Política

Em homenagem ao grande político baiano Waldir Pires, falecido nesta sexta (22), destacamos aqui uma entrevista concedida por ele a Emiliano José e Viviane Falcão em 2001, publicada na edição 48.

Waldir Pires. Foto: Roberto Parizotti/DN-PT

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O deputado federal Waldir Pires (PT/BA) tem uma longa trajetória política. Aos 24 anos, foi secretário de Governo do Estado, na Bahia, na administração Régis Pacheco (1951-55), onde permaneceu até 1953. Aos 28 anos, eleito deputado estadual, foi líder da bancada do governo Antonio Balbino. Em 1958, deputado federal, exerceu a vice-liderança da maioria no governo Juscelino Kubitschek. Foi consultor-geral da República do governo João Goulart, uma espécie de ministro sem-pasta. Disputou pela primeira vez a candidatura ao governo da Bahia em 1962. Nos seis anos de exílio, passou o primeiro no Uruguai e os demais na França.

Voltou ao Brasil em 1970 e permaneceu no Rio de Janeiro, onde participou da luta pela restauração democrática e trabalhou no setor privado, até 1979. Com a conquista da anistia e a revogação do AI-5, recupera os direitos políticos e retorna à Bahia. Após a queda do regime militar, é nomeado ministro da Previdência por Tancredo Neves, em 1985. Em 1986 concorreu ao governo da Bahia pelo PMDB, sendo eleito com 1,5 milhão de votos de frente. Deixou o governo em 1989, depois de perder, com estreita diferença, para Ulysses Guimarães, na Convenção Nacional do PMDB, a candidatura à Presidência da República, para com ele compor, na qualidade de vice, e por unanimidade, a chapa do PMDB ao governo do país.

Em 1990 voltou ao Congresso Nacional, eleito deputado federal pela Bahia. Em 1994, a fraude eleitoral impediu sua diplomação como senador da República. A batalha judiciária para a recontagem dos votos durou seis anos e a recontagem nunca foi obtida. Ficou, para sempre, a suspeita da fraude, marcando a reputação do TRE da Bahia. E a complacência, também, pela negativa simplesmente formal da apreciação dos fatos, nos tribunais superiores.

Qual a sua origem?
Nasci em Acajutiba, em 1926 e me criei em Amargosa, dois municípios baianos. Meu pai, José Pires de Souza, e minha mãe, Lucíola Figueiredo Pires, lutaram muito para assegurar, a todos os filhos, a educação que nos abriu os horizontes. Comecei a trabalhar aos 15 anos como datilógrafo. Formei-me em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia em 1949. Menos de dois anos depois, me casei com Yolanda, que me deu cinco filhos. Agora somos avós de dez netos.

Como membro do primeiro escalão, qual é sua avaliação do governo Goulart?
O ano 1963 havia começado bem para Goulart. Um plebiscito decidiu, em janeiro, se deveria ou não continuar o parlamentarismo que lhe havia sido imposto, para que ele pudesse assumir a Presidência em setembro de 1961, logo após a renúncia de Jânio Quadros, do qual era vice. O parlamentarismo foi fragorosamente derrotado: quase 10 milhões de brasileiros disseram sim ao presidencialismo e apenas um milhão confirmariam o parlamentarismo. A direita, no entanto, não se conformava e articulava a derrubada do presidente. Os sinais mais claros da confrontação foram dados no segundo semestre de 1963. O governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, golpista conhecido, concedeu uma entrevista agressiva ao Los Angeles Times, afirmando que Goulart iria ser deposto, que havia uma conspiração militar em marcha, e criticou duramente alguns chefes militares leais ao governo. Goulart reuniu-se com seus ministros e concluiu que a saída para reprimir as tentativas golpistas, e inclusive prender Lacerda, seria a instituição do estado de sítio. No dia 4 de outubro, Goulart pediu a decretação da medida ao Congresso Nacional. Logo depois, foi obrigado a retirar a proposta porque lideranças importantes como Miguel Arraes e Leonel Brizola (governadores do Pernambuco e Rio Grande do Sul), além das forças de direita, opuseram-se à idéia.

Por quê?
Arraes achava que, instituída uma situação como a pretendida por Goulart, ele também poderia ser atingido. Mas pouco antes o presidente estivera em Recife, dando-lhe demonstrações de grande apreço. Goulart pretendia reprimir os golpistas, entre os quais Adhemar de Barros, governador de São Paulo, outro dos envolvidos em articulações contra o governo constitucional. Lacerda e Adhemar saíram fortalecidos do episódio e com eles todas, e não eram poucas, as forças empenhadas no golpe. Os dois lados, então, eram o do governo, com a proposta de reformas de base, e o da direita, que pretendia não só manter o status quo como acrescentar exigências feitas pelos EUA de abrir, ainda mais, o país ao capital estrangeiro, e sobre ele exercer a tutela política e econômica, que o período da Guerra Fria ensejava.

Qual foi sua participação na discussão sobre o papel do capital estrangeiro?
Direta. Pela Consultoria-Geral da República passavam todas as propostas do governo, que necessitavam de controle prévio de constitucionalidade. Em janeiro de 1964, Goulart assinou o decreto que regulamentava os investimentos de capitais externos no país e disciplinava a remessa de lucros em lei. Isso foi apressado por conta da queda de braço travada entre o Brasil e os EUA quanto à encampação de empresas norte-americanas de energia elétrica e de comunicações, já que estas não respondiam às necessidades da população e do desenvolvimento brasileiros. Naquele instante, vivia-se no Brasil uma conjuntura diferente da de hoje. Era evidente a ineficácia das empresas estrangeiras que prestavam serviços públicos. E, ainda por cima, por diversos mecanismos, de sub ou superfaturamento, as multinacionais sangravam o país, enviando para o exterior um volume de dinheiro muito desproporcional ao investido. O decreto que regulamentava a Lei de Remessa de Lucros foi redigido pela assessoria do ministro da Fazenda, Carvalho Pinto, e revisto juridicamente pela Consultoria-Geral. Pude sentir de perto a audácia dos representantes do governo dos EUA, especificamente do então embaixador Lincoln Gordon.

