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Para Gabas, a proposta do governo não tem por objetivo a sustentabilidade do sistema, mas sim abrir espaço para o capital privado e reduzir gastos sociais

Carlos Gabas, ex-ministro da Previdência, defende que a proposta de reforma que está no Congresso seja rejeitada na sua totalidade, pois trata-se de desmonte do sistema de proteção social. “Não há uma situação catastrófica, mas sim desafios que precisam ser discutidos com a sociedade para fortalecer nosso modelo, e esse processo só poderá ser conduzido por um governo com legitimidade, escolhido por eleições diretas”

Carlos Gabas: O regime solidário é adequado à nossa sociedade, mas precisa ser constantemente reestruturado. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Tendo ocupado o cargo de ministro da Previdência e trabalhado com Seguridade Social por longo tempo, a seu ver as contas previdenciárias de fato justificam uma reforma tão avassaladora quanto a que está em exame no Congresso?

Carlos Gabas - Não. De forma alguma se justifica essa maldade que o governo tenta impor aos trabalhadores. Nós tínhamos uma preocupação e estávamos fazendo o debate com a sociedade. Colocamos os números na mesa e chamamos as entidades sindicais, representações de empregadores, de aposentados para expor de maneira muito transparente que tínhamos um desafio.

Então, a reforma da Previdência é necessária.

Carlos Gabas - Não gosto de usar o termo reforma, mas se quisermos usá-lo, tem que ser com a conotação correta. Por exemplo: quem reforma sua casa, sempre o faz para melhorá-la, para torná-la mais segura, mais confortável, mais bonita. Ninguém faz reforma para piorar, para destruir ou desmontar. Desse ponto de vista, então, era necessário rediscutir o nosso sistema de Seguridade Social, que não é só a Previdência. Queríamos discutir também o financiamento desse sistema. A Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e a CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) deveriam entrar na conta e nunca fizeram parte. Existem desafios, não dá para dizer que está tudo bem.

Além da transição demográfica, do envelhecimento da população e da redução do número de filhos por mulher, houve a ampliação da cobertura previdenciária em 100% nos governos do PT, por meio de várias alternativas de inclusão com subsídio. Em 2003, eram 30 milhões de pessoas cobertas pela Previdência e passamos a ter 60 milhões. E isso não se deve apenas à formalização, não foram criados nem formalizados 30 milhões de empregos na forma tradicional. Nós ampliamos a cobertura com subsídio. Criamos a figura do microempreendedor individual, com mais de 5 milhões de trabalhadores incluídos: pipoqueiros, borracheiros, cabeleireiras, manicures etc., que passaram a ter proteção previdenciária com contribuição de apenas 5% sobre um salário-mínimo, com direito a aposentadoria, pensão por morte e auxílio-doença. Essa massa de novos contribuintes mais adiante exigirá a contraprestação de suas contribuições, cujos benefícios não têm cálculo atuarial suficiente (contribuição suficiente para pagar o benefício). Nesses casos, o benefício correspondente será subsidiado.

A projeção do IBGE no início do governo Lula era que chegássemos em 2020 com dois filhos por mulher, chegamos em 2012 com 1,7 filho por mulher. Portanto, houve grande redução na taxa de reposição da população.

Some-se a isso a longevidade da população.

Carlos Gabas - Nossas políticas sociais melhoraram muito as condições de vida da população. De 1999 até 2014, houve um aumento na expectativa de sobrevida de quase cinco anos, de 80 para 84,8 anos. É ótimo que as pessoas vivam mais, tenham melhor qualidade de vida, que a medicina tenha avançado, mas é preciso planejar o futuro, não dá para deixar acontecer a esmo. Costumo ilustrar da seguinte forma: você está dirigindo uma carreta com quarenta toneladas em uma estrada reta, põe no piloto automático e segue, mas o GPS aponta uma curva adiante. Será necessário reduzir a velocidade, primeiro da parte de trás, depois da parte da frente, planejar cada passo para fazer a curva sem problemas. Com o nosso modelo de proteção social ocorre algo semelhante. Tem de ser planejado, inclusive com aperfeiçoamento na cobrança das contribuições. Fala-se em sustentabilidade, mas sustentabilidade tem dois pratos na balança, receita e despesa. Todos atacam só a despesa, dizendo: “É preciso reduzir a despesa...”. Mas por que não mexer no prato da receita? Existem R$ 500 bilhões de créditos na prateleira para serem cobrados de empresas devedoras. Então, por que não são cobrados? Daí a resposta é que a legislação é muito falha nessa área. Ora, se é possível mudar a Constituição para tirar direito de idosos, por que não mudar uma lei para cobrar eficazmente os créditos dos devedores?

As fontes de financiamento não são suficientes. Em 2015, houve uma renúncia de R$ 67 bilhões. Por que tem essa renúncia? Por que algumas empresas são isentas da contribuição previdenciária?

