Internacional

O regime capitalista e ultraliberal, implantado com o golpe militar de 11 de setembro de 1973 que derrubou o governo de Allende, foi amplamente rechaçado nas ruas e nas urnas

A convocação de uma Assembleia Constituinte foi aprovada por 77% dos chilenos que foram às urnas, nesse domingo. Foto: Sobre reprodução do BDF

Afirmar que as cartas socialistas estão novamente sobre a mesa é uma constatação óbvia e até certo ponto banal, exceto para a mídia conservadora que insiste em chamar o maior movimento de insurgência social ocorrido desde a redemocratização do país, em 1990, de “protestas callejeras”, “estallido social” e outros eufemismos do gênero.

Reconhecer isso não significa dizer que amanhã o país do vinho tinto e das empanadas amanhecerá sob um novo regime político, econômico e social. Claro que não. Porém, o que não dá para deixar de dizer, como fazem os colunistas da grande imprensa chilena e brasileira, é que o regime capitalista e ultraliberal, implantado desde o golpe militar de 11 de setembro de 1973 que derrubou o governo democrático de Salvador Allende, foi amplamente rechaçado nas ruas e nas urnas nesse domingo, 25 de outubro de 2020.

A convocação de uma Assembleia Constituinte para escrever a nova Constituição foi aprovada por nada menos que 77% dos chilenos, uma diferença muito mais ampla do que a apontada pelas previsões mais otimistas. Para efeito de comparação, basta lembrar que no plebiscito sucessório de 1988, apesar de derrotado, Pinochet obteve 44% de votos favoráveis. Quatro entre dez chilenos votaram pela continuidade daquele regime fascista. A vitória desse domingo foi acachapante. Dessa vez, somente 23% dos chilenos que foram às urnas rejeitaram a ideia de varrer a Constituição de Pinochet para a lata de lixo da história.

Perderam aqueles que ao longo desses anos apostaram num modelo que concentra a renda, limita a democracia e ameaça a soberania nacional, transferindo as decisões sobre os destinos da Nação para os banqueiros internacionais. Uma força superior e oposta àquele modelo neoliberal se levantou e exatamente há um ano mantém as ruas do Chile ocupadas, de Norte a Sul do país, com pandemia, com carabineiros, com tudo.

Aliás, essa é uma previsão antiga, também nunca lembrada pela mídia, feita por Salvador Allende no pronunciamento transmitido pela rádio Magallanes, na manhã daquele 11 de setembro de 1973, horas antes de deixar sem vida o Palácio de La Moneda: “Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor”.

O tempo lhe daria razão, e aí estão de volta os elementos mágicos das profundas transformações históricas: as grandes alamedas tomadas por mulheres e homens livres, construtores de uma sociedade justa e melhor. É cedo para definir o nome disso tudo, mas seja ele qual for, que seja muito bem-vindo e se irradie pelo restante da América Latina. Somada às vitórias de Alberto Fernández, na Argentina, e Luis Arce, na Bolívia, o fracasso das direitas chilenas neste domingo sugere que o retorno do neoliberalismo na América Latina pode não ser senão mais um voo de galinha.

O fato é que, desde 18 de outubro de 2019, o Chile vive o seu “momento Rosa Luxemburgo”, como gosta de dizer a professora de Filosofia da USP, Isabel Loureiro, para se referir às conjunturas de ascenso espetacular dos movimentos populares. Com efeito, o caráter espontâneo das manifestações que sacudiram o Chile desde o ano passado tem características similares às encontradas por Rosa Luxemburgo na análise das greves de massa da Revolução Russa de 1905. Ambas pegaram o país de surpresa, a começar pelo governo e pelos partidos políticos, de centro, esquerda e direita. Isso pra não falar dos sindicatos dos trabalhadores, especialmente os mineiros, que em tempos heróicos foram a vanguarda da revolução chilena. Todos eles, sem exceção, se viram na incômoda situação de saírem correndo atrás da multidão que tomou as ruas para derrubar o neoliberalismo.

De fato, os governos de centro-esquerda e centro-direita que se sucederam depois da redemocratização mantiveram intacto o cerne da estrutura judiciária autoritária e do modelo sócio-econômico implantados pelo golpe. Esses pilares do autoritarismo foram inscritos na Constituição de 1980 e mantiveram-se inalterados desde então. Virar essa página implicará enfrentar os interesses de uma elite econômica que já demonstrou que está se lixando para a democracia. Implicará igualmente eliminar ou neutralizar os poderes fáticos que se habituaram a tutelar a sociedade desde as gretas deixadas na Constituição autoritária, como é o caso de setores das Forças Armadas e especialmente dos Carabineiros, que ainda vivem nos tempos sombrios da guerra-fria.

O próximo passo, segundo o acordo que traçou o itinerário do processo constituinte, está previsto para acontecer em 11 de abril de 2021, quando serão eleitas as delegadas e os delegados constituintes, 50% mulheres, 50% homens, por meio de candidaturas independentes dos partidos políticos. Será a primeira vez na história do mundo que uma Constituição será escrita em composição paritária, prova da enorme força do novo feminismo latino-americano. A nova Constituição será promulgada por quem vier a se eleger nas eleições de novembro de 2021.

A unidade dos partidos de esquerda é o principal desafio do momento. A boa notícia é que os primeiros passos para uma possível aproximação foram ensaiados assim que se conheceram os resultados das urnas, quando Beatriz Sanchez, da Frente Ampla, se reuniu com Daniel Jadue, prefeito de Recoleta, e estrela ascendente do Partido Comunista. A ver como reagem as lideranças dos demais partidos da centro-esquerda, a começar do Partido Socialista (PS). O tempo é curto e as dificuldades a serem superadas são imensas. A má notícia é que a direita – que há dois anos elegeu Piñera com 55% dos votos – apesar de sair derrotada nesse domingo segue unida nos partidos de direita e extrema-direita que apoiaram Pinochet – a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI) e Evolução Política (Evopoli), de centro-direita fundada em 2012.

O acordo constituinte está cheio de trampas armadas para conter o ímpeto das mudanças no modelo socioeconômico. Exige-se um número muito elevado de votos para aprovação da Nova Carta, o que na prática confere um poder de veto às minorias. Caso não se chegue a amplos acordos, a atual Constituição seguirá em vigor. O fato é que eles não são bobos nem jogarão a toalha.

Nem por isso, ninguém está autorizado a imaginar que os chilenos estarão dispostos a aguentar mais trinta anos de “democracia de consensos”. Não basta para as esquerdas formarem um sólido bloco constituinte, pois sem a pressão das ruas tudo pode continuar como antes. Em suma, o jogo mal começou e muito em breve as demais cartas estarão sobre a mesa. Façam as suas apostas, senhoras e senhores!

Renato Martins é professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila); foi presidente do Fórum Universitário Mercosul de 2015 a 2019