Que tipo de pressão ocorreu?
Ainda no segundo semestre de 1963, recebi um recado do meu chefe de gabinete, que me soou estranho. Disse que o embaixador Lincoln Gordon precisava falar-me e me convidava para ir à Embaixada tomar um drinque às 17 horas. Dei-lhe instruções para que informasse à Embaixada americana que eu estaria à disposição, e que poderia tomar um café com ele em meu gabinete. No horário sugerido, o embaixador se fez anunciar. Como era professor de Direito Constitucional da UnB e coordenava os cursos de direito, Gordon, que fora professor da Universidade de Harvard, iniciou a conversa pelo território acadêmico. Comentou que não entendia como eu podia conciliar os encargos administrativos e universitários. Contei que cumpria uma jornada diária de 10 a 14 horas de trabalho e, por vezes, até comia de marmita na própria Consultoria. Discorri sobre a UnB e o novo desenho que Darcy Ribeiro havia feito para ela, pensada como um laboratório de reflexões para a construção nacional.

E como o embaixador americano tratou da remessa de lucros?
Quando entrou no assunto, eu o interrompi. "Este é um assunto que não conversarei com o senhor. Peço que procure o presidente da República ou o ministro das Relações Exteriores. Não converso com o senhor, nem com embaixador de país nenhum". Por inúmeras vezes, Gordon esteve com Goulart naquele segundo semestre de 1963, sempre tentando interferir na regulamentação da Lei de Remessa de Lucros. Até um dia antes da assinatura, o presidente ainda me pedira que examinasse se havia a possibilidade de mexer no decreto, preservado o interesse nacional – tentando encontrar alguma saída para as sucessivas propostas que lhe chegavam. Nunca, no entanto, Goulart determinou, por conta das pressões, mudanças no decreto, que acabou sendo assinado como originalmente foi pensado, assegurando os interesses nacionais e a justa remuneração ao capital estrangeiro efetivamente investido.

Os EUA se comportaram de que maneira?
Para os americanos, era um claro sinal de endurecimento. Para nós, era simplesmente o exercício da soberania do Estado brasileiro. A atividade intervencionista da Embaixada dos EUA no país era impressionante. Em 1962, foram gastos mais de 20 milhões de dólares para, por meio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), financiar a eleição de parlamentares comprometidos com as teses da colaboração submissa. No golpe se viu o quanto isso foi importante. Numa madrugada de 1963, fui acordado por um telefonema do presidente. Convidava-me para, no dia seguinte, um sábado, seguir com ele para uma de suas fazendas, em Goiás, para discutir o problema do Ibad. Na fazenda, comecei a rabiscar a minuta do decreto de fechamento do Ibad, que se efetivou na mesma semana.

De que forma a esquerda enfrentava esse acirramento da atividade subversiva dos EUA?
Se à direita o cenário era de intensas articulações contra o governo constitucional, à esquerda a temperatura esquentava. Em setembro de 1963, sargentos do Exército e da Aeronáutica tomaram suas guarnições em Brasília, prenderam o ministro mais progressista do Supremo Tribunal Federal, Vitor Nunes Leal, ocuparam os correios, o aeroporto e a base aérea. Eles manifestavam-se contra a decisão da Justiça que lhes negara o direito de serem eleitos. O governo sufocou a revolta que, no entanto, forneceu mais munição ideológica aos que vinham organizando o golpe. Goulart, apesar disso, nunca se sentiu tentado a qualquer atitude golpista. Nunca chamou os generais mais fiéis para qualquer movimento contra as instituições.

Como Jango pretendia enfrentar a situação?
Eu sentia nele a convicção de que era possível chegar às reformas pelos caminhos democráticos. Sabia, no início de 1964, que era a hora de evitar indecisões, e a assinatura do decreto de regulamentação dos investimentos estrangeiros e da remessa de lucros era parte dessa atitude. Goulart acreditava no seu esquema militar – o que se revelaria uma crença sem base real. Recorreu às massas populares para apoiar as reformas de base. As mais de 200 mil pessoas que lotaram a Praça da Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março viram um presidente determinado anunciando, no palanque, o decreto de encampação das refinarias privadas de petróleo, a declaração de interesse social para fins de desapropriação de uma faixa de 500 metros ao longo das estradas, ferrovias e patrimônios públicos de acumulação de água, além de diretrizes para uma reforma urbana que garantisse moradia à população mais pobre.

Como eram as relações do presidente com os setores tradicionais?
Goulart perdera as ilusões com os setores mais conservadores. Ao apelar à mobilização popular, ele estava querendo dizer que a luta do governo pelas reformas era irreversível. Mas continuava acreditando que tudo pudesse ser feito pelas vias democráticas e, por isso, insistia na negociação constante, destinada a atrair o centro e a isolar a direita mais reacionária. O deputado Santiago Dantas, em janeiro, orientado pelo presidente, havia tentado organizar um movimento amplo de apoio ao governo, que unisse as forças de esquerda, mais o Partido Social Democrático (PSD), do qual uma das maiores expressões era Tancredo Neves. Não conseguiu. A radicalização crescia. Em Minas Gerais, o governador Magalhães Pinto era o epicentro do golpismo.

De que forma?
Ele articulara-se com o oficialismo americano. Essas revelações, em detalhes, me foram feitas pelo presidente no exílio. O governador mineiro montara um secretariado com perfil de secessão – ou seja, ele estava disposto não só a deflagrar o golpe como a se separar do Brasil, se necessário, para uma hipótese de resistência mais prolongada, com o apoio dos EUA. Com este objetivo, teria nomeado Afonso Arinos como secretário para a tarefa dos contatos com o exterior.

