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A questão é: cabe à Enap concorrer com instituições privadas, como Insper e FGV, na oferta de cursos de educação executiva a distância para o setor privado?

A CF obriga que os Poderes da União mantenham em suas estruturas escolas de governo, como a Enap, o Instituto Rio Branco etc. Divulgação

O Diário Oficial de 13 de outubro de 2021 traz a Portaria nº 10.444, de 7 de outubro, do ministro da Economia.

Versada em termos singelos, com meros quatro artigos, ela autoriza a Fundação Escola Nacional de Administração Pública, que acaba de completar 35 anos de sua criação, a “publicizar”, com fundamento no art. 1º da Lei nº 9.637, de 1998, as “atividades de produção e oferta de cursos de educação executiva a distância, por meio da gestão da Escola Virtual de Governo – EV.G”.

Os objetivos dessa “publicização”, segundo o art. 1º, parágrafo único da portaria, envolvem a “ampliação” da capacidade de produção e oferta de cursos de educação executiva a distância por parte da Enap, a melhoria da qualidade dos cursos ofertados e o “aprimoramento” da experiência dos usuários da Escola Virtual de Governo (EV.G.).

Para esse fim, a Enap fará chamamento público, nos termos Decreto nº 9.190, de 1º de novembro de 2017, que deverá ocorrer no prazo de até seis meses, contado da data de publicação da portaria. Esse decreto regulamenta o art. 20 da Lei nº 9.637/98, e trata do Programa Nacional de Publicização. Ou seja, a Enap publicará um “chamamento público”, para qualificar uma organização social, que passará a exercer as atividades referidas na portaria.

Trata-se de mais um prego no caixão da Enap, uma escola que, à falta de alunos em cursos de formação e aperfeiçoamento, resultante da não realização de concursos, vem se convertendo em uma instituição de pós-graduação, oferecendo especializações, mestrados e doutorados para servidores públicos, mas sem vinculação ao seu desenvolvimento em carreira.

A orientação da Enap, no sentido de realizar pesquisas e produzir conhecimentos, vem se consolidando há, pelo menos, 20 anos, com a publicação de livros, cadernos e relatórios de pesquisa. Recentemente, ela publicou um relatório sobre a contratualização no serviço público, mas cuja elaboração foi contratada junto a consultores privados.

Como instituição de ensino, e a exemplo de escolas de governo como a Ecole Nationale de d’Administration, da França, ela não tem um quadro próprio de professores; a maior parte, ou quase totalidade de seus docentes  são servidores públicos selecionados por meio de editais, ou convidados, e remunerados por meio da Gratificação de Encargo de Curso ou Concurso, cujos valores, porém, são significativamente inferiores aos praticados em outras instituições, como o Instituto do Legislativo Brasileiro (ILB), do Senado, ou o Instituto Serzedêllo Correa (ISC), do TCU.

Ou seja: ser professor da Enap, com efeito, não é uma atividade regular ou permanente, e, menos ainda, bem remunerada. Mas é uma função essencial, que servidores experimentados e qualificados exercem regularmente, em benefício do próprio Estado.

Atualmente, a Enap se acha sob a presidência de uma pessoa que não tem vínculo efetivo com o serviço público, mas vinculação partidária com o Partido Novo. E, como tal, professa e pratica o credo neoliberal, sem a menor preocupação com o que significa, efetivamente, ser uma “Escola de Governo”. Daí o apoio da Instituição a uma medida que, na prática, leva ao seu esvaziamento.

A PEC 32/2020, a reforma administrativa de Bolsonaro e Guedes, elaborada, contudo, por uma equipe igualmente descompromissada com o Estado brasileiro, previa, inicialmente, a mera revogação do art. 39, §2º da Constituição, o qual prevê que “a União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados.”

Essa desarrazoada proposta de revogação, pura e simples, de um comando constitucional de enorme importância para a consolidação de um serviço público profissional, foi rejeitada pela comissão especial que examinou a matéria. Assim, permanecerá na CF a obrigação de que os Poderes da União mantenham em suas estruturas Escolas de Governo, como a Enap, o Instituto Rio Branco, a Academia de Polícia Federal, as Escolas do Ministério Público, da Magistratura e da Advocacia-Geral da União, o ILB, o Cefor da Câmara dos Deputados, o ISC etc. Trata-se, a rigor, de instituições que, pelo assento constitucional, tem um caráter inafastável, e não podem ter suas atividades meramente “terceirizadas” pela via de contratos de gestão com organizações sociais, ou empresas privadas.

