Política

Não necessitamos de mais mercado, privatização e diminuição do Estado, como apregoam os tucanos, mas sim de mais democracia, direitos e cidadania

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Não precisamos de mais privatizações como querem os tucanos, mas sim de mais dir

Não precisamos de mais privatizações como querem os tucanos, mas sim de mais direitos e cidadania. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

[nextpage title="p.1" ]O livro Brasil: a Nova Agenda Social, em que se compilam as palestras realizadas em 2010 pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) e pelo Instituto de Estudos de Política Econômica – Casa das Garças (IepeCdG), nasceu da iniciativa de intelectuais e políticos ligados ao PSDB de articular uma análise global sobre o Brasil, fazendo um balanço das políticas sociais das últimas décadas e lançando perspectivas sobre seu desenvolvimento. Constitui-se em evento de grande relevância política, pois desvela ao público os marcos teóricos e conceituais que norteiam a sensibilidade liberal-conservadora sobre os desafios institucionais que se descortinam, além de ordenar globalmente as referências esparsas das posições liberais-conservadoras no Brasil contemporâneo, particularmente de como entendem a crise de reprodução do capitalismo e o que propõem para superá-la.

A apropriação das formulações expostas na publicação pela esquerda e por setores progressistas é fundamental ao possibilitar que, dialeticamente, também aprofundemos nossas reflexões sobre nosso projeto nacional. Este, da perspectiva nacional-popular, deve combinar as reivindicações democratizantes de nossas ainda injustas estruturas sociais e os valores socialistas – e por isso mesmo anticapitalistas – que justificam e presidem os compromissos da esquerda, principalmente em relação ao Partido dos Trabalhadores, com sua origem operária e popular. Ou seja, não obstante os inegáveis avanços do governo Lula, continuados pelo governo Dilma Rousseff, precisamos ser capazes de operar aquilo que Gramsci chamara de aggiornamento, ou atualização programática de nossas demandas imediatas e mediatas ante as novas condições da ordem burguesa, para que possamos otimizar nossas imensas e represadas energias sociais no intuito de prosseguir nas mudanças.

Infelizmente ainda não soubemos traduzir em síntese programática aquilo que adquirimos por meio de nossas diversas experiências nem estabelecer uma conexão indispensável entre o que fazemos no cotidiano de nossas administrações e nosso objetivo estratégico socialista. Isso nos leva a agir de maneira reativa aos acontecimentos conjunturais e aos problemas histórico-estruturais impostos por nosso capitalismo periférico. Daí o mérito de Brasil: a Nova Agenda Social, que nos incita a pensar de forma mais orgânica o significado de nossa identidade socialista perante as inéditas determinações do capitalismo globalizado financeiramente, de sua configuração classista, de sua dinâmica interna privatista, das formas de seu financiamento e de sua tendência destrutiva das condições de vida das maiorias trabalhadoras, apesar de todas as nossas ações exitosas no campo das políticas sociais nos governos dos quais participamos. Precisamos repensar os vínculos que mantemos com a sociedade, o mercado e o Estado, cumprindo as imensas e inesgotáveis responsabilidades de que fomos investidos por milhões de trabalhadores brasileiros.

Ao projeto privatista, excludente, subordinado externamente e favorável à mercantilização de tudo, devemos opor o nosso – democrático porque socialista e socialista porque democrático –, em que as lutas por reformas e conquistas parciais revigoram a necessidade da transformação radical das relações sociais para a criação de um outro mundo. A única maneira de preservarmos os direitos, as prerrogativas e a cidadania adquirida no espaço da democracia capitalista é ampliando-a, robustecendo suas contradições, operando rupturas, ao mesmo tempo em que modificamos seus conteúdos na direção da socialização dos bens, da propriedade e do controle social ativo sobre o Estado e as instituições.