Mas Goulart tinha convicção de que poderia realizar as reformas?
Sim. No dia 15 de março, ele enviou a Mensagem Presidencial ao Congresso. Nela, ele comunicava que a Lei de Remessa de Lucros iria ser cumprida imediatamente, anunciava a implantação da Embratel e da Eletrobrás. Propunha a adoção do princípio de que todo eleitor é elegível, a legalidade dos parti (...) (...)ronáutica, golpista, dera ordens para interceptar o avião presidencial, era necessário um avião a jato que voasse mais alto que os caças da FAB. O presidente ficou quase uma hora aguardando dentro do avião Coronado, que não decolou. Fora sabotado. Eu e Darcy estranhamos a demora. Observamos que o general Fico estava pálido e começamos a desconfiar dele. Por fim, o presidente partiu em outro avião, de dois motores, da Presidência, um Conver, arriscando-se a ser alcançado por caças da FAB. A conspiração já alcançara Brasília. Com o presidente, seguiram, entre outros, o ministro da Saúde, Wilson Fadul, o ministro do Trabalho, senador Amaury Silva, e o chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. No Rio Grande do Sul, o presidente encontrou Brizola e, apoiado pelo general Ladário Teles, acreditava poder organizar e liderar a resistência.

O que aconteceu então?
Darcy e eu voltamos para o Palácio do Planalto, logo que o presidente decolou. Tratava-se de garantir que o Congresso não declarasse o seu impeachment. Havia sido acertado com o comando militar de Brasília que o Exército se manteria dentro dos quartéis. Isso permitiria a continuidade da mobilização de centenas de pessoas concentradas no Teatro Nacional, que não queriam que o Congresso votasse tal medida. Se os parlamentares tentassem fazê-lo, os manifestantes ocupariam o plenário. Quando nos aproximamos da Esplanada dos Ministérios, retornando do aeroporto, as tropas já ocupavam tudo, inclusive as imediações da Praça dos Três Poderes. As luzes acesas do Congresso denunciavam que o impeachment estava a caminho, e sob a proteção das baionetas.

Qual foi o mote do impeachment?
O argumento dos seus promotores era o de que Goulart fugira do país. Quando soube disso, pelo deputado Doutel de Andrade, do PTB, redigi aquela que seria a última mensagem do governo Goulart, assinada por Darcy Ribeiro, como chefe da Casa Civil. Era dirigida ao presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, e comunicava, em nome do presidente da República, que este se encontrava em Porto Alegre, no uso pleno de suas atribuições constitucionais, assumindo, lá, o comando da resistência contra as manifestações criminosas, disposto a garantir o respeito à Constituição. Doutel foi à tribuna, leu a mensagem e entregou-a a Auro. Era, aproximadamente, uma hora da manhã de 2 de abril. Moura Andrade leu o documento, disse que não era verdade, que o presidente não se encontrava em território nacional, declarou vago o cargo e convocou o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, para assumir o posto. Desligou os microfones e as luzes, antes do que foi possível ainda ouvir os gritos de revolta, principalmente vindos de Tancredo Neves.

Aí o senhor esvaziou suas gavetas?
Sim. Mas antes que a comitiva proveniente do Congresso chegasse para tomar o poder, vi o general Fico chegando, e o interpelei: "General, o que aconteceu? o senhor traiu o presidente? Não iria manter o Exército nos quartéis?" O general puxou do bolso um telegrama que determinava que o Exército assegurasse o funcionamento dos três Poderes, assinado pelo general Costa e Silva, já se autonomeando ministro da Guerra. Em seguida, me passou o telegrama de resposta: "Comunico prezado chefe que os vários poderes estão com seu funcionamento assegurado". Ele havia viabilizado o golpe. Naquele momento, chegou Darcy, lhe mostrei os telegramas e ele encarou o general como se tivesse feito uma grande descoberta, exclamando: "o senhor está com pêlos, cheio de pêlos, pêlos crescendo por toda parte. O senhor é um macaco". Saímos do Planalto, antes que Ranieri Mazzilli chegasse para ocupá-lo.

Para onde vocês foram?
Combinei com Darcy encontrarmo-nos dali a meia hora no aeroporto. Passei em casa, beijei meus filhos Cristina, Waldemir, Vivian, Lídia e Francisco. A mais velha, Cristina, tinha 11 anos, e o caçula, Francisco, 2. Beijei Yolanda e lhe expliquei que iria para Porto Alegre para tentarmos a resistência. Ao chegar ao aeroporto da Base Militar, procurei o avião que deveria levar-nos. Um major da Aeronáutica me reconheceu e advertiu que não haveria avião. Brasília já estava inteiramente na mão dos golpistas.

Na madrugada do dia 4, após reunião noturna na véspera, definindo rumos, com o deputado Rubens Paiva na coordenação da operação, saímos do Brasil. Eu e Darcy nos despedimos de nossas esposas, demos um abraço em Rubens e fomos com ele para a cabeceira da pista previamente escolhida, onde nos escondemos deitados em meio às moitas do mato ralo, à espera do Cessna monomotor que deveria levar-nos, a partir da abertura do horário de vôos, até uma fazenda em Mato Grosso, perto da fronteira com a Bolívia. Na hora mais ou menos prevista, o avião, que pedira autorização para viajar para Anápolis, taxiou até a cabeceira da pista, e eu e Darcy subimos. Quando o Cessna decolava, os operadores da torre de controle pediram que ele retornasse. O piloto, que não tinha qualquer conhecimento da operação em que estava envolvido, ensaiou dar meia-volta. Um grito de Darcy, enérgico, o fez prosseguir. O avião desceu na fazenda prevista, que era de João Goulart. Começamos assim um longo exílio. Que não fora previamente imaginado.

Mas vocês não iam ao encontro de Goulart?
Quando descemos na fazenda, na manhã de 4 de abril, tínhamos como certo que viria um outro avião, trazendo combustível para chegarmos até São Borja. Ainda durante a manhã, soubemos pelos empregados que fazendeiros na região começavam a se movimentar para saber que avião tinha pousado. Estariam armados, dispostos a defender suas terras e o golpe militar.

Decidimos que, face à perigosa movimentação, o piloto procuraria algum outro ponto de pouso nas redondezas, e voltaria no dia seguinte. Como o outro avião não chegara, o combustível único possível seria gasolina de caminhão mesmo, sugerida pelo piloto. Nessa noite, ouvimos pelo rádio de pilha que o presidente chegara à tarde no aeroporto de Montevidéu e pedira asilo político ao Uruguai. No dia seguinte, levantamos muito cedo, já com outro plano na cabeça.

