Cultura

A construção de uma cultura efetivamente democrática em um país com fortes tradições autoritárias emerge como demanda imprescindível de nossa época, de nosso presente e de nosso futuro. Nesta perspectiva, conjugar cultura e democracia torna-se procedimento vital

No domingo, dia 28 de julho, Lula fez um pronunciamento síntese panorâmico dos 18 primeiros meses de seu terceiro mandato. O discurso, amplo e contundente, tratou de um leque abrangente de temas, demonstrando o vigor de sua gestão na reconstrução do país, apesar da maldita herança bolsonarista, inclusive com a política de juros exorbitantes do Banco Central; da difícil correlação de forças em patamares nacionais e internacionais e das armadilhas do Congresso Nacional. Muitos foram os temas visitados, desde assuntos mais constantes em seus governos, como questões relativas às políticas sociais, a exemplo do aumento do emprego e do salário mínimo, à educação, à saúde, ao desenvolvimento e à presença internacional do Brasil até novas temáticas que ganharam destaque como o meio ambiente e a busca de um desenvolvimento sustentável. A ideia força da reconstrução nacional e das potencialidades do futuro esteve associada aos tópicos antes anotados e à defesa e fortalecimento da democracia. Sintomática foi a ausência da cultura em todo seu pronunciamento. Mesmo a presença de áreas afins, como as lembranças das políticas relacionadas aos movimentos identitários, não trouxeram para a cena conexões com suas dimensões culturais.

A ausência requer uma reflexão importante do campo da cultura, afinal de contas muitos fatores estavam dados para evitar a tradicional exclusão da cultura. Cabe relembrar e analisar, pelo menos, alguns deles, pois a questão da centralidade ou não da cultura emerge como vital para o governo e a sociedade, em sua necessidade de superação dos autoritarismos e ameaças à democracia, e para o campo cultural, que tem hoje uma oportunidade ímpar para reverter a secundarização da cultura pelos governos e mesmo pela sociedade.

A maior sensibilidade do próprio presidente Lula para as novas temáticas, inclusive a cultura, aparece como dado a ser considerado. A cultura esteve presente de modo potente na campanha eleitoral, como também antes dela, em decorrência do papel do campo cultural tanto no enfrentamento da barbárie bolsonarista quanto na disputa eleitoral, com a vitória de Lula. As sensibilidades culturais mais aguçadas de Lula e de Janja, e, em especial, o lugar de destaque do campo cultural na luta contra os desmandos culturais e as atitudes antidemocráticas da gestão de Messias Bolsonaro, criam alicerces para que ela adquira alguma centralidade no terceiro mandato de Lula. A sensibilização do Congresso Nacional para temas da cultura, conquistada pelo movimento cultural, na luta pelas recentes leis da cultura, a exemplos das leis Aldir Blanc I e II e da Paulo Gustavo, igualmente não deve ser esquecida na caracterização do cenário atual, apesar da difícil composição de forças políticas do parlamento nacional.

Outro dado relevante a ser considerado. No atual governo, a cultura não está submetida à carência de recursos financeiros como quase sempre ocorre em gestões públicas, sejam elas federais, estaduais, distrital ou municipais. A situação financeira da cultura hoje se configura pela presença do maior orçamento já destinado à área. As leis Paulo Gustavo, emergencial, e Aldir Blanc II, com vigência de cinco anos, e mais os recursos específicos da área governamental asseguram condições para uma verdadeira revolução na cultura, retirando-a da constante situação de penúria e subalternização. Tais condições, ainda que dificultadas pelo desmantelamento da institucionalidade cultural efetivada pela gestão bolsonarista e por contingenciamentos orçamentários, também abrem amplos horizontes para que a cultura adquira alguma centralidade no governo federal.

Tais fatores, além de outros, precisam ser recordados na conformação de um cenário que possui grandes potencialidades para que a cultura abandone sua subalternidade constante, conquiste espaços, desenvolva articulações, supere a ausência constatada e adquira centralidade no governo e na sociedade como temática vital para a reconstrução do país, tanto em termos da sua democracia, quanto em termos do seu desenvolvimento. A reconstrução do Brasil passa pela combinação virtuosa entre cultura, desenvolvimento e democracia. Assim, o discurso da centralidade da cultura poderá deixar de ser vigente apenas nos ambientes do campo cultural e estar presente no governo e na sociedade.