Bases metodológicas e teóricas

Edmar Bacha e Simon Schwartzman organizam o livro, dividido em quatro partes. A primeira se refere ao diagnóstico e à “prescrição” de medidas para a área da saúde. A segunda se volta à questão da previdência social e das políticas de distribuição de renda, em que se predicam “reformas” “saneadoras” das pensões e do regime de financiamento das aposentadorias, ao mesmo tempo em que se propõem alternativas de “aprimoramento” do Bolsa Família e de outros programas compensatórios, ao apostar na melhoria da eficácia de seus critérios de gestão, monitoramento e avaliação de desempenho. A terceira é sobre as políticas de educação, estruturando-as como requisito para o ingresso dos indivíduos no mercado e suas exigências, em que se enrijecem e se estratificam as relações entre os diversos níveis do conhecimento, sublinhando o caráter elitista da universidade e a vocação instrumental do ensino técnico e profissional em consonância com a racionalidade e os interesses capitalistas, além do enfoque contabilista no ensino fundamental e médio. A quarta tece considerações sobre as políticas de segurança ao tentar enaltecer as experiências realizadas em São Paulo, Minas Gerais e no Rio de Janeiro a partir de abordagens econométricas e/ou burocráticas, em que a violência na maioria das vezes é percebida como uma variável autônoma dos demais problemas sociais. Para combatê-la, portanto, basta azeitar os processos de funcionamento das atuais estruturas policiais, removendo seus aspectos disfuncionais.

O livro explicita as bases metodológicas que presidem sua análise sobre nossos problemas e desafios no campo da articulação das políticas sociais nas áreas da saúde, previdência social, educação e segurança pública e a difícil compatibilização entre as complexidades das demandas e solicitações dos diversos segmentos sociais em favor da efetivação plena de seus direitos fundamentais – consideravelmente ampliados a partir da Constituição de 1988 – e os parcos recursos estatais existentes. Antinomia entre realidade complexa, socialmente diferenciada, e o plano normativo potencializador de novas aspirações e direitos, que segundo a versão funcionalista da sociologia e da ciência política norte-americana – hegemônica em setores de nossa universidade, mais precisamente dos adeptos do neoliberalismo – fomenta contradições insanáveis entre o input da miríade de demandas sociais e o output restritivo das respostas institucionais prestadas pelas agências estatais. Ademais, salientam-se ainda os empecilhos relacionados ao tratamento judicial dessas demandas por uma magistratura protagônica na concessão de liminares, de ações, de mandados de segurança e de outros instrumentos processuais que oneram excessivamente o poder público na prestação de seus serviços para alguns poucos jurisdicionados, em detrimento das maiorias.

Análise que pretende demonstrar o exaurimento dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito, principalmente no que tange às formas de financiamento das políticas sociais, em razão da reestruturação econômica promovida pela globalização capitalista. Eixo analítico, portanto, que parte da compreensão de que vivemos um momento de transição do capitalismo industrial para o financeiro, em que se redefinem o Estado e suas funções, retraindo-lhe a capacidade de planejamento. A mobilidade e a volatilidade crescentes do capital transnacional, consoante a mitologia minimalista neoliberal, arrebatariam os “diques” urdidos pelo Estado nacional clássico por intermédio de seus tradicionais mecanismos de controle cambial, da atividade econômica e das possibilidades de investimento.

Vetor teórico que busca retratar o debilitamento das fontes tributárias da União, dos estados e dos municípios e a instauração de novas dinâmicas de fluxo monetário das riquezas, o que exigiria do Estado no Brasil também novas posturas, inclusive do ponto de vista do repaginamento de nosso pacto federativo. Tanto o centralismo quanto o descentralismo político das formas de Estado seriam inúteis, contraproducentes, em face da centralização econômica orgânica promovida pelo capital transnacional, daí a natureza adaptativa da racionalidade neoliberal propugnada pelas reformas presentes em Brasil: a Nova Agenda Social, em que se visa primacialmente imprimir às instituições a lógica vigente do mercado.