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Que plano?
O presidente dos EUA, Lyndon Johnson, apressadamente, horas após o golpe de estado, reconheceu o novo governo brasileiro. Goulart tomou conhecimento dessa declaração em Porto Alegre. No exílio, o presidente contou-me que o general Ladário não pudera levá-lo do aeroporto para o Quartel-General do III Exército, dizendo-lhe que o conduziria para sua residência, onde as forças militares que permaneciam fiéis à legalidade democrática responderiam por sua segurança e a das instituições políticas que ele encarnava constitucionalmente. Nesse instante, contou-me o presidente, "apercebi-me da gravidade militar da situação e da fragilidade das forças que nos apoiavam".

Ele foi diretamente para a casa do general, onde manteve longas conversas com Brizola e outros companheiros. A posição de Brizola era de resistência a qualquer custo a partir da capital gaúcha. Mas o presidente avaliava todas as informações do quadro militar e as condições de organização de forças civis.

Com o asilo político do presidente no Uruguai, já não havia mais razão de seguirmos para Porto Alegre. Tratava-se de voarmos até Salto, cidade no norte do Uruguai, e de lá alcançarmos Montevidéu, onde encontraríamos o presidente deposto. Seria, pois, o destino do exílio. Quando o Cessna retornou, no dia seguinte, o piloto nos informou que havia algum risco com a gasolina de caminhão que conseguira, pois era mais fraca, mas nos tranqüilizou, informando que em outras viagens já voara com sucesso. Além de completar o tanque, trouxe mais duas latas de vinte litros cheias de combustível, que teriam de ir no nosso colo. Partimos no dia 5. Quando sobrevoávamos o Paraguai, o piloto descobriu um campo precário onde pousamos e os quarenta litros foram absorvidos pelo tanque do avião. Pudemos assim viajar mais confortavelmente.

Pouco depois das 15 horas, estávamos no Uruguai, próximos de uma estação balneária chamada Arapey, não muito distante de Salto, aí, recebemos instruções para seguir até Montevidéu.

Como foi sua vida no Uruguai?
Só voltei a ver meus filhos em julho de 64, mas Yolanda foi encontrar-me em maio. Os primeiros tempos do exílio são de expectativa constante de retorno à pátria na semana seguinte. Qualquer notícia de solidariedade ou de resistência ganha dimensões extraordinárias. O passar dos meses foi amadurecendo nossa compreensão sobre a natureza do retrocesso político que golpeara o país. No Uruguai, somente Darcy, professor de antropologia, conseguira trabalho. Com cinco filhos, era urgente organizar a sobrevivência da família, com a noção de que o horizonte do obscurantismo e da opressão era largo. Decidi, com Yolanda, que iríamos para a Europa. Nossos filhos todos voltaram para a Bahia, acolhidos pelos tios queridos. Em 1965, embarcamos.

Quem de seus conhecidos estava no Uruguai?
Darcy Ribeiro, Almino Affonso, Max da Costa Santos, Neiva Moreira, Cibilis Vianna, Amaury Silva. Por lá passou rapidamente o Betinho. Evidentemente, as duas figuras políticas maiores eram o Goulart e o Brizola.

Quais eram as idéias que predominavam entre os exilados naquele momento?
Era muito claro para a maioria de nós que se tratava de articular uma grande frente democrática nacional para derrubar a ditadura militar. Eu tinha relações com o Brizola e o Goulart, mas muito mais próximas de Goulart, Darcy, Amaury Silva.

A perspectiva de deflagrar a luta armada foi discutida?
Comigo pessoalmente não. Eu não tinha nenhuma ilusão a respeito disso, pensava na idéia básica de acumulação de forças políticas que fossem desestruturando o sistema de poder. A idéia de uma solução armada era muito vinculada à liderança do Brizola.

Quando se dissiparam as ilusões de que a ditadura iria acabar em seis meses, o que se passou a pensar?
Durante 64, qualquer notícia de jornal nos trazia instantes de enorme alegria e a expectativa de volta imediata ao país. Em 68, no período do ascenso do movimento de massas e das passeatas no Rio de Janeiro, imaginávamos poder voltar. Mas isso acabou definitivamente depois do AI-5.

Nessa época o senhor já estava na França?
Sim. Fui para a França em 65 e, em 66, fui contratado para lecionar na Faculdade de Direito, da Universidade de Dijon, capital da Borgonha. Dei cursos de Direito Público Comparado e de Instituições Políticas Contemporâneas. E também curso de Instituições Políticas da América Latina na pós-graduação do Instituto de Altos Estudos da América Latina, da Universidade de Paris. Voltei ao Brasil em 70, convicto de que o exílio se esgotara em sua missão política e que não deveria criar meus filhos longe de nossa pátria. Eles já quase não conseguiam falar a língua natal. Decidimos voltar. Não consultamos ninguém. Comunicamos apenas. Eu não tinha prisão decretada. Os dois processos contra mim, vinculados ao movimento de resistência no dia do golpe, tinham sido arquivados na Justiça. No STF ainda estavam, nesta ocasião, os ministros Evandro Lins, Hermes Lima e Vítor Nunes Leal, que diziam não poder haver delitos praticados por membros do governo que atuavam legitimamente defendendo a integridade das instituições democráticas. No Consulado do Brasil em Paris, negaram-me o passaporte, por ordem do governo militar. Vim com um salvo-conduto, autorizado pelo Itamaraty. Trabalharia, como pudesse, para a derrubada da ditadura, mas criaria meus filhos no país deles. Estava angustiado, apesar de contente com o trabalho que fazia e de uma relação muito boa na Universidade, mas nenhum de nós compreendia o exílio como algo que não fosse vinculado à luta política do país. Porque o exilado não tem nunca a mentalidade de emigrante. O exilado não é um emigrante que tem a audácia de sair da sua terra para realizar a sua felicidade lá fora. O exilado é um combatente, uma pessoa permanentemente voltada para o quadro político da sua terra.

