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O Brasil é o país onde mais se mata com armas de fogo no mundo, com 43,2 mil mortes, em 2016, e 52 mil em 2017. Mata-se mais com armas de fogo do que no país do Velho Oeste

Segundo a ONU, o ambiente doméstico é o local onde se concentra o maior número de assassinatos de mulheres no mundo. Foto: Agência Brasil

Quando se diz para o cidadão que se arme, que tipo de mensagem é passada?

Segundo dados pesquisados pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso)1, junto ao Mapa da Violência, graças ao decreto do desarmamento 135 mil vidas foram salvas entre 2004 e o ano de 2016.

Contudo, a posse de arma de fogo foi flexibilizada graças ao decreto emitido pelo presidente da República Jair Bolsonaro, e hoje o cidadão comum pode ter à sua disposição, seguindo os preceitos legais, uma arma de fogo.

Armas de fogo

Os Estados Unidos é o país onde a posse e o porte de arma de fogo são garantidos por força de sua constituição, contudo, ainda assim, no Brasil, mata-se mais com armas de fogo do que no país do Velho Oeste. Aliás, segundo estudos, o Brasil é o país onde mais se mata com armas de fogo no mundo2, com 43,2 mil mortes.

No Brasil, temos, por ano, a explosão de uma bomba nuclear3, igual aquela jogada em solo japonês (pelo país do Velho Oeste), ou seja, 61.500 pessoas são assassinadas por ano, levando-se em consideração dados do relatório de 2017 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública4. Contudo 85% das mortes violentas intencionais são cometidas com arma de fogo, ou seja, 52 mil pessoas vitimadas.

Feminicídio

Um dado alarmante. Um estudo realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em 2018, algum tempo após positivação do crime de feminicídio no país sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em março de 20155, informa que o Brasil lidera em números absolutos o ranking de assassinatos com 1.133 vítimas (2017), sendo que na América Latina os números foram de 2.7956.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o ambiente doméstico é o local onde se concentra o maior número de assassinatos de mulheres no mundo, 58% dos casos, sendo que, em 2017, 81 mil mulheres foram vítimas de feminicídio7.

O Instituto Sou da Paz, em seu relatório8, afirma que 2.339 mulheres foram assassinadas mediante uso de arma de fogo no ano de 2016, sendo que 560 foram mortas dentro de suas casas. No referido ano, foram registrados os assassinatos de 4.245 mulheres9, contudo, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de assassinatos de mulheres no ano seguinte (2017) foi 4.539, ou seja, um aumento de 6,1%.

Desse modo, a cada 24 horas uma mulher foi assassinada por arma de fogo no Brasil em 2016.

Homofobia

O Brasil ainda é o país em que se mais assassinam pessoas da comunidade LGBT no mundo, segundo a ONU10.

De acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia de 2018, 30% das vítimas do crime de ódio foram assassinadas por arma de fogo, enquanto a arma branca cortante foi o objeto responsável por 25% das mortes. Dessas mortes, 56% das vítimas foram assassinadas na via pública, e 37% em seus lares11.

Em 2018, houve 42 mil casos de homicídios registrados, muito mais do que nos treze países do Oriente e da África, onde existe perseguição e pena de morte pelo simples fato de a pessoa ser homossexual.

Crianças e jovens

Segundo o Observatório da Criança e do Adolescente da Fundação Abrinq12, no ano de 2016, 9.164 crianças foram vítimas de arma de fogo, sendo que em 2017 esse número aumentou para 9.437, um crescimento de 16,8%.

Alguns dados chamam a atenção. Segundo dados do Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança13, 49,1% dos jovens de 15 a 19 anos foram assassinados. Outro fato também chama a atenção até pela contrapartida comparativa, crianças de 10 a 14 anos somam 13,2%, enquanto adultos de 39 a 40 anos são vitimados em 10,1% dos casos.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em seu estudo, anuncia que no Brasil 31 crianças e adolescentes são assassinados por dia, isso levando-se em consideração os números de 2015, quando 11.403 adolescentes entre 10 e 19 anos foram assassinados, sendo 10.480 meninos14.

Naquela época, segundo o estudo, se não houvesse uma mudança significativa no país, de 2015 a 2021, 43 mil adolescentes de 12 a 18 anos perderiam suas vidas.

Sistema prisional brasileiro

O Brasil tem sua população carcerária composta por exatos 729.551 detentos15, sendo a nação com a terceira maior população carcerária do planeta, ultrapassando a Rússia e perdendo apenas para China (1,6 milhão) e EUA (2,1 milhão)16.

Contudo, os presídios brasileiros são tomados por facções criminosas, a exemplo do estado de São Paulo, onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) se expandiu através da rede carcerária com a criação de “Sintonias” vinculadas organicamente à estrutura paulista17.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Dessa forma, levando-se em consideração os dados acima, foram criados três cenários, a exemplo de um relatório de inteligência.

1º Cenário – Corrida armamentista

Vamos recordar a pergunta efetuada logo no começo do artigo: Quando se diz para o cidadão que se arme, que tipo de mensagem é passada?