A propalada crise do Estado, de seu financiamento, que do ponto de vista do neoliberalismo só pode ser sanada a partir do momento em que formos capazes de reordenar as instituições estatais ao tamanho da realidade orçamentária, financeira que o mercado lhe permite ter, apresenta-se como ducto teórico que atravessa as digressões dos articulistas.

[/nextpage][nextpage title="p.2" ] Enfim, a leitura de Brasil: a Nova Agenda Social alinhava as bases gerais –  epistemológicas e políticas – da rendição tucana aos acenos da pós-modernidade neoliberal e aos apelos recorrentes a sua racionalidade anticívica e antidemocrática. Pós-modernidade que é compreendida como uma radicalização da modernidade liberal gestada de fora para dentro do país, tanto  quanto a concentração brutal de renda e poder em favor das classes dominantes, como bem tematizaram autores seminais para o pensamento social brasileiro – Manuel Bonfim, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Celso Furtado, Jacob Gorender e tantos outros preocupados com os destinos do país e das maiorias trabalhadoras. O que explica o sentido da oposição neoliberal aos governos de Lula e Dilma em relação àquelas decisões que favorecem a constituição de um novo modelo de desenvolvimento social, político e cultural alavancado por um paradigma institucional que resgate o Estado como eixo de construção de políticas ativas da cidadania, da resistência às pressões assimétricas externas e do fomento à unidade cultural da identidade nacional-popular.

 

Artigos que evidenciam um amplo consenso sobre as medidas necessárias para a viabilização de uma “nova” agenda que aprofunde as tendências e os fundamentos privatistas do processo de acumulação burguesa no Brasil. Para isso, expõem nem sempre de maneira nítida e honesta a centralidade de suas preocupações táticas e estratégicas e quais as classes e segmentos de classe que estão representados e consequentemente excluídos em seu Projeto de Brasil. Contudo, o corte e o enquadramento dos problemas – parafraseando Marx – já indicam o eixo das soluções propostas e o que o pensamento neoliberal ou liberal-conservador imagina como prioridade em termos de política pública a ser encetada pelas instituições e qual o espectro social dos beneficiários de seu modelo democrático de sociedade e Estado.

A clara inspiração liberista de seus paradigmas desdobra-se das convicções arraigadas sobre a supremacia do mercado e de sua intangibilidade frente às forças da sociedade. Em vez da crença na dimensão instituinte da democracia e de seu regime contínuo de criação de novos e mais expandidos direitos, o que se observa é a prevalência da agenda modernizadora dos mercados e do facilitamento de seu ingresso no Estado e de seu fluxo por dentro dele. Os direitos são apresentados como privilégios obstaculizadores da modernização do país.

Na verdade a publicação assinala a revisitação teórica dos tucanos e quejandos à sempiterna “loja de antiguidades” do neoliberalismo, com toda a pompa e circunstância. A persistência na “americanização” de nossa agenda, com tudo aquilo que ela engendra em termos de apassivamento do país às determinações de uma modernidade excludente, indica por si só sua incompatibilidade com a defesa da democracia e de seus valores fundamentais.

Metaforicamente podemos aduzir que esse encontro ornitológico entre garças e tucanos ao evocar os encantos do mercado e uma espécie de retorno ao estágio larvar do Estado de Natureza não seduziu o povo devidamente culturalizado. Entre o mito da perfeição do autoequílibrio dos interesses privados e a aposta nas virtudes constitutivas do espaço dialógico, conflituoso da política, preferiram o segundo, pois dele é que se lavram e se desenvolvem os novos direitos e a afirmação da vida individual e coletiva.

Modernidade periférica e Estado neoliberal

Um aspecto central, algumas vezes abordado e muitas vezes não tematizado às escâncaras no livro, mas sub-repticiamente presente em todas as análises dos artigos, é a questão do Estado. Do novo Estado neoliberal que deveria ser forjado na hegemonia ideológica de seus valores, orientados pela crença na supremacia da autorregulação das forças do mercado, na renúncia e privatização das funções das instituições e na remodelagem dos objetivos, metas e eventuais beneficiários de sua ação. Pois, como bem flagrou Nicos Poulantzas, o Estado é “a condensação material de forças entre as classes”, o que lhe confere uma unidade sintética entre os diversos interesses dominantes sobre o restante da sociedade.