Tínhamos também discutido, definindo que todos os que não estivessem condenados judicialmente, e assim não fossem diretamente para cadeia, deveriam voltar preferentemente para os grandes centros de articulação política, São Paulo e Rio de Janeiro. Eu já tinha me estruturado para voltar ao Rio, até porque se parece mais com a Bahia. Tem toda a sedução do mar e da gente.

A sua volta se deu em 70, um dos momentos mais difíceis da ditadura, governo Médici. O senhor não analisou a conjuntura?
Todos os aconselhamentos, inclusive da família, eram no sentido de não voltar. Mas o AI-5 me fez compreender que seria uma longa demora. E se o povo brasileiro podia suportar as dificuldades, por que eu não? Não voltar seria uma derrota.

Uma derrota política ou existencial?
Poderia vir a ter essa dupla dimensão. A idéia de que meus filhos se separassem, culturalmente da pátria era muito penosa, inaceitável. Eu e Yolanda voltamos de navio e antes de chegar no porto do Rio de Janeiro, a Polícia Federal foi ao navio e dei um longo depoimento. Fui levado para a Polícia Federal. Na ocasião, recebi a determinação de não sair do Rio de Janeiro a não ser com autorização. Alguns meses depois, meu pai faleceu repentinamente em Amargosa. Ao ficar sabendo, fui direto para o aeroporto. Dei minha carteira de identidade, meu nome é Francisco Waldir Pires de Souza, e me venderam a passagem como Francisco Souza. Daí por diante, passei a não dar mais nenhuma satisfação. Não havia falsidade ideológica...

Organizei a sobrevivência privada. Era impossível ganhar o necessário para viver na atividade profissional, estrita. Parti para a novidade completa... Tudo era muito difícil, de forma que aceitei a sugestão da minha família – a família de Yolanda, de meus cunhados Alberto e Gerbaldo, que tinham êxito na atividade industrial de mineração para a produção de britas – e implantamos uma empresa de pedreira e de granito no Rio. Meu sócio primeiro seria Rubens Paiva, que acabou não podendo continuar no projeto e sugeriu um outro companheiro também cassado: Luiz Fernando Bocaiúva Cunha que se tornou meu sócio, meu amigo fraternal, por toda vida. Passei a estudar mineração. Tornei-me um quase expert e tocamos a empresa. Mantendo sempre contato com a área política. Estive com muitos companheiros alguns dos quais na total clandestinidade. Luís Maranhão, Giocondo Dias, Marco Antônio Coelho, Max da Costa Santos, Cibilis Viana etc.

Mais tarde no esboço da abertura, mas ainda sem direitos políticos, participei das campanhas eleitorais como era possível, por exemplo, na eleição de Saturnino Braga para o Senado, em 74; de Marcelo Cerqueira para deputado federal em 78. Enfim, de todas as tentativas de ampliarmos a resistência, com o velho Barbosa Lima Sobrinho, com o movimento de anistia, com o movimento pela constituinte. Yolanda também participou muito ativamente de todas essas lutas, integrada no Movimento Feminino de Anistia. Eu estive com o Rubens no dia em que ele foi preso e não voltou. Foi torturado e assassinado. Esses anos foram de grande tensão e luta, e de enormes amarguras. Como não tinha direitos políticos, eu não podia nem assinar coisa nenhuma, não podia ter operações em bancos públicos, atuava na qualidade de procurador de Yolanda.

Quando o senhor resolveu "sair do exílio" do Rio de Janeiro e voltar para a Bahia?
A decisão de voltar à Bahia era definitiva e permanente. Tinha sempre isso na cabeça. Um dia, já depois da anistia, o professor José Honório Rodrigues, nosso admirável historiador me interpelou: "Tenho uma notícia para a qual não consigo explicação. Você vai sair daqui, onde é uma presença política forte, da nossa estima, e vai para a Bahia?". Eu disse: "é verdade, sou baiano". Ele contestou: "mas fazer essa luta política na Bahia? Você não conhece a história das oligarquias baianas desde o século XVI?" Respondi: "conheço sim. E é exatamente essa a minha tarefa, derrotar essas oligarquias". Não via como continuar empresário e fazer política. Vendemos a empresa. Voltei para a Bahia e fui caminhar pelo estado inteiro, muitas vezes até falando para 3, 4, 5 pessoas, apenas.

Que situação o senhor encontrou?
Voltei em 79, 80, o governador era Antônio Carlos Magalhães, já no seu segundo governo, nomeado pelos militares. A Bahia era a expressão da dominação absoluta do coronel urbano, que tomava conta dos departamentos públicos por sua relação com o governo federal. O quadro era de intimidação, medo generalizado, perseguição política, violência à cidadania. Vi isso quando saí pelo interior com os companheiros da época, numa caminhonete, com dois alto-falantes, percorrendo os municípios para tentar organizar as comissões provisórias do MDB. Com a anistia, eu entrei para o MDB, depois PMDB.

Chegávamos, o carro circulava anunciando as presenças de Waldir Pires, Rômulo Almeida, Fernando Santana, Domingos Leonelli, Filemon Matos, e outros, informando que dentro de meia hora nos encontraríamos na praça mais importante da cidade para falar à população. Às vezes eu percebia as pessoas atrás das janelas, com as venezianas abertas, escutando, mas poucas, muito poucas, fora de casa, nas ruas ou na praça. Falávamos 40 minutos, uma hora, explicando a situação e o quadro de privações e obscurantismo no interior da Bahia. Fomos crescendo e eu fui designado pela convenção do PMDB para ser candidato a governador já em 1982. Não foi possível. O pacote do governo estabelecendo a vinculação dos votos desaconselhava a candidatura.

Como se tornou ministro da Previdência em 85?
Por convite de Tancredo Neves. Com a morte de Tancredo Neves, o dr. José Sarney assumiu a Presidência, mas não seria a pessoa capaz de realizar a transição, não poderia ser o líder da construção de um estado democrático, pois colaborara com a ditadura, tinha sido presidente da Arena. Mas eu já era ministro, nomeado por Tancredo. Claro que essa nomeação teve que ser ratificada.