Que tipo de empresa, por exemplo?

Carlos Gabas - Por exemplo, empresas de produção agrícola para exportação, hospitais, universidades. As empresas nessas condições estão em várias áreas, educação, saúde, assistência etc. Se existe decisão política de subsidiar, o governo tem de custear essa parte referente ao subsídio, caso contrário a conta não fecha. A renúncia fiscal pode ser uma boa política de incentivo para algumas áreas, mas quem paga?

Existem vários outros setores da economia com bilhões de subsídios que não passam por um debate na sociedade. Essa proposta que está no Congresso tem por objetivo desmontar um sistema de proteção social criado no Brasil que vem de muito tempo e foi consolidado na Constituição de 88.

Carlos Gabas  - A Constituição de 88 consolidou o conceito de Seguridade Social, englobando Previdência, Assistência e Saúde. Nós precisamos modernizar e atualizar a legislação previdenciária, mas não desmontá-la, porque esse modelo de proteção social é o que consideramos adequado ao país. Nós o defendemos, os neoliberais, não. Eles acham que esse modelo é paternalista e generoso demais, que é muito dinheiro para pobre. Em 2015 gastamos R$ 436 bilhões com Previdência e R$ 502 bilhões com juros. Por que só se ataca a despesa primária e não a despesa financeira? Dizem que o governo tem de fazer o dever de casa. E os rentistas não têm de fazer o dever de casa? Nossa preocupação não é se tem déficit ou não, mas sim que esse modelo tenha sustentabilidade no futuro.

Falam que a Seguridade é deficitária. Então, coloquemos os números na mesa. O governo alega um déficit de R$ 150 bilhões. No conjunto das despesas da Seguridade Social, que na minha avaliação compreende o pagamento de benefícios previdenciários, SUS e pagamento de benefícios assistenciais, o governo inseriu também a folha de pagamento de servidores da União – R$ 95 bilhões com inativos e R$ 35 bilhões com ativos, além de benefícios com servidores ativos, R$ 7 bilhões. Quem disse que faz parte da Seguridade Social a folha de salários da União? Se retirássemos essas despesas indevidas já equacionaríamos o tal déficit. Além disso, ainda, é preciso discutir os 30% da DRU (Desvinculação das Receitas da União), que são retirados anualmente do orçamento da Seguridade Social.

E qual o peso das desonerações nessas contas?

Carlos Gabas -  Esse é outro problema. Por que a Previdência tem de arcar com a conta da desoneração? A desoneração significa deixar de cobrar 20% da folha de salários e cobrar um valor sobre faturamento, que é bem menor.

Qual o impacto de uma reforma como a proposta para a economia nacional?

Carlos Gabas  - O impacto negativo é imediato porque o cálculo das aposentadorias concedidas a partir da aprovação da reforma já será reduzido. A desvinculação do piso previdenciário, do Benefício de Proteção Continuada (BCP) e das pensões do salário-mínimo é um fato gravíssimo. Isso significa que haverá benefícios abaixo do salário-mínimo. Eles querem evitar que as pessoas se aposentem. Em 2015, fizemos um levantamento de todos os homens que se aposentaram por idade aos 65 anos e constatamos que 80% não somavam 25 anos de contribuição. Com base na regra agora proposta, 80% daquelas pessoas não se aposentariam.

Desestimular a contribuição para o sistema, uma vez que aposentar-se será incerto, não seria uma decisão pensada no sentido de privatizar o sistema previdenciário?

Carlos Gabas  - Esse é o objetivo central. Há muito tempo que os neoliberais querem isso. Antes eles queriam privatizar com a argumentação que o sistema era precário. Mas nós resistimos ao processo e hoje foram criadas condições de melhor atendimento. A Previdência é reconhecida, houve a ampliação da cobertura da sociedade que hoje chega a 82% dos idosos. Esse conjunto de mudanças dificulta o desmonte. Então, eles brecam a ampliação da proteção e apontam para a iniciativa privada. Nos casos do regime próprio, dos estados e da União, entidades fechadas de Previdência complementar de natureza pública, sem fins lucrativos, eles tiram a natureza pública e abrem espaço aos bancos privados (PGBL e VGBL), com taxas de administração e de carregamento altíssimas etc. Não só abrem espaço como entregam aos bancos para administrar essas entidades.

O FAT está sendo privatizado. O seguro-desemprego antes só acionado pela Caixa Econômica Federal poderá ser acessado por qualquer banco, que com certeza cobrará por isso.

Carlos Gabas - O efeito na economia nacional será rápido, principalmente nos pequenos municípios. Hoje o dinheiro do aposentado vai 100% direto para o consumo, impacta positivamente na redução da mortalidade infantil, no índice de Gini (cálculo para medir desigualdade social), na qualidade de vida. Em mais de 70% dos municípios, a transferência da Previdência é maior que a cota do Fundo de Participação dos Municípios e do Fundo de Participação dos Estados.