A Lei nº 7.834, de 6 de outubro de 1989, atribuiu à Enap a responsabilidade pela formação de pessoal qualificado para o exercício de atividades de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas e a habilitação para o exercício de cargos de direção e assessoramento superiores, as quais devem ter prioridade nos programas de desenvolvimento de recursos humanos na Administração Federal. Nos termos da Lei nº 8.140, de 29 de dezembro de 1990, ela tem como finalidade básica “promover, elaborar e executar os programas de capacitação de recursos humanos para a Administração Pública Federal, visando ao desenvolvimento e à aplicação de tecnologias de gestão que aumentem a eficácia e qualidade permanente dos serviços prestados pelo Estado aos cidadãos”.

E, nessa função, lhe cabe a elaboração de programas de cursos destinados à formação de executivos públicos, à qualificação de dirigentes e à própria produção de estudos e pesquisas sobre políticas públicas e gestão governamental.

A recente fusão entre a Escola Fazendária (ESAF) e a Enap, promovida pela Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019, colocou sob a alçada dessa última a formação para a totalidade das carreiras estruturadas sob a supervisão do Ministério da Economia, o que deve ser considerado uma oportunidade para o fortalecimento da instituição como Escola de Governo e fortalecimento de seu papel coordenador e articulador da Rede de Escolas de Governo do Poder Executivo e do Sistema de Escolas de Governo da União1, conforme definido pelos Decretos nº 9.991, de 28 de agosto de 2019 e 10.369, de 22 de maio de 2020.

Mas não pode, seja a lei, seja uma portaria, contrariar o que determina o art. 39, § 2º da CF.

Em julho de 1998, já na vigência da EC 19/98, que introduziu o § 2º no art. 39 da Carta, o presidente Fernando Henrique Cardoso submeteu à Câmara dos Deputados o PL nº 4.687, por meio do qual pretendia extinguir a Enap, e transferir as suas atividades para uma organização social, de direito privado, constituída – pasmem – pelos próprios presidente e diretores da Enap.

Esse malfadado projeto se justificava pela “necessidade de assegurar, de imediato, as condições de autonomia administrativa e financeira imprescindíveis à melhoria da prestação de serviços e à viabilização de investimentos e ações voltados para a expansão” das atividades exercidas pela Enap, e para “proporcionar condições mais favoráveis à continuidade dos processos de reorganização interna e realinhamento estratégico embasado na fixação de objetivos e metas de desempenho já iniciados na referida entidade”.

Ou seja, era uma declaração de incompetência da administração da entidade, que, sem essa publicização, não seria capaz de continuar a exercer o papel que a Constituição lhe determinava.

A proposição, felizmente, não foi aprovada pela Câmara dos Deputados, e, em 2008, o Presidente da República solicitou a sua retirada. Nos termos da EM nº 0040/2008/MP, reconhecia o Executivo que “o § 2º do art. 29 da Constituição Federal estabeleceu, de forma inequívoca, a natureza essencialmente pública das escolas de governo e a sua importância estratégica nos processos de formação dos servidores”, e, ainda que, “para os efeitos da exigência do art. 2º, inciso II da Lei nº 9.637, de 1998”, é indispensável “manter as atividades desempenhadas pela Enap dentro do Estado”. Assim, ela atende, precipuamente, à necessidade “intrínseca da Administração Pública”, e, como tal, não pode ser considerada atividade “publicizável” nos termos da Lei nº 9.637, de 1998.

O que se observa, porém, é que a referida portaria visa, por via transversa, o mesmo objetivo do PL 4.687/98, ou seja, “privatizar” uma atividade que, por ser intrínseca à atividade da Enap, e atender, diretamente, às necessidades do Estado, não poderia ser objeto de contratualização com organização social.