Tinha conversado com Tancredo sobre o ministério, dizendo-lhe que podia até admitir a hipótese de que ele houvesse sido constrangido a nomear uma pessoa da qualidade de Antônio Carlos Magalhães, mas que me parecia um tremendo erro sua designação para as comunicações. A tarefa que lhe viria pela frente era de participar de um governo que iria construir as bases do regime democrático, para a qual era absolutamente inadequado. Tancredo me disse: "Waldir, tive que fazer, mas fique tranqüilo, porque quem será ministro das comunicações serei eu". E morreu...

O ano 1985 foi portanto de enorme tensão e ao mesmo tempo de grandes experiências e emoções. Eu havia deixado o Palácio do Planalto na madrugada de 2 de abril de 1964 e lhe subia novamente a rampa 21 anos depois, em março de 1985.

Como foi sua gestão à frente do Ministério da Previdência?
O Ministério representava uma experiência difícil, pela carga de descrenças que o envolvia. Longo trajeto de déficit financeiros, processos de corrupção e de negligência com os interesses fundamentais da seguridade social, da vida dos aposentados. Foi um desafio enorme, tivemos grande êxito e fizemos transformações significativas, com o compromisso de servir aos inativos, à grande parte do povo que tem na previdência a segurança do seu destino.

Busquei desde o primeiro instante contar com a colaboração, a ajuda e depois o entusiasmo de todo o corpo de servidores da Previdência. Com cerca de três meses de exercício, começamos a nutrir a expectativa de que viria a ser e depois pagavam os benefícios. Só que o pagamento das empresas ficava por dez dias indisponível para a previdência, em uma fase inflacionária como era a da época, para aplicações pelos bancos em seu própria benefício. Identificamos esse desvio e partimos para a revogação desse desvio intolerável de recursos públicos.

Tomamos uma série de medidas que estabelecia ampla transparência. Convocamos a participação da sociedade civil, a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), a OAB, as instituições sindicais e patronais, mais a Procuradoria-Geral da República, os procuradores e servidores da Previdência. Uma das medidas, no campo da prestação de serviços à população, era o mecanismo das cartas para os usuários do sistema de saúde da previdência e hospitais conveniados, indagando se porventura eles tinham estado no hospital, ou clínica, se tinham recebido tais e quais tratamentos, e inclusive o número de dias de internação. Aí foram descobertas muitas fraudes. Foi possível então com a fiscalização participativa chegar ao déficit da previdência num combate incessante à fraude. O crescimento da arrecadação superou o do tesouro nacional em mais de 8%, em 1985. Cresceram os serviços e se multiplicaram as políticas públicas. E reduziu-se o custo.

Mas o senhor deixou o Ministério para se candidatar ao governo da Bahia...
Minha candidatura ao governo do estado era absolutamente natural. Desincompatibilizei-me em fevereiro de 1986. Foi uma bela campanha, talvez a mais bonita da Bahia. Ganhei a eleição com 1,5 milhão de votos de frente.

Como foram esses dois anos de governo?
Encontramos o estado arrebentado. Não havia recurso algum, os pagamentos do funcionalismo e das transferências aos municípios estavam atrasados e havia uma degradação devido ao crescimento da despesa clientelista. Nas duas administrações que antecederam o meu governo, foram feitas 100 mil nomeações, sendo que no ano da eleição foram mais de 50 mil. As matrículas das crianças eram feitas com pistolão de políticos.

Tomamos diversas medidas. Nunca atrasamos o pagamento dos salários, um compromisso sagrado. Foi o único governo estadual, no país, naquele ano, a pagar os gatilhos do plano Bresser até abril de 1988, quando o plano foi extinto. E em seguida adotei o critério de que 80% do incremento da arrecadação tributária seriam destinados ao aumento dos servidores e 20% ao aumento do custeio da administração para nos contrapormos à perda de capacidade de compra decorrente da inflação.

Reservamos para investimentos nesta fase os recursos oriundos dos Fundos Tributários. Enviamos ao Poder Judiciário, no qual permaneceram sem julgamento, centenas de processos civis e criminais. Restauramos o crédito do estado, que era inexistente. A luta contra as mordomias e os desperdícios passou pela extinção de mais de 2 mil cargos de direção e de assessoramento não-prioritários. Nunca admiti a perseguição a nenhum servidor público por motivo político ou ideológico.

Instalamos as comissões comunitárias em mais de 200 municípios para aplicação dos recursos contra a seca, das quais participavam o prefeito, vereadores de todos os partidos, padres, professores, comerciantes, representantes da comunidade. Encontramos a administração desprovida de projetos. Tudo era improvisado. Preparamos e organizamos cerca de 2 mil projetos, de vários níveis e tamanhos, que estão discriminados no plano estratégico da administração, muitos deles implantados.

Reativamos mais de 800 leitos hospitalares, construímos o hospital geral de Salvador. O sistema de saúde se ampliou em não menos de 30%. Foram mais de 5500 salas de aula construídas ou recuperadas, com a ampliação de mais de meio milhão de vagas na rede estadual, com matrículas não admitindo clientelismo, todas elas estabelecidas segundo a distância e a residência das crianças.

Com a participação das organizações de trabalhadores rurais, implantamos mais de 10 mil propriedades no programa de reforma agrária. Recebemos elogios, inclusive o Banco Mundial classificando como a melhor experiência de reforma agrária do Brasil, no momento. Além de programas de moradias populares e abastecimento de água.

Trinta dias depois de eu deixar a administração começavam os repasses da nova regulação tributária da Constituição de 88. De modo que a previsão de recursos líquidos no tesouro era de 150 milhões de dólares livres, para investimentos, no segundo semestre. Eu tinha vencido as dificuldades administrativas e financeiras na ocasião em que deixei o governo e o havia sinalizado com a marca de publicar diariamente, no Diário Oficial, o balancete do dinheiro que entrava e saía cotidianamente do Tesouro do Estado.

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Como o senhor definiria a essência do seu governo?