A pré-compreensão da ligação entre a crise das políticas sociais de educação, saúde, previdência e segurança e o padrão institucional do Estado brasileiro é citada em reiteradas ocasiões. Para que haja políticas sociais eficientes, faz-se imprescindível – segundo tais análises – estabelecer novos vínculos entre o setor público e privado, desbloqueando as clivagens e os anéis burocráticos e abrindo espaços para a superação do ideal de Estado Social, que é dialeticamente suprassumido com a noção de Estado de Direito. Propõe-se assim que o país dê um passo para constituir relações de complementaridade entre o setor público e o privado, nas quais as atividades de planejamento e direcionamento coercível do desenvolvimento estatal sejam suplantadas por elos cooperativos entre esses entes. No máximo o Estado pode fixar parâmetros e metas a serem alcançados acompanhando-os por meio de monitoração de resultados, sem se imiscuir dos processos econômicos nem muito menos ultrapassar o umbral inexpugnável da propriedade privada e dos contratos. A economia do mercado naturaliza-se, enquanto o Estado em sua dimensão política torna-se artificioso, contraproducente e perdulário.

O que se exuma do conjunto de análises do livro são as premissas clássicas, diria mesmo oitocentistas, do liberalismo pautado na valorização predominante dos direitos civis, individuais, notadamente os mais afeitos à garantia da propriedade. A desconstrução política dos fundamentos da cidadania propostos pela Constituição de 1988 afigura-se clara e insofismável. Em vez do compromisso firmado pela Constituição com a fórmula do Estado Democrático de Direito e suas bases universalistas, recorre-se a uma hermenêutica distinta, em que o Estado circunscreve-se à coordenação dos interesses privados, fomentando parcerias e dirimindo dificuldades entre eles, mas sempre buscando viabilizá-los.

O Estado como principal estratego do desenvolvimento econômico e social é criticado, identificado como obsoleto, arcaico, ou incompatível com as novas determinações da economia política mundializada. A presumida ausência de fontes financeiras sustentáveis para sua atuação na universalização de políticas públicas se apresentaria como um obstáculo intransponível, só suprível por intermédio da recepção dos investimentos oriundos de ativos financeiros aplicados pelo capital transnacional no Brasil. Até mesmo quando criticam a ótica única dos recursos como principal problema a ser enfrentado para a efetivação das políticas públicas do Estado o fazem sob a perspectiva privatista, ao ressaltar a inexistência da adesão das autoridades estatais aos critérios numerários, quantitativos e gerenciais da gestão do mercado.

A modernidade periférica cinzelada pela tensão insanável entre os valores emancipatórios da liberdade individual, da autonomia social, do desenvolvimento econômico proclamados solenemente pelo centro capitalista e aqueles dimanados da situação insustentável de dependência externa, heterônima a que estariam condenados os países pobres exprime com maior contundência a diferença substancial entre as promessas despertadas por ela e sua materialização. O Estado neoliberal adquire na periferia da ordem capitalista uma feição dramática, talvez trágica, haja vista a dificuldade de preservar sob o apego à fórmula democrática práticas sociais visíveis e abusivamente autocráticas e irresponsáveis. Para o neoliberalismo, a tal “nova agenda social” começa pela adaptação do Estado às exigências “inapeláveis” do processo de acumulação capitalista ao deixar de ser um Estado prestacional de direitos e passar à condição de mero auxiliar em regime colaborativo na realização dos direitos.

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Fim do universalismo?

