Sociedade

A falta de informações concretas e fidedignas sobre a execução do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas gera incerteza quanto ao futuro das comunidades quilombolas de Alcântara, que mantêm constante resistência

Plenária final de aprovação do Documento Base do Protocolo sobre Consulta das Comunidades Quilombolas de Alcântara Foto: Arquivo Mabe

1.Nos dois primeiros dias de agosto de 2019 ocorreu na sede municipal de Alcântara uma série de debates com a participação de mais de uma centena de representantes das comunidades quilombolas afetadas pelo Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), firmado entre o Brasil e os EUA em março de 2019. A implantação deste AST implicaria o deslocamento compulsório de centenas de unidades familiares das referidas comunidades e os debates objetivavam examinar os pressupostos elementares para a elaboração de “Documento Base do Protocolo sobre Consulta e Consentimento Prévio Livre e Informado das Comunidades Quilombolas de Alcântara”. Tais discussões foram organizadas pelo Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais (STTR), pelo Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Sintraf), pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) e pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (Momtra), com apoio da Associação do Território Quilombola do Território de Alcântara (Atequila), da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema) e do CCN, e contaram com a presença de 114 representantes das mais de 150 comunidades atingidas pelos efeitos da implementação do AST. Os organizadores sublinharam que o AST foi firmado em 18 de março de 2019, em Washington, pelos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, e publicado no Diário Oficial da União, em 24 de maio de 2019, sendo prontamente encaminhado para tramitar no Congresso Nacional

2.O STTR de Alcântara, o Sintraf, o Mabe e o Momtra se mobilizaram nas audiências públicas ocorridas nas comissões da Câmara dos Deputados e na de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. Nessas Comissões não foram veiculadas, entretanto, quaisquer informações oficiais, prévias e práticas, sobre a implementação efetiva do AST. Os dados publicamente fornecidos, em Nota Conjunta de três ministérios (MRE, MCTIC e MD) enfatizaram principalmente as “possibilidades de utilização comercial do Centro Espacial de Alcântara, para lançamentos de satélites e outros objetos espaciais”1, salientando o ingresso do Brasil no “mercado espacial mundial como um forte participante do segmento de lançamentos”. (ibid). Um folder da Agência Espacial Brasileira (AEB), distribuído em audiências do Congresso Nacional, com pretensões pedagógicas, informava genericamente, dentre outros, sobre a “terminologia”, os “benefícios” e o porquê do acordo firmado com os EUA e qual sua importância, sem conter nenhuma informação concreta sobre a modalidade de implementação. Quando? Como? O cronograma de execução aludido menciona apenas as etapas de operações comerciais e a data estimada dos primeiros lançamentos. A Agência Brasil noticiou de maneira resumida e algo lacônica a entrada em vigor do AST, elidindo completamente o papel do governo dos EUA e dando ênfase tão somente às empresas privadas, sublinhando notadamente “a exploração da base espacial de Alcântara, no Maranhão, para atividades espaciais por companhias estadunidenses e as proteções que estes agentes terão no desenvolvimento de ações no local, como lançamento de foguetes e satélites.” Numa única frase, sem também nada adiantar sobre a implementação efetiva e mencionando medidas de proteção às comunidades jamais aventadas concretamente, o comunicado da referida agência afirmava: “No Congresso, foram realizadas audiências públicas nas quais foram apresentadas diversas posições. As maiores polêmicas estiveram centradas não na aprovação do acordo, mas nas medidas para proteção das comunidades quilombolas da região”2.

Verifica-se esta preocupação constante em dizer que posições contrárias foram manifestas como a sugerir uma consulta ampla, que contemplou o contraditório. As referências explícitas a “proteções” concernem às empresas estadunidenses e não às comunidades quilombolas. Rebatendo indiretamente este propósito, as entidades representativas dos quilombolas asseveraram, desde a abertura da reunião de primeiro de agosto de 2019 e das mobilizações posteriores, a observância irrestrita dos dispositivos que disciplinam a consulta e consentimento prévio, livre e informado das comunidades quilombolas de Alcântara. Através do representante do STTR, o seguinte foi afirmado:

“Aqui nós queremos dizer como queremos que seja feito o Protocolo de Consulta e a própria consulta. Não queremos que o governo venha aqui, faça uma reunião e diga que consultou. A consulta consiste num instrumento apropriado às condições de cada comunidade e deve ser por elas conduzida.”