A essência estava sobretudo no método e nas prioridades da iniciativa governamental. Nenhum desperdício. Preocupação de restaurar a segurança dos cidadãos, de não permitir jamais que tropas da polícia os desrespeitassem, nenhuma tolerância com a impunidade, seja no crime do patrimônio, seja no enriquecimento por corrupção, seja na violência física. A Bahia tinha um dos índices mais altos de assassinatos de trabalhadores rurais, no meu governo não houve nenhuma morte por violência no campo.

Eu organizava a ida do governo com o secretariado e toda sua estrutura às diversas regiões do estado, onde elaborávamos projetos de desenvolvimento regional. Em 1988, em Itamaraju, onde discutíamos o que seria o projeto de desenvolvimento do extremo-sul da Bahia, me foi solicitado que recebesse o Movimento Sem-Terra. Fomos o primeiro governo de estado a receber institucionalmente o MST, em audiência pública, longa e participativa, no país.

Por que o senhor deixou o governo na metade do mandato?
Esse foi um dos instantes mais difíceis da minha vida. Em 1989 começaram a chegar a Salvador dezenas de delegações querendo a minha candidatura a presidente da República. Uma onda crescente. Disputei a convenção do PMDB. Havia três candidaturas que disputavam: a de Ulysses, que havia comandado o processo da redemocratização, a minha e a do senador Íris Resende, da área conservadora, que representava o Centrão, apoiado por Sarney. Ganhou Ulysses Guimarães, por uma margem mínima em um universo de aproximadamente mil convencionais. Perdi a convenção por 29 votos, deixando lá atrás o candidato conservador. Ao voltar para a Bahia, todas as forças do PMDB, a direção nacional, os governadores, queriam a união do partido. Os argumentos eram poderosos: primeiro a idéia de que não se transforma nada no Brasil se não se chegar à Presidência da República; segundo, eu tinha enorme admiração pela luta política de Ulysses; e ainda nas minhas mãos estava a unidade do PMDB. A convenção para definir o candidato à vice-presidência foi em maio de 89, quando a candidatura do Collor já estava nas pesquisas com mais de 30%, a esquerda dividida entre Brizola e Lula, cada um com 9 ou 10%, há meses. Ulysses tinha 6 ou 7% e mais a força do PMDB – 22 governadores e cerca de 4 mil diretórios em praticamente todos os municípios. Havia uma grande pulverização de candidaturas, como as de Covas, Afif, Roberto Freire etc. Ulysses era deputado federal por São Paulo, eleito com mais de 500 mil votos, em 1986. Depois de Lula que passara dos 600 mil votos, fora o deputado mais bem votado no país.

A idéia básica era a união de todas as forças e restaurar os compromissos do velho MDB. Minha visão era de que podíamos fazer uma grande luta. O Collor, candidato fortíssimo naquele instante, era desonesto e eu sabia disso, e ainda articulado com as forças que estavam encampando o neoliberalismo na América Latina. O México, a Argentina e o Chile já tinham caído. Passei noites de verdadeira angústia. Parecia a única oportunidade de evitarmos a vitória do Collor.

Era a união do PMDB e com isso a possibilidade de conquistarmos um lugar no 2o turno. Esse era naquele instante o que eu achava ser o meu dever, seria um grande sacrifício. Mas como poderíamos ter derrubado uma ditadura militar para depois entregar a direção do país a Fernando Collor? Podia simplesmente ceder ao mais fácil, estava plenamente vitorioso, tinha chegado à metade do mandato e tinha vencido todas as batalhas. Toda a programação do projeto econômico e administrativo do governo estava pronta. Acabei deixando o governo para uma luta enorme e sem êxito. Ulisses, ao invés de crescer, decresceu e perdemos as eleições.

Foi um erro, portanto?
O erro ou o acerto, em política, de alguma forma estão vinculados à vitória ou à derrota. Não é um erro no sentido da destinação política do Brasil. Provavelmente, hoje, eu não me perdoaria se não tivesse feito o máximo para evitar Collor vitorioso. A década de 90, por ele iniciada, foi um desastre para a Nação. Infelizmente houve grave desarticulação das forças de resistência ao senhor Antônio Carlos Magalhães. Na realidade, eu não trabalhei com a hipótese de que haveria tantos e sucessivos momentos de acomodação e complacência da classe política, na Bahia e no país.

O que significa o ACM para o povo da Bahia?
São tantos anos de convivência na vida política e institucional em campos opostos! Antônio Carlos Magalhães é uma pessoa da minha geração, nos elegemos em 1954, pela primeira vez para deputado estadual, ele na UDN e eu no PTB. Ele é uma personalidade do coronelismo. É um coronel com todas as qualificações típicas.

Mas coronel não deve ser ligado à área rural?
Ele é coronel no sentido do exercício do poder em benefício dele próprio, do poder que mantém as relações de atraso. Não é o coronelismo do latifúndio. É o coronel urbano, da apropriação dos instrumentos do poder do Estado, para uma política de atraso e de corrupção. O coronelismo de Antônio Carlos Magalhães é também a ligação com os donos do poder federal. Ele está no poder desde 64. Foi prefeito de Salvador no período de Castelo Branco, nomeado por Lomanto Jr., saindo para ser governador até 1974, depois assumiu a presidência da Eletrobrás e voltou ao governo do estado já na época do Figueiredo. Serviu a vida toda a todos os governos, militares ou não, da ditadura ou não. Abandonou a ditadura na fase final, porque enquanto imaginou que o poder militar sobreviveria permaneceu no PDS. Só saltou para apoiar Tancredo quando estava tudo destruído, dando a impressão de que estaria prestando um grande serviço, evitando uma interrupção do processo de abertura. Ora, ninguém mais deteria esse processo no Brasil! Ele se tornou ministro de Sarney. Durante 5 anos no ministério fez a grande manipulação dos negócios das comunicações e se tornou dono, praticamente, de todo o sistema de telecomunicações na Bahia. Depois, apoiou Collor, abandonando o candidato do seu partido, o ex-vice-presidente Aureliano Chaves. Juntou-se a Fernando Henrique e construiu a armação da reeleição.