Outro elemento conceitual de Brasil: a Nova Agenda Social e que melhor exemplifica o paradigma neoliberal do Estado e dos direitos diz respeito à defesa desabrida que os especialistas fazem da abordagem “focalizada” do direcionamento das políticas sociais. Orientação teórica e prática que presume que os investimentos e a ação do Estado devem focar os eventuais beneficiários dos programas sociais, evitando a dispersão universalizadora dos recursos e da estrutura de pessoal do Estado dada sua escassez. Daí o apelo à fórmula da superioridade das políticas sociais focalizadas, em que se busca subordinar as ações do Estado sob a ótica de seus custos e eficiência administrativa, ou seja, a partir da abordagem mercantil.

O universalismo liberal cinzelado pela vitória da burguesia no século 18 sobre as forças do particularismo feudal que fundou o ideal civilizatório do Iluminismo parece esvanecer-se na pós-modernidade. Desde essa época os liberais se orgulham de sua vocação ecumênica e de sua missão progressista na difusão dos ideais da razão, da liberdade, da igualdade e da justiça. Em consonância com tais convicções históricas erigiu-se uma tecnologia jurídico-política exemplar que encontra no Estado de Direito, na Constituição e na doutrina dos direitos fundamentais suas mais pródigas realizações.

Entretanto, um pouco depois, acossados pelas lutas e reivindicações populares, os liberais logo fizeram ressoar seu temor diante das possibilidades emancipatórias contidas nas noções de legalidade, Estado de Direito e direitos fundamentais, o que os fez cair no relativismo absoluto e na retrocessão de seus compromissos com a democracia. O neoliberalismo nascido da Sociedade Mont Pèlerin na Suíça, em 1944, como reação ao crescimento das forças sociais-democratas e socialistas no pós-guerra – segundo os adeptos da sociedade de mercado, a partir de agora o liberalismo refundido como neoliberalismo se caracterizará pela redução do papel do Estado conjuminada com a privatização continuada de seus serviços e a identificação da cidadania com a esfera da tutela dos direitos de propriedade.

Premissas neoliberais que se manifestam em Brasil: a Nova Agenda Social como um dos ardis mais recorrentes brandidos em suas páginas quando menciona o caráter injusto da igualdade universal da lei e da Constituição, que defere a todos os mesmos direitos, prerrogativas e acessos. Pelo pressuposto liberal tal igualdade na prestação das instituições educacionais, sanitárias, previdenciárias e de segurança só serviria para aumentar as desigualdades existentes. A solução consistiria em fazer mais do mesmo... Ou melhor, buscar desresponsabilizar o Estado de sua obrigação universalizadora da cidadania, ao mesmo tempo em que encerra suas atividades à mera funcionalização dos direitos dos necessitados, liliputianamente transformados em pobres destinatários da “ajuda” do Estado. Sob o pretexto de auxiliar os pobres termina-se por reduzi-los à condição de párias sociais, conferindo-lhes uma inaudita insígnia de exclusão simbólica e política. Em lugar de cidadãos, teríamos uma sociedade conformada da reunião de pessoas de posses, integradas ao mercado e ao sistema de produção de mercadorias e do dinheiro, e o restante, os pobres, os subcidadãos, vilipendiados e marginalizados pela pobreza que os reduz a beneficiários passivos da generosa e graciosa prestação estatal.

Os vínculos dialéticos da democracia que elevam todos os homens à condição de membros políticos da sociedade civil são quebrantados pela unilateralidade econômica dos intitulamentos privados. Deveríamos, então, segundo tais premissas neoliberais, em vez de tratar dos conflitos distributivos sob a ótica do capital em seu confronto com o trabalho, diluir a ação do Estado perante os estratos de renda de acordo com a “razoabilidade” das garantias do funcionamento do capital e de sua remuneração “imexível”. Quando muito o Estado agiria no intuito de cingir-se aos limites da diminuição da pobreza. Como pregam Fábio Giambiagi e Paulo Tafner no artigo “Previdência Social: uma agenda de reformas”:

“Diante dessa realidade, seria o caso de questionar se deveríamos continuar a investir em combater a pobreza extrema através do aumento do valor real do piso previdenciário (e assistencial). E se, em vez de continuarmos a dar aumentos reais de renda a quem já não é pobre, trocarmos, por exemplo, ganhos reais de aposentados e pensionistas por uma melhor focalização de recursos nos grupos mais desprovidos de nosso país? Quais seriam os resultados?”

