Sociedade

A rede, na verdade, é um espelho fiel da sociedade, uma versão de nós mesmos, que replica desvios de conduta, como a violência contra a mulher

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

A violência contra a mulher na internet tem amplitude em toda a vida “real” e pode levar até à morte. Foto: Macedo_Media

Que a internet surgiu para melhorar a comunicação e aproximar as pessoas não há dúvida. Desde a década de 1990, quando deixou o ambiente corporativo e passou a ser utilizada pelo público em geral, a rede mundial de computadores foi incorporada ao cotidiano da população, provocando mudanças nas relações educacionais, empresariais, pessoais e sociais. Com esse novo paradigma, novos crimes passaram a ser cometidos, inclusive contra as mulheres.

Todos os dias são noticiados diversos casos de violência contra as mulheres praticados na rede. Nesse contexto, as mídias sociais se tornaram um mecanismo de reprodução de violência e perturbação contra as mulheres, de importunação, de perseguição virtual, de extorsão, de abuso sexual, de violações de privacidade, de vigilância e do uso não autorizado de informações pessoais, fotos e vídeos.

Essas tipificações foram identificadas na pesquisa “Da impunidade à injustiça”, da Association for Progressive Communications (Associação para a Comunicação Progressiva), que chegou à conclusão de que as mulheres entre 18 e 30 anos são as mais vulneráveis a esse tipo de violência. Segundo o levantamento, em 40% dos casos o agressor é conhecido da vítima e 11% das ocorrências inicialmente virtuais acabaram em violência física.

O ponto em comum entre todos os países pesquisados é que em nenhum deles há leis, políticas ou pessoas preparadas para lidar com esse tipo de crime e proteger as mulheres. Ou seja, a certeza de impunidade estimula a prática e faz o número de vítimas aumentar assustadoramente.

No Brasil, a lei no 12.737/2012, conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, criada após a atriz ter seu computador invadido e suas fotos íntimas reveladas, surgiu para punir delitos ou crimes digitais e representou grande avanço na legislação brasileira.

Logo depois da sanção da lei, no debate sobre o Marco Civil da Internet (lei no 12.965/2014), que regula o uso da web e determina as diretrizes para atuação do Estado, a Bancada Feminina da Câmara dos Deputados conseguiu assegurar a previsão de punição civil e criminal para quem utiliza a rede para divulgar imagens íntimas não autorizadas – a chamada pornografia de vingança. O texto também previu responsabilizar os sites que mantêm os materiais na rede.

Essas medidas, porém, não têm sido suficientes para coibir esses crimes.

Meninas e mulheres são expostas publicamente todos os dias, tendo sua intimidade devassada. A violação da privacidade, a perseguição e a exposição pública consistem em violência contra a mulher, e esses crimes realizados no âmbito da internet têm abrangência negativa que ultrapassa qualquer barreira territorial e seus efeitos devastadores acompanham a vítima para o resto de sua vida. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), 95% de todos os comportamentos agressivos e difamadores na web têm mulheres como alvos.

Atualmente pelo menos onze projetos elaborados com o objetivo de coibir crimes de violência virtual estão sendo analisados na Câmara dos Deputados – todos protocolados nos últimos cinco anos. Entre eles está o projeto de lei no 4.614/2016, que prevê a ampliação do combate à misoginia na internet.

O texto atribui à Polícia Federal a investigação de crimes de disseminação de conteúdo que estimule ódio ou aversão às mulheres na rede por entender que esses crimes não afetam apenas a vítima, mas se ramificam para outras vítimas. A proposta leva em consideração a estrutura da PF, considerada mais bem aparelhada na comparação com a Polícia Civil, vítima do desmonte permanente nos estados.

Além disso, como a violência praticada de forma virtual não possui território (o agressor pode estar no Acre e a vítima no Rio Grande do Sul), a atribuição à Polícia Federal facilita que se encontrem os culpados e que a punição seja eficaz. E, também, a barreira territorial não é limite para crime na internet e esse tipo de violência é capaz de ter alcance nacional em poucos minutos.

Em novembro, relatamos o projeto, apresentado pela deputada Luizianne Lins (PT-CE), e contribuímos para sua aprovação na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. No entanto, o texto que aprovamos em seis meses na Comissão da Mulher tramita há quase um ano na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara, sem previsão de deliberação pelo colegiado.

Em meio a tantas violências, algumas mulheres são vítimas de extorsão. Em uma relação de confiança, elas compartilham fotos íntimas e depois passam a ser chantageadas e precisam obedecer a ordens de cunho sexual, sob ameaça de exposição das fotos para familiares e colegas de trabalho. Algumas vítimas nem chegam a enviar suas fotos, mas têm o computador invadido e são vítimas da mesma chantagem, que atualmente vem sendo classificada como estupro virtual.