O representante do Mabe, por sua vez, reiterou mais de uma vez:

“Quem das agrovilas foi consultado se queria sair de suas terras ou não? Quem? Como é que se vai separar o conteúdo desse acordo da maneira de implementá-lo? Como querem que concordemos com o acordo sem saber exatamente o que vai suceder com nossas famílias e nossas comunidades?”

Outro representante da mesma entidade arrematou de maneira consecutiva:

“Neste caso de Alcântara a consulta já surge como reivindicação de um direito, mas paradoxalmente em face de um fato consumado. O acordo já foi assinado. Já foi aprovado. Estamos diante de uma situação de fato. E como nós vamos lidar com isto? Aceitar que nos empurrem decisões, já tomadas de antemão, goela abaixo?”. Ou ainda: “Depois de 40 anos de luta só três coisas me assustam: guerra, fome e epidemia, porque planos de governo sempre já vem bem definidos.”

Os documentos oficiais, persistindo na ocultação de quaisquer informações concretas, de qualquer medida de execução, insistem em falar na “elaboração de um plano de negócios” ou “plano de operações comerciais do CEA”, como se tivessem dialogando direta e principalmente com empresários e prováveis investidores. “A expectativa é que os lançamentos iniciem em 2021”3, descrevendo uma segunda etapa após a aprovação do AST. Estratégias empresariais pensadas idealmente se entrecruzam com os planos militares de gerenciamento.

As dificuldades de informações concretas e fidedignas sobre a execução do AST e como seria implantado – qual a área por ele requerida, se haverá deslocamento de famílias e que sítios de lançamento serão necessários e onde se localizarão – geraram entre os representantes das comunidades quilombolas apreensão e temor. Um temor de repetição de atos arbitrários e trágicos como foram os deslocamentos forçados para as agrovilas em 1986, eufemizados então pela denominação de “reassentamentos”, que separaram as unidades familiares do oceano, onde exercem sua principal atividade de pesca; de cemitério, dos locais de cultivo, que designam de roças; dos outeiros onde colocaram suas unidades residenciais e das nascentes. A incerteza quanto ao futuro das comunidades parece estar se disseminando, mais uma vez, entre as famílias quilombolas e marcou profundamente as reuniões, o seminário e o encontro ocorridos no STTR de Alcântara no decorrer de 2019 e neste início de 2020. O resultado das reuniões, que caracterizaram aquelas atividades coletivas realizadas nos primeiros dias de agosto de 2019, consistiu na aprovação, ao final do encontro, do “Documento Base do Protocolo sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado das Comunidades Quilombolas de Alcântara”. Os pressupostos ficaram gravados nas memórias dos debates, sobretudo aqueles assinalados pelo jurista Carlos Marés, que fez uma exposição sobre a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), destacando que sempre que houver um ato de Estado com efeitos quaisquer que sejam sobre a vida social tem de existir consulta. A consulta pressupõe que sejam apresentados publicamente todos os dados do projeto ou do empreendimento que produz impacto. A lógica do Estado é diferente daquela das comunidades. Em virtude disso tem-se uma polêmica: para determinadas interpretações compete ao Estado saber como as comunidades se organizam e se posicionam face aos empreendimentos planejados, enquanto que para outras interpretações o Estado não tem que se meter numa decisão que é intrínseca aos consultados ou afetados pelos empreendimentos. Nesta ordem prevaleceu uma noção de protocolo bem precisa, como uma norma criada pelas comunidades para dizer como será o processo de consulta

3.A este tempo da tramitação do AST no Congresso Nacional, entre maio e dezembro de 2019, as entidades representativas das comunidades quilombolas tiveram conhecimento de e-mail da deputada indígena do Partido Democrata pelo Novo México, Debra Anne Haaland4, autora de duas emendas no parlamento norte-americano que, em resumo, chamavam a atenção para o fato de que a expansão da base de lançamentos de foguetes em Alcântara implicaria necessário deslocamento de comunidades. Uma das emendas é bastante categórica e afirma que nenhum fundo federal poderá ser destinado para que os Estados Unidos forneçam ajuda ou cooperação em segurança para que o governo do Brasil realoque “involuntariamente, incluindo por meio da coerção ou do uso da força”, as comunidades indígenas ou quilombolas no Brasil. Esta emenda é autoevidente. Ela diz por si só, apresentando uma outra face de forças políticas norte-americanas, não comprometidas com propostas de inspiração colonialista ou com projetos comerciais articulados com o capitalismo financeiro e com políticas imperialistas de militarização do espaço sideral que, como veremos a seguir, aspiram dominar militarmente os céus e a terra.