Antônio Carlos exerce o poder na base da clientela pessoal, da fidelidade pessoal, dos interesses pessoais, enriquecendo-se e enriquecendo os seus parentes próximos. É um coronel mantendo a Bahia atrasada, com indicadores sociais terríveis, disputando com o Piauí os piores índices no Nordeste. Um coronel que não tem a terra, mas tem o exercício do poder do estado para ter mais dinheiro e para ter mídia, que serve ao seu acúmulo patrimonial e de poder. Hoje seu grupo familiar é poderoso, fez fortuna. Para quem nunca foi empresário, como explicar isso?
Salvador, a cidade bonita e encantadora, fora daquele corredor de turismo, você vê quadros desoladores da vida das famílias, das crianças, dos jovens, os índices mais deprimentes de desemprego. Ao lado disso, a manipulação, o monopólio da mídia e do dinheiro para corrupção do processo eleitoral, o controle das instituições, a corrupção de grandes áreas do Judiciário.

A televisão dele é como se não fosse concessão de serviço público, ele trata como se fosse o seu botequim. De modo que isto é uma degradação do processo político.

Como alguém que vem do PSD, passa pelo PTB, pelo governo Goulart, pelo PMDB, cujos companheiros daquele momento, ou estão parados, ou então fizeram opções mais centristas, opta pelo PT?
O PT é para mim hoje a única alternativa para viabilizar o que constituiu a essência dos meus sonhos políticos. Na minha geração, a grande esperança era construir uma sociedade de liberdades com grau crescente de integração social, justiça social, desenvolvimento, redução da pobreza, supressão dos preconceitos de toda natureza. Os princípios republicanos eram nossos compromissos. Que pudessem ser dominantes na sociedade brasileira e a democratizassem, pelos valores da solidariedade eficiente.

Derrubamos a intolerância e a barbárie do nazismo e as formas múltiplas de fascismos. De mim, nunca admiti que pudessem ser sacrificadas as liberdades individuais em nome da conquista das igualdades. Devo isso a algumas leituras da minha adolescência, nos trabalhos de Harold Lasky, ao velho João Mangabeira, no Brasil. E a minha formação religiosa nos princípios do Cristianismo.

E o que faz uma pessoa com essa formação optar pelo PT?
O conjunto desses compromissos íntimos e ideológicos. A minha geração foi muito mobilizada pelo pensamento da esquerda democrática. Havia dois campos na esquerda: um que era o do Partido Comunista, com uma visão marxista ortodoxa e compreendendo a instrumentação da ditadura do proletariado; e outro que imaginava, como era o meu caso, que o ideal para o país seria chegarmos a atingir o bem-estar social num regime de socialismo democrático, com liberdades, com garantias dos cidadãos e ao mesmo tempo com a segurança do atendimento às necessidades das pessoas. A esperança e o desafio de um reformismo revolucionário.

O PT é uma experiência singular. A mais significativa na história política do Brasil. É o primeiro partido de esquerda que se declara democrático e pratica internamente a democracia de forma plena. Paga inclusive um preço por sua fidelidade aos métodos democráticos, tem reputação de assembleísmo, de reuniões demasiadas e de excessiva consulta às bases. O que é admirável num partido que vem se preparando, ao longo desses 21 anos, para dar um salto de transformação essencial na vida do nosso povo.

O PMDB não chegou a ser um partido político, a rigor. Foi a grande frente de luta para a derrubada da ditadura, mas foi uma reunião de quadros políticos nessa frente, que não se constituiu com um ideário nítido, que consolidasse uma certa homogeneidade de comportamento, de objetivos e diretrizes, de compromissos com a essência democrática da sociedade brasileira.

O PT é a alternativa, porque nos outros partidos de esquerda, a meu juízo, não há essa síntese decorrente da união íntima das massas com lideranças intermediárias até chegarem às lideranças mais expressivas do partido.

O que foi o governo Fernando Henrique?
Um desastre para o país e para as novas gerações. Na realidade não se pode fazer uma aliança com o núcleo do pensamento contra o qual lutamos. Por isso, o governo FHC é tão submisso à dependência e ao conservadorismo das estruturas sociais. Nada assim, de novo, se construirá. Não é possível fazer uma aliança com o PFL, que é o núcleo do pensamento mais atrasado e conservador do país, vendendo a idéia do progresso social e do respeito aos anseios de bem-estar da população. É um engodo. Fernando Henrique acumpliciou-se e tornou-se prisioneiro. Perdeu a credibilidade. Houve instantes em que sua própria dignidade pessoal e funcional, de presidente da República, foi tripudiada e amesquinhada dentro do próprio núcleo da aliança que organizou, e perante a Nação. Provavelmente instantes de dano irrecuperável.

A aliança, em política, deve e pode dar-se até com a periferia do adversário, para enfraquecer-lhe o núcleo e, afinal, derrotá-lo. Jamais o que Fernando Henrique fez. Hoje o desafio político brasileiro é gigantesco, depois do seu governo. Porque a Nação vai ter que recuperar a autonomia, seriamente reduzida, de sua capacidade de tomar decisões políticas e econômicas. Houve grave dano à soberania nacional. O grau de dependência ficou intolerável e perigoso para o destino das novas gerações. A alienação gratuita do patrimônio público, a desnacionalização da economia, o desmantelamento do aparelho de Estado, a incompetência técnica e a complacência com a corrupção – tudo isso desarma a Nação para as tarefas do desenvolvimento e da construção do futuro.

Tenho uma grande esperança na alternativa radicalmente oposta a este quadro de dominação incapaz e leviana. A decisão das urnas de 2002 espero que confira ao PT e às forças com ele conjugadas a missão da organização democrática da sociedade brasileira, socialmente justa, no processo eficiente de desenvolvimento econômico, tecnológico, político, de integração social, de inserção autônoma e competente do Brasil no mundo contemporâneo. A Presidência de Lula é penhor desse desafio, pela experiência de sua formação e de sua vida, sua inteligência, sua coragem, sua firme sagacidade negociadora – para o Brasil melhor e a vida mais próspera e feliz do nosso povo.

(Colaborou Viviane Falcão)

Emiliano José é jornalista, vereador do PT em Salvador (BA)

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