Internacional

O povo boliviano de maneira pacífica, mas firme e resoluta, deu sua resposta aos golpistas que em 2019 perseguiram, encarceraram e até assassinaram manifestantes desarmados que se colocavam contra o golpe

A tarefa de Lucho e David não será fácil, pois as forças golpistas neoliberais, alinhadas ao império, buscarão desestabilizar o governo. Fotos Públicas

O fato mais simbólico das eleições bolivianas, além é claro da estupenda vitória do Partido Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) com a chapa Arce-Choquehuanca, é a eleição ao Senado de Patrícia Arce Guzmán, a prefeita de Vinta que foi sequestrada, golpeada e pintada de vermelho durante os dias do golpe de 2019, em uma sessão de humilhação pública sem precedentes. Começo aqui esse artigo fazendo-lhe uma homenagem do tamanho de sua coragem e firmeza! Viva a senadora Patrícia Arce Gusmán!

Claramente, o povo boliviano de maneira pacífica, mas firme e resoluta, deu sua resposta ao trágico período em 2019 quando os golpistas perseguiram, encarceraram e até mesmo assassinaram, como foi visto nos massacres de Senkata e Sacaba, onde forças policiais e militares abriram fogo contra uma população indígena desarmada que se manifestava contra o golpe.

Nos últimos meses, se mostrou inequívoca a incapacidade do governo de facto responder de maneira eficaz à pandemia, aliada à crise econômica brutal que fez o povo boliviano perder quase 50% de sua renda.

Os resultados eleitorais desse domingo, 18 de outubro, comprovam alguns fatos. O primeiro é a confirmação de que nas eleições de 2019 não houve fraude. Na verdade a apuração de votos de fato é lenta, e há uma clara distribuição demográfica dos votos em que nas regiões rurais e mais distantes o MAS-IPSP, partido de Evo Morales e Luis Arce, é amplamente majoritário. O segundo fato é que a OEA , por intermédio de seu secretário-geral Luis Almagro, aproveitando-se dessas características do sistema eleitoral e da apuração de votos, orquestrou em 2019 um golpe insinuando uma fraude que não houve.

Essa vitória tem algumas notas importantes: em primeiro lugar, a resistência e a mobilização do povo boliviano foram essenciais para garantir a realização das eleições, por três vezes adiada pelo consórcio golpista que governa o país; em segundo, a capacidade de o MAS-IPSP se reorganizar e definir por uma chapa forte, que dialogava com o imenso êxito econômico e social do período Evo Morales/ Álvaro Linera, com Luis Arce, ex-ministro da Economia como cabeça do binômio , como também com a base social indígena representada por David Choquehuanca, na vice.

A solidariedade internacional configurada no grande número de observadores internacionais por meio da presença de parlamentares latino-americanos e europeus, destacando-se a presença da presidenta do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, como também o acompanhamento e difusão de notícias pelas redes sociais e mídias alternativas em tempo real, foram essenciais para mostrar aos golpistas que qualquer aventura autoritária ou fraudulenta seria acompanhada de perto pelo mundo.

Para além desses elementos de análise preliminar, é preciso que também olhemos mais a distância para nos darmos conta de um fenômeno muito relevante nessas verdadeiras batalhas que os povos da América Latina e Caribe vêm travando nos últimos anos. Em período recente, alguns analistas, frente a derrotas vividas pelos setores democrático-populares na região, se apressaram em dizer que o ciclo progressista da America Latina e Caribe estaria inexoravelmente terminando, como se fosse uma nova lei da física...

O que essa batalha vitoriosa nos mostra, assim como outras que ocorrem em nossos países, é que para re-implementar na região o projeto neoliberal, com características hoje recrudescidas, as direitas locais vêm cada vez mais precisando se valer de expedientes golpistas e autoritários, seja através de forças militares e policiais, seja através de golpes midiáticos, fake news, golpes parlamentares e judiciais, que  neste último caso tem se caracterizado pelo chamado lawfare. Ou seja, mesmo em ambientes da chamada democracia liberal ou eleitoral, não é mais possível o retorno pacífico, ou dentro da chamada “legalidade democrática”, de um projeto econômico e social que privilegie o sistema financeiro, as transnacionais e o seleto e pequeno grupo de milionários do mundo, nos quais as maiorias são relegadas à fome, ao desemprego e os países à subordinação e à falta de soberania. Nesse sentido, é possível dizer que há hoje em dia uma forte contradição entre democracia e neoliberalismo. Ou, em outras palavras, que é essencial valorizar a democracia, lutar para ampliá-la para além de seus limites representativos, colocando sempre e cada vez mais o povo como protagonista de seu destino.

A maioria dos governos neoliberais da região não tem propostas de desenvolvimento para apresentar. Ao contrário, insistem em medidas de austeridade e um Estado mínimo, enquanto as empresas aproveitam a situação para promover reformas laborais que tornam o emprego precário, reduzem os direitos e os salários dos trabalhadores e conduzem ao aumento do desemprego. No entanto, esse modelo neoliberal encontra importantes eixos de resistência. Assistimos à revolta e à mobilização dos povos do Chile, da Colômbia e do Equador e essa vitória das forças populares na Bolívia, no domingo dia 18 de outubro de 2020, mostra a toda América Latina e Caribe que essa luta vale a pena.

Voltando à Bolívia, não será nada fácil a tarefa de Lucho e David. As forças golpistas neoliberais, alinhadas ao império, buscarão desestabilizar o governo, desacreditá-lo e solapar suas iniciativas, como inclusive vêm tentando fazer na nossa vizinha Argentina frente ao governo de Alberto Fernandez. Será essencial a solidariedade internacional, a retomada dos projetos de integração através da Unasul  e Celac e, como sempre algo que o povo boliviano sabe fazer bem, lutar para manter suas conquistas! Parabéns ao povo boliviano!

Mônica Valente integra a Comissão Executiva Nacional do PT e é secretária executiva do Foro de São Paulo