Segundo estudos efetuados por membros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma verdadeira corrida armamentista foi efetuada no começo dos anos 1980, graças à incompetência do Estado, que, por conta de uma estagnação econômica, não conseguiu suprir a segurança da população, facilitando desse modo o acesso às armas de fogo18.

Aqueles com idade maior que 40 anos devem se lembrar que nos anos 1980, era possível adquirir uma arma de fogo em qualquer magazine. Propagandas em jornais de circulação atiçavam a vontade do cidadão que, por conta da ineficiência do Estado, tentava a compra de uma arma para se “defender”.

Figura 2 – Fonte: https://www.propagandashistoricas.com.br/2018/02/revolver-taurus-mesbla-anos-80.html

Contudo, em razão da flexibilização do acesso à arma de fogo, sem que se esqueça do congelamento do investimento em políticas públicas através da PEC 241, inclusive em segurança pública19, poderemos ter uma segunda corrida armamentista e, assim, aumento de homicídios no país.

2º Cenário – Aumento da violência e, por conseguinte, o aumento do assassinato de mulheres, crianças e membros da comunidade LGBT

Em razão do Estatuto do Desarmamento, 160 mil vidas foram salvas, segundo estudo apontado no Mapa da Violência de 201520 com dados de homicídios de 2004 até 2012, ou seja, 20 mil vidas salvas a cada ano em uma conta simples.

Uma arma de fogo no lar nunca será garantia de segurança, ao contrário, muitos são os incidentes que ocorrem quando as crianças encontram tais armas e acabam tirando a própria vida ou de quem está próximo.

A violência contra a mulher, que já detinha dados alarmantes sem que o dispositivo que favorece o acesso estivesse em vigor, agora, com a possibilidade de uma arma dentro de casa, em uma sociedade patriarcal e machista, tende a aumentar ainda mais, sem contarmos a violência contra a comunidade LGBT; se por ventura membros da comunidade LGBT são mortos nas vias públicas, a mulher tende a sofrer a maior incidência da violência dentro da própria casa.

Nesse cenário, infelizmente, os números da violência contra a criança e o adolescente não serão diferentes, sendo que os dados de 2018 ainda estão sendo computados pelas organizações de estudo.

3º Cenário – O cidadão comum frente à ameaça das facções criminosas

O cidadão que pretende ter uma arma em sua casa, ou mesmo a posse, sabe que enfrentará um cenário de violência que nem um policial é capaz de antecipar, mesmo com toda sua preparação. O fator surpresa sempre está a favor daqueles que vivem à margem da lei.

Para ter uma arma, o cidadão deverá ir atrás da documentação necessária para adquirir. Além dos gastos com tais documentos, temos o custo de uma arma de fogo, que não é baixo, o custo de exames médicos (particular) e o curso de tiro e manuseio, que também não é em conta, além de comprovar que na sua residência existe um cofre para poder guardar a sua arma.

Nesse cenário, não podemos olvidar de dois fatos:

1º - Em caso de reação e o cidadão for morto pelo bandido, vida que segue, mais uma morte para alimentar os dados estatísticos e uma família toda destruída.

2º - Em caso de “sucesso” ao reagir a um assalto, o cidadão mata o fora da lei, sendo que nesse exato momento os seus problemas começam. Terá que enfrentar um longo processo penal, com idas e vindas a delegacia e fóruns, onde terá contato com os familiares da vítima e contato com os possíveis parceiros de crime.

Sabemos que hoje, no estado de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC) controla os presídios e o crime organizado fora dos seus muros. O próprio policial, mesmo contando com o corporativismo da sua instituição, tem dificuldades para lidar com as lidas do seu ofício, quanto mais o cidadão comum que terá de enfrentar o ódio de membros de facção, caso tenha a infelicidade de assassinar, durante sua reação, um integrante do PCC ou algum bandido que tenha afinidade com a organização, mesmo que não tenha se batizado em suas fileiras.

O cidadão comum contará com proteção 24 horas das forças policiais de São Paulo? Até quando? Com certeza o cidadão e a cidadã têm família. Terão sossego para ir ao seu trabalho de manhã, terão tranquilidade ao deixar os seus em casa?

Caso sua companheira ou seu companheiro trabalhem, como fica sua situação no bairro onde mora? Vai mudar de vizinhança até quando, no momento em que as ameaças começarem? E a escola das crianças?

Se os policiais de São Paulo foram vítimas da guerra com o PCC em 2012, quando mais de cem agentes da lei foram mortos21, o que não poderá acontecer com um cidadão comum?

Conclusão

A facilidade do acesso às armas de fogo, por parte do atual governo, só traz uma resposta à questão inicial, a sua ineficiência e falta de organização e propostas de gestão para o combate à violência, às facções criminosas e capacidade real de proporcionar segurança à população, a ponto de dizer abertamente aos brasileiros: armem-se, não terei competência para protegê-los.

Abdael Ambruster é membro do Grupo Policiais Antifascismo, pós-graduado em Segurança Pública e Direitos Humanos, agente de segurança penitenciário, ex-diretor de Inteligência de um órgão governamental