Se, para elidir a questão, for usado o argumento de que a “educação executiva” não se confunde com a missão institucional da Enap prevista no art. 39, § 2º, a questão que decorre é se, efetivamente, deve caber à Enap concorrer com instituições privadas, como Insper e FGV, na oferta de cursos de educação executiva para o setor privado. Nesse caso, a tarefa não poderia ser exercida por uma “Escola Virtual de Governo”. Não sendo esse o caso, ou seja, sendo a “educação executiva” um nome diferente para a formação e qualificação de servidores públicos, então se evidencia, a toda a prova, a incompatibilidade dessa “contratualização” com os fins da Enap, cuja função, como escola de governo, somente poderia ser delegada, mediante convênio, a outra escola de governo de natureza pública.

Mesmo que a instituição a ser objeto desse contrato de gestão, nos termos do referido processo de “publicização”, venha a ser escolhida por meio de “chamamento público”, o que se constata é que está a ser transferida a entidade privada, por essa via, a realização da atividade finalística, que é a própria “produção e oferta de cursos de educação executiva”, ainda que oferecidos na modalidade a distância. Algo que, com efeito, dadas as condições atuais de desenvolvimento da tecnologia, pode – e deve – ser mantido como tarefa da própria Enap. E, mesmo sendo virtual, a Escola de Governo “Ev.G” continua sendo uma escola de governo.

Essa situação evidencia total incongruência com a própria natureza das organizações sociais, conforme originalmente definida pelos seus “criadores”. Elas deveriam ser voltadas, apenas, para executar “serviços não-exclusivos que estejam sendo executados no âmbito estatal, por meio de um programa de publicização, possibilitando a absorção, por entidades qualificadas como organizações sociais”, estabelecendo “maior parceria entre o Estado e a sociedade baseada em resultados”, e visando “a aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços, atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo menor.”2 O próprio art. 20 da Lei nº 9.637/98, regulamentado pelo Decreto 9.190, prevê que o processo de publicização deverá observar como diretriz a “ênfase no atendimento do cidadão-cliente”. Ou seja, essa forma de execução de atividades deveria ser restrita a atividades nas quais haveria um “cidadão-cliente” a ser atendido, e não em que o “cliente” seria o próprio Estado, ou seus servidores.

A burla ao art. 39, § 2º da Constituição, e às leis mencionadas, que regem a atuação da escola, é, portanto, evidente. Não pode ser, assim, validada pela via da utilização de uma lei que, por si mesma, é questionável e tem servido a desvios de recursos em diversas áreas, notadamente na prestação de serviços em áreas como saúde, educação e pesquisa científica e tecnológica. As organizações sociais, inspiradas na figura das quase non-governmental organizations (quangos), adotadas à larga no Reino Unido durante os governos neoliberais, e adotadas em vários estados, mimetizando a experiência, ainda limitada, adotada no governo federal, mas que deverá ter grande ímpeto caso aprovada a PEC 32/2020, se mostraram, no Brasil, um péssimo exemplo de como privatizar o Estado, e minar a sua ética, transparência e equidade.

Admitida essa possibilidade, estarão sob risco de igual solução nada menos do que as 275 escolas que hoje compõem a Rede Nacional de Escolas de Governo3, a maior parte surgida em decorrência do art. 39, § 2º da CF, e presentes nos três poderes, para exercer atividade, por definição constitucional, deve ser mantida pelo Estado, e, portanto, não pode ser objeto de delegação a entes privados.

Por tudo isso, impõe-se a revogação da Portaria nº 10.444, de 2021, ou a sua sustação por meio de decreto legislativo, em vista de se constituir em ato ilegal, que exorbita, gravemente, dos limites do poder regulamentar pelo Poder Executivo.

Luiz Alberto dos Santos é consultor legislativo do Senado, advogado, mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais, é egresso do Primeiro Curso de Políticas Públicas e Gestão Governamental da Enap (1988-1990). Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da PR (2013-2014).

Aldino Graef é bacharel em História e egresso do Primeiro Curso de Políticas Públicas e Gestão Governamental da Enap (1988-1990). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental aposentado, ex-assessor Especial na Casa Civil da PR (2010-2014), ex-diretor de Articulação e Inovação Institucional na Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (2008-2012), foi gestor de Administração no Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (2002-2008), entre outros cargos de direção superior no governo federal