4.De maneira concomitante o STTR e o Sintraf, sentindo os riscos advindos do grau de desinformação e antevendo medidas drásticas e imprevistas, foram impelidos a recorrer a agências internacionais. Recorreram à Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, solicitando sua contribuição para que as comunidades tenham as informações concretas necessárias à sua apreciação e também que procedam a investigações contra o governo brasileiro numa queixa formal das violações de direitos mediante planos de expansão da base de lançamento de foguetes com a remoção compulsória de comunidades quilombolas. A decisão de admissibilidade da queixa contra o Brasil foi tomada no dia 7 de novembro de 2019 pelo Conselho de Administração da OIT, que abriu uma Comissão de Investigação com finalidade precípua de tratar da denúncia5.

O STTR, o Sintraf, o Momtra e o Mabe já haviam recebido, em 18 de novembro de 2018, a visita de uma equipe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), que procedeu a várias reuniões em agrovilas e na sede do STTR, verificando in loco a extensão dos conflitos das comunidades quilombolas com a Base militar. O STTR e o Mabe em uma petição acompanhada pela Justiça Global recorreram à Comissão de Direitos Humanos da OEA mediante ameaças de deslocamentos compulsórios feitas por um dos candidatos à presidência da República, em campanha eleitoral, no decorrer de 2018. Neste quadro tenso não se pode omitir a menção aos temores e preocupações com os efeitos expansionistas da presença militar norte-americana, que tantas apreensões provoca nos sentimentos nacionais em muitos países das Américas Central e do Sul6.

Com o AST tais ameaças se tornaram mais palpáveis e em 7 de novembro de 2019 a CIDH em sua 174ª sessão, realizada em Quito, Equador, ouviu as testemunhas apresentadas pelo Mabe, que se fez representar por especialistas, do mesmo modo que ouviu testemunhas do governo brasileiro. O governo brasileiro tentou manter a sessão a portas fechadas e não autorizou que membros do MPF e do DPU fossem a Quito para participar desta sessão. Para tanto entrou com pedido de impugnação da própria participação da Dra. Deborah Duprat, do MPF, como testemunha.  Nenhum dos seus pleitos logrou êxito. Dra. Deborah depôs via Skype e a sessão foi realizada a portas abertas com a presença de cerca de trezentos participantes e de uma delegação do governo brasileiro chefiada pelo presidente da Agência Espacial Brasileira.

5.Assim, quase sete meses depois de ter sido enviado ao Congresso Nacional, em 16 de dezembro de 2019, o AST entrou em vigor, tendo sido aprovado pelos parlamentares um dia antes. Nos debates travados um grupo de congressistas se mobilizou contra a implementação não somente do AST, mas de outras proposições de acordos com os Estados Unidos (EUA) derivados do reconhecimento do Brasil como aliado militar preferencial extra-Otan. Esta informação de “aliado militar” em concomitância com a aprovação do AST representa a novidade contextual em relação a acordos anteriores com o próprio EUA e com a Ucrânia. O AST mostra-se ancorado num complexo industrial-militar, articulado com uma financeirização das pesquisas espaciais, de uma maneira muito própria. Tal significado difere, entretanto, do conceito de complexo industrial-militar, que marcou os anos 1960-70 e que deve ser objeto de uma reflexão à parte. Vale lembrar em sequência que “em 2000, o Congresso Nacional rejeitou a proposta que estava sendo costurada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso sob a justificativa de que ela feria a soberania nacional.”7 (Weterman, 2019).