Constatada a ausência e as condições favoráveis à sua superação, torna-se necessário sugerir alternativas, dentre outras possíveis, que possibilitem a reversão da exclusão. Duas delas se apresentam, de imediato, com enorme potencial.  Primeiro, a colagem entre cultura e democracia. Os cenários, internacional e nacional, marcados pela presença inquietante da extrema direita, coloca o tema da democracia como central no mundo contemporâneo, para que a civilidade da vida e das relações humanas possam minimamente subsistir. No Brasil, a gestão bolsonarista, seus ataques continuados à democracia, com seu ápice na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2024, e sua guerra cultural, transformando adversários em inimigos a destruir, são mostras vivas da barbárie que ameaça o Brasil e o mundo.

A construção de uma cultura efetivamente democrática em um país com fortes tradições autoritárias emerge como demanda imprescindível de nossa época, de nosso presente e de nosso futuro. Nesta perspectiva, conjugar cultura e democracia torna-se procedimento vital. Entretanto, tal empreendimento político-cultural não parece ser fácil. A IV Conferência Nacional de Cultura, realizada em 4 a 8 de março de 2024, apesar da palavra democracia estar na sua nomeação e da sua construção de modo democrático, em suas resoluções finais apresenta acentuado déficit da tematização da questão democrática. Ainda que o tema esteja, por vezes, subtendido e/ou latente, a sua não explicitação e seu parco desenvolvimento comprometem sua potência. Suas resoluções, em geral, voltadas de maneira preponderante para o interior do campo da cultura, subestimam a temática da democracia, deixam de aprofundar as fundamentais conexões entre cultura e democracia, esquecem de discutir as diversas possiblidades de democratizar a cultura, ainda que tais procedimentos estejam, por vezes, implícitos em diversas resoluções. Enfim, não coloca a configuração de culturas democráticas como horizonte central para as políticas culturais, que busquem superar os autoritarismos e consolidar a democracia no Brasil, como é imprescindível.

Distante do necessário enlace com a democracia, a cultura também não conseguiu, em sua IV Conferência Nacional e nas políticas culturais implementadas até agora, uma articulação mais contundente e consistente com o tema do desenvolvimento no processo de reconstrução nacional, horizonte do governo Lula. A busca de novas opções para o desenvolvimento e o caráter imanentemente transversal da cultura abrem grandes leques de possibilidades para o entrosamento da cultura com um projeto nacional de desenvolvimento, ainda em construção. Para que tal ocorra, a cultura deve exercer de modo pleno seu potencial transversal e dialogar com outras áreas da sociedade, a começar por registros afins como a educação e a comunicação, além de outros como a ciência e tecnologia, os movimentos culturais identitários e sociais, a economia, o turismo, o meio ambiente, os direitos humanos, a saúde, a política etc. A construção de políticas culturais transversais com tais áreas pode colaborar na potencialização das políticas culturais, na presença mais visível e reconhecida da cultura na sociedade, mas igualmente inserir a cultura de modo consistente no projeto de desenvolvimento do país, superando sua marginalização e dando centralidade à cultura. A procura de novas modalidades de desenvolvimento, sustentável e atento à transição energética, abre espaços para a inserção da cultura em um projeto de desenvolvimento com cara nova.

Em um momento tão propenso e sensível para a luta pela conquista da centralidade de cultura, cabe, mais do que nunca, ao campo cultural e às gestões das políticas culturais o desafio de ser ativos e criativos para tecer costuras entre democracia, desenvolvimento e cultura. Tal centralidade não pode estar apenas ancorada na sensibilidade do Presidente, da primeira-dama e do Congresso Nacional, nem nos bons orçamentos hoje existentes. Sua construção exige a firme atuação político-cultural do campo da cultura e das gestões públicas da cultura. Assim, nos próximos pronunciamentos sínteses do presidente Lula a cultura não poderá ser esquecida e ocupará centralidade na luta pelo aprofundamento de uma democracia ampliada, que envolva a democratização radical do estado e da sociedade, e de um desenvolvimento de novo tipo, que integre as dimensões econômicas, sociais, políticas, ambientais e culturais como partes vitais do desenvolvimento.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)