Reafirmação desse entendimento que também pode se depreender, por exemplo, do artigo do economista André Médici, “Propostas para melhorar a cobertura, a eficiência e qualidade no setor saúde”, em que, sob o pretexto de racionalizar melhor as formas de atuação do Estado, termina por defender a ideia do fim do igualitarismo e da integralidade da prestação do serviço de saúde, privatizando sua gestão através das chamadas “organizações sociais”. Gestão esta das “organizações sociais” que se regeria por critérios mercantis de eficiência, além da precarização das relações de trabalho dos profissionais da saúde, e da racionalização dos custos, do dispêndio de meios e da expansão de sua rentabilidade para o capital.

Modelo de “excelência” aplicado pelos tucanos em São Paulo, não obstante a performance condenável do estado no combate até mesmo das mais comezinhas endemias e doenças. Interessante é a dissociação que esse autor faz das formas jurídicas de propriedade adotadas pelos hospitais – antes públicos – e a apropriação do produto social que aqueles articulam, como se as formas jurídicas não determinassem os processos de apropriação privada ou coletivo, assim como os critérios e as possibilidades de controle social. Arte sofística de especial predileção de espécimes como tucanos, garças e aparentados, que procuram elidir – entre plumas e o voleio político de suas asas – da opinião pública os reais fundamentos e interesses que a motivam.

Chama atenção que recentemente um juiz de direito tenha, por meio de Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público do Estado, impedido a lei de autoria dos tucanos em São Paulo que autoriza a gestão, por Organizações Sociais (OS) e pelos planos de saúde privados, de 25% dos leitos de hospitais de alta complexidade e outros serviços. De acordo com a decisão, o decreto “afronta o Estado de Direito e o interesse público primário da coletividade”. O magistrado afirma ainda que há a possibilidade de “emergir o perigo da demora, uma vez que nenhum contrato de gestão foi firmado, alterado ou aditado para abranger a nova situação jurídica questionada”.

Critérios mercantis que também ficam evidenciados no artigo de Mônica Viegas Andrade e Kenia Noronha, “Uma nota sobre o princípio da integralidade do SUS”, ao estabelecer como escopo da atuação estatal na prestação de serviços de saúde a pré-condição do exame de custos envolvidos pelo Estado em cada procedimento e do custo-eficiência das terapêuticas. De acordo com as autoras, a assistência do Estado deve se subordinar ao perfil epidemiológico da doença, se é viável ou não dispor tais investimentos e o número de beneficiários contemplados.

Mesma tábula de valores para pregar a entrega da previdência ao critério da sustentabilidade mercantil, acabando com os critérios de solidariedade e universalidade em conformidade com as digressões de Marcelo Abi-Ramia Caetano no artigo “Reformas infraconstitucionais nas previdências privada e pública: possibilidades e limites”. Propostas que vão no sentido de uniformizar os regimes de previdência público e privado sob alegativa do aumento dos custos com poucos servidores em detrimento da maioria, apesar da omissão proposital de que parte considerável dos custos referidos, dispendidos pela previdência pública social, deve-se a gastos relacionados com o Funrural – previdência rural custeada pelo Estado – e a baixa empregabilidade vigente, principalmente nos dois governos tucanos de FHC, resulta do estímulo de políticas econômicas retracionistas fomentadoras do desemprego estrutural, que coibiram o ingresso de receitas para financiar o sistema previdenciário. Ao brandir argumentos equitativos, estigmatizando os “privilégios” dos servidores públicos, intentam transformar a previdência em um grande mercado persa para assegurar ganhos aos exploradores da previdência privada. Os não encaixados nessa fria estatística deveriam acatar seu triste destino numerário...

