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Vivemos retrocessos institucionais, éticos e estéticos que repercutem diretamente sobre os números da violência e do feminicídio

Em 2018, no Brasil, 536 mulheres eram agredidas por hora com socos, empurrões ou chutes. A cada 9 minutos uma mulher foi agredida1. Em 2016, 4.635 mulheres foram mortas por agressões, uma média de 12,6 mortes por dia2. No mesmo ano, a cada duas horas e meia, ocorria um estupro coletivo no país3. Somente em janeiro de 2019, 119 mulheres foram vítimas de feminicídio no país, outras sessenta sofreram tentativa de assassinato pela condição de gênero; 71% dos crimes foram praticados por parceiros atuais ou ex-companheiros4.

Os números brasileiros são alarmantes também quando comparados aos de outros países. Levantamento divulgado em 2018 pelo Escritório da ONU para Crime e Drogas (UNODC) mostra que a taxa de homicídios femininos em 2017 no mundo foi de 2,3 para cada 100 mil mulheres. No Brasil foi de quatro assassinadas a cada 100 mil – 74% superior à média mundial5.

Esses são alguns dos dados que revelam o grave cenário da violência contra a mulher no Brasil. Vale lembrar que as estatísticas são reconhecidamente subnotificadas, uma vez que nem todas as mulheres denunciam episódios de violência, assim como nem todos os crimes de feminicídio são devidamente enquadrados como tal.

Feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, seja por violência domiciliar e familiar, seja por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Isso é o que diz a Lei nº 13.104, conhecida como a Lei do Feminicídio, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 9 de março de 2015. Desde então, o feminicídio passou a ser crime hediondo e prevê pena de reclusão de 12 a 30 anos, acima dos 6 a 20 anos dos homicídios simples. A pena é ainda agravada se a vítima for gestante ou parturiente, se o crime ocorrer na frente de familiares ou ainda descumprindo medidas protetivas.

Essa é uma das leis recentes que tratam da violência contra a mulher. Foi antecedida pela Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, e pela Lei nº 12.015/2009, conhecida como Lei do Estupro. E, mais recentemente, a Lei nº 13.718/2018, que criminaliza a importunação sexual e a divulgação de cenas de estupro. O enrijecimento da legislação penal veio sendo acompanhado por políticas públicas de promoção da igualdade de gênero, dentre as quais a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; a realização de quatro conferências nacionais de políticas para as mulheres; a abertura de delegacias especializadas de atendimento à mulher e as Casas da Mulher Brasileira; o Ligue 180 e as defensorias públicas especializadas da mulher. Outras políticas públicas dos governos Lula e Dilma também tiveram papel fundamental no reconhecimento da mulher como sujeito de direitos no Brasil. O Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida priorizavam a titularidade feminina no recebimento dos recursos; também o Programa Nacional de Reforma Agrária passou a emitir titularidade conjunta do lote nos assentamentos; o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural percorria as zonas rurais do país em caravanas para ofertar documentos de identidade, carteira de trabalho, certidão de nascimento e outros para as mulheres do campo, das florestas e das águas; para citar alguns exemplos.

A perspectiva que orientava esse rol de políticas públicas era, portanto, combater a violência contra a mulher e promover a igualdade de gênero a partir de mudanças culturais e econômicas de enfrentamento ao machismo e ao patriarcado. O pressuposto é de que a agenda de gênero é imprescindível para o efetivo funcionamento da democracia e para o pleno exercício da cidadania. Ou seja, sem os direitos reprodutivos da mulher, sem a igualdade de gênero no trabalho, na política, na vida, a democracia não pode ser plena. Assim, o endurecimento das medidas punitivas atuava como mais um elemento do combate à violência, mas certamente não é suficiente para enfrentar as razões que historicamente colocam a mulher em condição de desigualdade econômica e política e de vulnerabilidade social.

Atualmente, todo o avanço conquistado desde a Constituição de 1988 e, em especial, durante os governos Lula e Dilma, sempre com muita luta dos movimentos feministas, está em perigo. Vivemos retrocessos institucionais, éticos e estéticos que repercutem diretamente sobre os números da violência e do feminicídio. Isso ocorre não apenas porque há menos mecanismos de apoio e acolhimento às mulheres ou porque elas são mais diretamente afetadas pela instabilidade econômica do país, mas também porque os homens, quase sempre seus parceiros, estão cada vez mais autorizados a cometer atos de violência. Medidas institucionais, comportamentos e discursos do atual presidente, de seus ministros e de parlamentares incitam a violência e a intolerância a todo momento; desrespeitam as mulheres e a luta feminista e promovem o desmonte de agenda que aliava direitos das mulheres à democracia construída nas últimas décadas.

Por tudo isso estivemos nas ruas no último 8 de Março e por isso seguiremos juntas até que todas sejamos livres!

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)