Mas o objetivo desse governo é engordar o caixa do capital especulativo, o capital financeiro, os bancos. A reforma não tem nenhuma preocupação com sustentabilidade do sistema. Querem abrir espaço para o capital privado e reduzir gastos sociais. Há uma sensação generalizada da elite de que os governos do PT exageraram no gasto social: “É muito dinheiro para pobre”. Daí vêm comparações esdrúxulas. “Ah, mas nos países da OCDE o gasto social é menor...” Lá não tem nenhum país com 200 milhões de habitantes, do tamanho do Brasil, com a mesma desigualdade regional e social e com o déficit de proteção social que o país tem com a sua população. São 500 anos de concentração de renda. Apesar de todos os avanços conquistados nos governos Lula e Dilma, a dívida social com o país ainda é muito grande, com os rurais, negros, jovens pobres de favela... Há déficit de moradia, de saúde e assistência, de tudo. A disputa que vemos hoje é pelo orçamento da União, pelo dinheiro do Estado brasileiro, se ele vai para proteção social ou se vai remunerar o capital especulativo.

Na disputa na mídia há um conjunto de mentiras que estão sendo diariamente produzidas e reproduzidas que é um escândalo.

Carlos Gabas- Eles estão desconstruindo um projeto de país. Trata-se de uma disputa de modelo de sociedade. O nosso é antagônico ao modelo deles. Cito como exemplo a riqueza do pré-sal, que eles entregam sem nenhum pudor e nós, ao contrário disso, fizemos um fundo para que os recursos fossem para educação e saúde. Eles querem engordar o caixa das multinacionais. Na Previdência, nosso modelo dentro desse projeto de país é de solidariedade, de repartição, o deles é de capitalização, individual e de renda para o capital especulativo.

Mas alegam que a Previdência explodirá em 2060.

Carlos Gabas - Essa projeção é feita na marreta, não existe metodologia para isso. A UFPA comprovou esse fato ao confrontar as projeções de 2011 até 2015 com o que de fato aconteceu, os números não conferem e tampouco ficam próximos da realidade. Imagine só daqui até 2060.

O nosso regime solidário é adequado à nossa sociedade, mas ele precisa ser constantemente reestruturado para dar sustentabilidade ao sistema. A dinâmica da sociedade exige também uma dinâmica da regra da Previdência, mas isso não implica tirar direitos. O financiamento é tripartite: trabalhador, empresa e governo.

A reforma é equivocada no método e na forma pois não foi discutida com a sociedade e porque simplesmente retira direitos dos trabalhadores, que acabariam pagando a conta sozinhos. Por acaso o movimento sindical e os empregadores não têm capacidade de pensar e propor soluções? Quem propôs a desproteção do trabalhador rural, alegando que ele não contribui, não conhece o país. O trabalhador rural contribui sim na comercialização da sua produção, com 2,1%. Essa contribuição vem na nota fiscal do produtor, mas dos 27 estados só três têm o bloco de produtor rural. É claro que há espaço para melhorar o mecanismo de arrecadação. Além disso, a agricultura familiar é responsável por mais de 70% da produção dos alimentos que chegam à nossa mesa. Desproteger os trabalhadores rurais, além de uma crueldade, seria atentar contra a segurança alimentar do povo.

Hoje a faixa para pagar imposto de renda é de R$ 1.900 mensais. O trabalhador que ganha R$ 2 mil paga imposto. O indivíduo que tem a sua empresa e ganha R$ 100 mil e distribui lucro e dividendo não paga porque no Brasil a distribuição de lucros e dividendos é isenta de imposto. Entendemos que é possível discutir essa isenção apenas para uma determinada faixa de renda, mas os valores mais altos devem sofrer tributação, assim como todos os demais trabalhadores. E em vez de fazer uma verdadeira reforma tributária, tornando o sistema mais justo e eficiente, estão propondo tirar Benefício de Prestação Continuada, de deficiente pobre, de idoso pobre. Isso é extermínio da população.

Há condições políticas de se aprovar essa reforma hoje, mesmo em meio a uma crise política?

Carlos Gabas - Previdência é um tema muito delicado. As pessoas se mobilizam por ela. Pensar que o governo tem maioria e aprova o que quer não é verdade. A aposentadoria atinge diretamente a população, 80% são contra a reforma da Previdência. E isso é uma dificuldade para quem a defende. A minha posição é que não devemos discutir emendas. A proposta é muito ruim e devemos rejeitá-la. Temos de denunciar a tentativa de desmonte do nosso sistema de proteção social. Não há uma situação catastrófica, mas sim desafios que precisam ser discutidos com a sociedade para fortalecer nosso modelo, e esse processo só poderá ser conduzido por um governo com legitimidade, escolhido por eleições diretas.

Artur Henrique é diretor da Fundação Perseu Abramo, ex-presidente da CUT
Rose Spina é editora de Teoria e Debate