigo a ser contido ou destruído.

Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate[/nextpage]