Duas décadas atrás, portanto, os parlamentares do Congresso Nacional, os partidos políticos, integrantes do Judiciário e os ministros militares consideravam um acordo similar ao AST, firmado com o mesmo país, os Estados Unidos, sob a mesma Constituição Federal, uma flagrante violação à soberania, contrariando então, abertamente, o poder Executivo. No momento atual essas mesmas forças dominantes aparecem aproximadas por uma negativa comum, proclamando repetidamente (do folder da AEB a todos os pronunciamentos oficiais): “O AST não viola a soberania nacional”. Esse entendimento expressa uma posição de recusa explícita de autonomia no desenvolvimento tecnológico e científico face às nações centrais industrializadas e militarmente poderosas: “são nossos aliados”, reiteram. Sugerem viver, assim, uma reedição inspirada aparentemente em posturas históricas defasadas, características do período de “Guerra Fria” e de uma confrontação entre dois polos ou entre “dois mundos”, quando, no momento atual, se está diante de uma situação multipolar, em que o Brasil assume esta nova posição em que é reconhecido como “aliado militar preferencial extra-Otan”. Tal defasagem, que concorre para reeditarem, paradoxalmente, uma categoria da Segunda Guerra Mundial, “aliados”, evidencia a ilusão de uma retórica de conotação belicista, que parece abandonar ou recusar qualquer via de desenvolvimento tecnológico mais independente, que objetive certa autonomia do campo da pesquisa científica, com acordos que dizem respeito à transferência de tecnologia e não à proteção e salvaguardas de tecnologias alheias, em território nacional, às quais o acesso de brasileiros é interditado. Nos termos do AST este acesso é proibido. O que não seria aceito nos anos 1950 do pós-guerra, anos de descolonização; o que não foi aceito ao final da ditadura militar, anos de autoritarismo severo, o que foi recusado nos 35 anos de redemocratização, entre 1985 e 2020, anos de discussão sobre diferentes possibilidades de acesso à autonomia tecnológica, agora está sendo acatado acriticamente e de maneira questionável. Esta submissão absoluta encerra graves riscos e prováveis danos em médio prazo ainda não estimados.

Por que riscos? Quais seriam eles? Oito meses antes de firmar este acordo com o presidente Bolsonaro, o presidente Trump anunciou a intenção de criar o ramo militar da Força Espacial, ideia que ele teria encaminhado ao Pentágono em fevereiro de 2019: “Nossos adversários estão treinando forças e desenvolvendo tecnologia para minar nossa segurança no espaço, e eles estão trabalhando muito nisso”, afirmou Trump. “É por isto que meu governo reconheceu o espaço como um campo de guerra e fez da criação da Força Espacial uma prioridade de segurança nacional.”8

Propala-se um objetivo comercial comum, mas a prioridade concerne à segurança nacional dos EUA e não à segurança do Brasil, embora com o AST o país passe a correr riscos semelhantes. Tudo isso numa quadra em que as políticas neoliberais leiloam o espaço sideral, mas consoante uma disputa férrea que exige uma militarização de sua exploração. Este é o risco implícito no mercado mundial de satélites e de lançamento de foguetes neste momento, mesmo que se diga que os artefatos em pauta não são “bélicos”. Ora, há que se redefinir esta noção de “bélico”, e trazê-la para a contemporaneidade, quando abrange todo um complexo sistema de comunicação e logística, tal como ressalta a interpretação de Monteiro, senão vejamos:

“A militarização do espaço sideral refere-se ao uso do espaço em apoio a operações militares terrestres, marítimas e aéreas e ajuda a melhorar o comando, o controle, as comunicações, a vigilância estratégica no campo de batalha e o direcionamento de armas.”9 (Monteiro, F.V. de M.: 2020)

Esse significado mais abrangente de um vasto elenco de componentes militares no uso dos satélites estaria na ordem do dia da perspectiva hegemônica dos EUA. Seus teóricos se empenham num trabalho conceitual de distinção, a saber:

Existe uma diferença entre militarizar e armar o espaço... O assunto continua confuso, quando se analisa o uso dos satélites em órbita, somando 95% os que possuem objetivos militares e civis, conhecidos como de uso duplo, por exemplo, o sistema de GPS que é tecnicamente, um ativo militar. Estima-se que 75% de todos os satélites que orbitam a Terra estejam realizando, principalmente, tarefas militares, como vigilância, alerta precoce, comunicações e navegações.” (Monteiro, ibid.)