Há ainda mulheres que marcam encontros por aplicativos de namoro e são estupradas e mortas ao conhecerem a paquera virtual.

Ao mesmo tempo em que aumentam os casos, não há respostas claras das autoridades nacionais e internacionais que deem um basta a essa série de crimes.

Falta o debate sobre os direitos humanos das mulheres na internet, além dos provedores desenvolverem mecanismos mais sólidos de proteção e denúncia desses crimes virtuais. O desafio do combate à violência contra a mulher é grande, não apenas pela falta de recursos tecnológicos, mas também pela falta de boa vontade das empresas em reconhecerem essa violência de gênero como um mal a ser combatido, uma questão cultural a ser rompida, ao invés de julgar a vítima do crime pelo abuso que ela sofreu.

O espaço da rede não se limita a ela. As consequências da violência contra a mulher na internet têm amplitude em toda a vida “real” e pode levar ao isolamento, à perda do emprego e até à morte.

De acordo com o relatório “Violência, suicídio e crimes contra a honra de mulheres na internet”, que analisou apenas os casos repercutidos na mídia entre 2015 e 2017, foram identificados quinhentos crimes contra a honra, mil casos de pornografia de vingança e 127 suicídios de meninas e mulheres após a exposição na internet.

Ainda não há muitos estudos sobre os impactos da violência na web contra as mulheres. Os números acima se referem apenas aos casos noticiados e, infelizmente, há muita subnotificação. Falta, além de uma legislação mais dura e ações efetivas da polícia para combater esses crimes, que as empresas de redes sociais ofereçam mais segurança às usuárias, com mais opções de análises de denúncias e, em casos mais graves, com ações efetivas em conjunto com a polícia, fornecendo dados dos agressores virtuais e impedindo que voltem à plataforma.

O Facebook, que atingiu a marca de 2 bilhões de usuários no mundo, sendo mais de 100 milhões deles só no Brasil, recentemente lançou uma ferramenta de proteção para as imagens íntimas nas suas plataformas do Facebook, Instagram e Messenger, que consegue mapear o DNA da foto e, se considerarem que ela viola os padrões, nenhum usuário consegue baixá-la.

A empresa declarou, na audiência pública que realizamos no final do mês passado para debater o tema na Câmara dos Deputados, que o seu desafio de equilíbrio é oferecer às pessoas um local para se expressarem livremente e, ao mesmo tempo, promover um ambiente acolhedor e seguro para todos.

À luz desse debate, avaliamos que faltam também ações do Estado para discutir, tipificar e produzir políticas públicas mais efetivas que, de fato, protejam essas mulheres e punam esses criminosos. Faz-se necessária uma discussão profunda sobre os direitos e usos da internet, sobre a proteção às meninas e mulheres, sobre ações efetivas do Estado contra esses crimes.

Temos de pensar em políticas que tenham na comunicação uma peça-chave para combater esse mal. As escolas têm um papel fundamental nesse debate, pois é preciso preparar as novas gerações para identificar e denunciar esses crimes, afinal essa geração já nasce conectada.

Por isso, precisamos incluir a questão de gênero na programação pedagógica das escolas. Assim, meninos e meninas crescerão se respeitando e desenvolvendo uma cultura de paz, por meio da qual conseguiremos acabar com comportamentos misóginos, tanto no mundo físico como no virtual.

Já temos experiências nesse sentido no nosso país, como o projeto Mulheres Inspiradoras, criado pela professora Gina Vieira e implantado em escolas públicas do Distrito Federal. A iniciativa busca mudar a visão dos jovens sobre o papel da mulher na sociedade e tem conquistado prêmios na área de direitos humanos.

Contudo, é preciso que se tenha clareza de que a internet não é, essencialmente, um ambiente hostil. Pelo contrário. Prestes a completar 30 anos de “idade”, ela vem encurtando distâncias, ampliando nosso acesso ao conhecimento e facilitando as tarefas do dia a dia.

A rede, na verdade, é um espelho fiel da sociedade, uma versão de nós mesmos, que replica desvios de conduta, como a violência contra a mulher. Para combatê-la, precisamos atacar sua origem: o machismo entranhado na sociedade. E o melhor caminho para fazermos esse enfrentamento, sem dúvida, é a educação.

Ana Perugini é deputada federal pelo PT/SP, coordenadora-geral da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Humanos das Mulheres no Congresso Nacional e 2ª coordenadora-adjunta da Bancada Feminina da Câmara Federal