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A redução da política à administração

Um dos elementos centrais na articulação interna do discurso neoliberal também presente em Brasil: a Nova Agenda Social é a tônica, quando não implícita, claramente explícita da indispensabilidade da previsão de uma diversidade de níveis de mediação burocrática na prestação, monitoramento e avaliação das políticas sociais, que ao contrário de favorecer os mecanismos de democratização das instituições as impermeabiliza. O cipoal normativo de regras, da fixação de critérios aferidores da eficácia, da preocupação obsedante com a economia de custos e dos ganhos de rentabilidade com as políticas sociais busca introduzir uma racionalidade fundada na lógica do saber competente, em que os fins e a dinâmica das instituições são definidos por um corpo de especialistas à margem da sociedade.

O sublinhar da desigualdade “natural” dos indivíduos através da internalização sistemática de processos e redes hierárquicas de poder como única forma de dar conta da “complexidade do real” intenta, sob o pretexto de implante de melhorias “democráticas”, de “aprimoramento” ou de “maior eficiência” das políticas públicas, fixar um distanciamento abismal entre o povo e as instituições estatais, enquanto, paradoxalmente, estas vão sendo aos poucos submetidas ao império do mercado.

A nivelação do Estado e de sua ação, atrelando-o às determinações privatistas do mercado, não somente enseja a mercantilização dos direitos, serviços e bens – agora submetidos aos critérios quantitativos da maximização dos ganhos do capital, mesmo quando se trata de assuntos fundamentais como saúde, educação, segurança, domínio do código genético etc. – como também incide na redução da política à administração, ou melhor, à gestão otimizada, eficiente e instrumental dos meios perante os fins da sociedade mercantilizada.

A política se restringe a estabelecer formas de accountability, de definição de critérios procedimentais, numéricos, de aferição, acompanhamento e monitoramento de metas dos programas sociais urdidos por comitês e instâncias burocráticas, sem a intermediação dos interesses das classes e das vontades mundanas dos homens reais em sua elaboração nem, muito menos, diálogo com os movimentos sociais organizados. Em vez do governo do povo, como prevê a ideologia democrática voltada para a publicização e a transparência republicana do Estado, o que vemos é o reforço do sigilo, dos elos tecnocráticos de domínio, repelindo praticamente os valores estruturais do Estado Democrático de Direito.

Para o neoliberalismo, as instituições devem possuir regras de governabilidade independentes do conjunto do Estado e dos processos de legitimação política próprios da democracia representativa, vistas como facilmente seduzíveis pelo irracionalismo do povo ou pelo “populismo”.

Daí a justificação do espaço privado e de sua lógica na remodelagem do Estado e de seu funcionamento, como notoriamente se faz nos casos da OSIP, da OS, das parcerias público-privadas e de outras formas de organização que dimanam avanços na “eficiência” das instituições. Justificação, aliás,  textualmente feita por André Médici em seu artigo já citado ao defender a necessidade ingente de reimprimir as reformas neoliberais aprofundadas por FHC: “Com isso, dar-se-ia continuidade ao processo de modernização do Estado brasileiro iniciado na segunda metade dos anos 1990, país paralisado por pressões corporativas de segmentos que estão mais interessados em seus benefícios particulares do que na melhoria das condições sociais da população”.

Só não explica como a introdução de uma racionalidade de produção e a apropriação privada das políticas sociais beneficiarão a sociedade, e seus setores excluídos. Afinal, as referidas formas de organização propugnadas caracterizam-se pela dificuldade de estabelecer meios de controle efetivamente públicos sobre as iniciativas dos agentes privados.

Dificuldades de harmonização das legítimas preocupações em definir padrões técnicos de gestão e aferição de resultados – que se pode visualizar no artigo “Segurança pública nas grandes cidades” – com os níveis de participação da comunidade na democratização da polícia. A ênfase prioritária na integração da polícia com as demandas empresariais – mormente das associações comerciais urbanas mais voltadas para o endurecimento da ação repressiva dos furtos e roubos em seus empreendimentos – indica os impasses e limites das propostas. Árduas de combinar-se com as solicitações de uma polícia comunitária com ação preventiva e uma visão de investimento a médio e longo prazo em iniciativas integrativas de serviços e prestação de direitos à comunidade.