Os desdobramentos desta perspectiva abrangente, que conduz à Força Espacial Americana, são apontados como paradoxais, ameaçando o futuro da própria Nasa10 e neste sentido, alargando-se o argumento, pode-se imaginar que o Centro Espacial de Alcântara seria um natimorto. Importa citar aqui o discurso do vice-presidente norte-americano Mike Pence, de novembro de 2018, que lembrou que os Estados Unidos pretendem aumentar suas atividades comerciais no espaço próximo à Terra, e precisam de uma força espacial militar para proteger os US$ 383 bilhões que os americanos pretendem investir no espaço”. Em outras palavras, o projeto do governo Trump corre o risco de provocar “uma corrida armamentista no espaço com resultados imprevisíveis.” Ao contrário desta política agressiva de Trump vale mencionar, para efeitos de contraste, o governo Kennedy, que cancelou projetos de armas espaciais e assinou acordos de desmilitarização do espaço, propiciando normas capazes de assegurar uma segurança no espaço. Desse modo, pode-se resumir que os múltiplos usos do espaço e a visão triunfalista do crescente repertório de agentes privados11, acelerando sua comercialização numa competição sem trégua consiste num risco incomensurável.

6.Duas semanas após a declaração da pandemia e sem qualquer informação prévia as deliberações do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB), correspondentes à sua Sétima Reunião Plenária, realizada em 4 de março de 2020, foram publicadas no Diário Oficial da União, de 27 de março, Sessão 1, pág.3. Tal publicação diz respeito à Resolução nº 11, assinada pelo ministro de Estado, chefe do Gabinete de Segurança Institucional e coordenador do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB). Trata-se de uma resolução, que interpreta a consulta como ato burocrático e unilateral do governo. Ao mesmo tempo em que prevê um “Plano de Consulta”, como ato de Estado, delibera sobre a relocação de famílias quilombolas. Essa resolução contém medidas que até então não haviam sido informadas às comunidades atingidas nas audiências no Congresso Nacional. Manifestações contrárias a esta posição do CDPEB, repudiando as menções a deslocamentos compulsórios e à expansão da área da base, foram realizadas pelo STTR, o Mabe e o Sintraf. Embora mencionando a Convenção 169 a Resolução nº 11 contraria suas normas elementares, revelando uma profunda incompreensão de seus instrumentos e aprovando medidas antes mesmo de serem objeto de consulta e discussão.

7.Esses tópicos anteriores compreendem algumas questões que foram discutidas em reunião do chamado “Comitê Científico”, agrupado virtualmente a partir do STTR, do Sintraf, do Mabe e do Momtra, em 23 de junho de 2020, coadunando-se com o que foi sugerido na Carta elaborada ao final do “II Seminário A Base Espacial e os Impasses Sociais”, realizado em 24 e 25 de novembro de 2017.

Uma pauta de discussões dessa ordem permite que se diga que a comunidade quilombola em Alcântara compreende um reino de consciência da necessidade e de mobilização permanente, com reuniões, encontros, seminários e colóquios que vão consolidando, através de discussões e respectivas mobilizações, formas político-organizativas e identidades coletivas, que se objetivam em diferentes movimentos, associações e sindicatos, descortinando um campo de ações políticas intrínsecas aos quilombolas. A estratégia de inspiração colonialista da ação militar tem um fio de continuidade, que perpassa governos e administrações do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) ou do denominado Centro Espacial de Alcântara (CEA) e que pode ser assim exposto: (a) recusar às comunidades quilombolas o reconhecimento de suas terras como território, com terra titulada, e dizer que (b) “tudo” deve ser reparado a eles como indivíduos, inibindo que se organizem em movimento político ou que mantenham quaisquer laços solidários em torno de uma identidade coletiva ou de um território etnicamente configurado. Em suma, negar a concessão de terras, mesmo que sejam terras tradicionalmente ocupadas, e negar a extensão do reconhecimento de fatores identitários. Confrontando isso se verifica que os quilombolas em Alcântara são sujeitos de uma resistência constante, isto é, autores e objeto de seu próprio discurso ao explicarem os conflitos com a implantação da base de lançamento de foguetes, vividos por eles em suas mobilizações como acontecimentos indefinidos, que já perduram por mais de 40 anos sem perspectiva de solução imediata. O significado desta resistência e suas implicações representam um próximo texto desta pesquisa.

Alfredo Wagner Berno de Almeida é antropólogo, professor do PPGCSPA-UEMA