Tal contradição fica evidente quando o autor menciona a necessidade de critérios de produtividade policial que em várias situações, especialmente no Rio de Janeiro na gestão do governador Garotinho, estiveram associados ao crescimento vertiginoso das práticas arbitrárias da polícia, violando direitos das favelas.

Outro artigo que sintetiza o projeto elitista dos neoliberais é o de Simon Schwartzman, que propõe a separação entre universidades que promovam um ensino fundado no conhecimento de excelência, na pesquisa e na extensão, e outras que deveriam se circunscrever à formação para as diferentes necessidades do mercado. Projeto de ensino que dá continuidade à velha e “renovada” ideia do ex-ministro e ideólogo educacional tucano Paulo Renato de Sousa de criar “centros de excelência” em nosso país, que seriam distinguidos com mais verbas e estrutura de pessoal, cabendo às demais universidades reduzir-se à condição de repasse do ensino da graduação. Tese essa que busca reduzir a produção tecnológica e de conhecimento ao centro do capitalismo mundial em favor de alguns poucos Estados e empresas multinacionais.

A função da universidade será formar mão de obra técnica e acrítica para as necessidades de um mercado atrofiado, elitista, como fizeram os tucanos durante os dois governos de FHC. O modelo de globalização neoliberal consiste em restringir a conformação de sistemas de pesquisa e de constituição de processos de inovação tecnológica que imprimam o desenvolvimento dos países emergentes. Mas para isso dar certo precisam de sócios ideológicos, políticos e econômicos que patrocinem a ideia, como se dispõem pressurosamente os tucanos.

Conclusão

A publicação Brasil: a Nova Agenda Social nos apresenta com ares de inelutabilidade a alternativa neoliberal de reforma das instituições estatais. Presunção ideológica, não obstante sua veiculação afigurar-se como um desdobramento natural da ordem das coisas e da espontânea supremacia da racionalidade economicista sobre as demais instâncias da realidade.

É importante sublinharmos que a democracia não se compagina com a uniformidade de pensamento, muito menos com a ausência de liberdade de opções, principalmente quando estas se referem à preservação das condições de vida das maiorias trabalhadoras, ou do futuro estratégico do país.

Brasil: a Nova Agenda Social cumpre bem seu propósito ao elevar o nível elaborativo de um conjunto de propostas que presentificam e dão visibilidade ao que pensam e pretendem os liberais-conservadores ou neoliberais para o presente e o futuro de nosso país e de sua gente. A tentativa de atualizar a cosmovisão liberal nos tempos contemporâneos em uma realidade nacional carente da realização de bandeiras e tarefas básicas da integração cívica e por meio dos direitos fundamentais do seu povo – que já foram há décadas ou mesmo há séculos por outras nações e Estados concretizados – nos revela uma compreensão canhestra e alienada do mundo. Precisamos urgentemente de um projeto democrático coerente com o nível das aspirações populares por justiça, que combine os elementos formais e as garantias jurídicas do Estado de Direito com a consecução de novos fundamentos materiais que só podem ser vislumbrados a partir da esquerda e do socialismo.

Não necessitamos de mais mercado, de mais privatização, diminuição do Estado, nem de mais cadeias de lealdade burocrática verticalizadas, nem de “choque de capitalismo” como apregoam os tucanos, mas sim de mais democracia, mais direitos e mais cidadania. Daí a urgência de desenvolvermos mais organicamente nosso projeto nacional-popular como oposição ao projeto burguês, capitalista ou neoliberal de subordinação da sociedade e do Estado às determinações internacionais do capital financeiro, volátil e descompromissado, com os valores civilizatórios da democracia e dos direitos humanos. A velha “nova” agenda liberista precisa e deve ser superada por uma outra agenda efetivamente democrática e socialista.

Newton de Menezes Albuquerque é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

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