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Mais do que tratar de comida, alguns filmes dão ao ato de cozinhar amplos significados, do excêntrico Como Água para Chocolate ao clássico Vatel, o Cozinheiro do Rei

Excêntricos e clássicos

Examinaremos os filmes que poderíamos chamar de excêntricos, na medida em que estão perquirindo um sentido para a comida e para a gastronomia, enquanto focalizam uma ruptura de tabus. Não são comédias românticas e nada têm de tolos, muito pelo contrário.

O mexicano Como Água para Chocolate (direção: Afonso Arau, México, 1992, 123 min.) adapta um romance de Laura Esquivel, exemplar de certa cultura tradicionalmente machista latino-americana. Tem um enredo movimentado. A mãe cozinheira, que deu à luz enquanto cortava cebolas na cozinha, não permite que a filha mais nova se case antes das mais velhas. Por isso obriga o pretendente da caçula a casar com outra irmã. A partir daí... São histórias de mulheres, sempre girando em torno do “cozinhar”. Filme premiadíssimo. O título alude ao ponto de fervura da água e da raiva da protagonista.
Comer Beber Viver (direção: Ang Lee, China e EUA, 1994, 123 min.) mostra um pai chinês que por profissão é chef, em Taipei, às voltas com três filhas e seus infinitos problemas, todos vivendo na mesma casa. As duas mais velhas têm carreiras e são profissionais bem sucedidas, enquanto a mais nova ainda é estudante e tem um emprego numa lanchonete. O almoço aos domingos reúne todos ao redor da comida.
Amor à Flor da Pele (direção: Wong Kar Wai, Hong Kong e EUA, 2000, 98 min.) é um belíssimo e muito premiado filme chinês de Hong Kong, em que uma mulher e um homem, ambos casados com outras pessoas, convivem e fazem refeições juntos, enquanto investigam a possibilidade de seus respectivos cônjuges estarem tendo um caso. A intimidade crescente se restringe ao partilhar da comida, e não por acaso o título provisório do filme era A Story of Food.

Vem do grande cinema da Coreia do Sul Old Boy (Park Chan-wook, Coreia do Sul, 2003, 119 min.). A cena mais marcante é aquela em que o protagonista come um polvinho vivo, para horror dos espectadores. O filme foi premiado no festival de Cannes. Dez anos mais tarde, Hollywood faria um remake do filme, com direção de Spike Lee.
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Entre os clássicos propriamente ditos, exige menção As Aventuras de Tom Jones (Tony Richardson, Reino Unido, 1963, 128 min.), famosa obra do diretor inglês, baseado no romance ainda mais famoso de Henry Fielding, publicado em 1749. Entre inúmeras aventuras picarescas, o incorrigível Tom vive uma cena de sedução em que ele e a dama do momento se servem das iguarias, devorando um jantar enquanto usam as mãos e os dentes da maneira mais sugestiva possível, com resultados engraçadíssimos. O filme ganhou todos os prêmios internacionais, inclusive o Oscar de melhor filme e de melhor direção.

Mas nosso país também faria uma contribuição original, até escandalosa, quando Nelson Pereira dos Santos dirigiu Como Era Gostoso o Meu Francês (Brasil, 1971, 84 min.), baseado nas memórias de Hans Staden sobre a temporada que passou entre os tupinambás do litoral paulista, no início da colonização. Enquanto o canibalismo é minuciosamente analisado e exibido, inverte-se o ângulo de visão, fornecendo uma perspectiva zombeteira dos costumes muito mais indefensáveis dos conquistadores brancos. Já foi refilmado.

O Discreto Charme da Burguesia (França, 1972, 105 min.) – Luis Buñuel, cuja formação entre anarquista e surrealista é a base de uma cinematografia ímpar, assesta os holofotes no estilo de vida de suprema elegância, refinamento e savoir-faire que a burguesia soube criar. Ao mesmo tempo motivo de fascínio e de horror, as etiquetas da boa mesa são ponto de foco do filme, em que os ricos estão sempre em busca de comida. Muitas vezes lembrada é a cena em que a anfitriã prova o gigot d´agneau antes que seja levado para o jantar, num único gesto de gosto, aprovação e perícia. Anos antes Buñuel já focalizara certeiramente o banquete como símbolo do poder e dos apetites jamais saciados da classe dominante, em O Anjo Exterminador (1962). Depois de se locupletarem, os convivas, em suntuosos trajes de cerimônia, entregam-se a repetidas tentativas de deixar a mesa. Ao finalmente saírem, encomendam uma missa de ação de graças: mas então, e é assim que o filme termina, não conseguem sair da igreja ao fim da missa. Para alguns, o ponto mais alto da obra do grande diretor e com certeza um dos mais altos da história da sétima arte.

A Comilança é mais conhecido pelo título de La Grande Bouffe (França e Itália, 1973, 130 min.). Marco Ferreri faz um filme assustador, mostrando quatro burgueses bem sucedidos e ricos, entediados até a alma, que decidem comer até morrer de tanto comer.  Para isso, reúnem-se periodicamente, executando seus rituais com perfeição. O filme é uma alegoria dessa classe, que literalmente se empanturra até estourar. Com um naipe de atores incomparáveis: Marcello Mastroiani, Michel Picoli, Philippe Noiret, Ugo Tognazzi.

O alemão Bagdad Café (Alemanha Ocidental e EUA, 1987, 91 min.), dirigido por Percy Adlon, com Marianne Sägebrecht, é um filme delicioso. Uma mulher alemã, gorda, excessivamente agasalhada e não falando a língua, é abandonada pelo marido numa viagem de carro pelos desertos dos Estados Unidos, apenas com a mala na mão. Ao arranjar emprego no café que dá título ao filme, começa para ela uma nova vida. A excêntrica fauna local inclui muitos marginais e limítrofes, e a mulher passa por uma espécie de iniciação à vida, deixando de ser a esposa convencional e infeliz que sempre fora. Até suas vastas proporções tornam-se atraentes, e um pintor local, vivido extraordinariamente pelo ator Jack Palance – até então vilão de cinema, devido a sua carantonha, e que encarnou até Átila – interessa-se por ela e por pintá-la em trajes de Eva, transformando-a num Botero. A canção Calling you, na voz da cantora de gospel Jevetta Steele, ganhou vida própria e correu mundo.

A Festa de Babette (direção: Gabriel Axel, 1987, 102 min.). Este conto da escritora dinamarquesa Karen Blixen rendeu um belo filme, igualmente dinamarquês. Uma francesa misteriosa, que tinha sido chef no Café Anglais, após perder marido e filho na Comuna de Paris foge até dar com os costados numa aldeia perdida na Escandinávia, perturbando o cotidiano dos moradores. Após muitos anos trabalhando como criada, ganha na loteria e investe os lucros num banquete que passa meses preparando. Os nativos, que pertencem a uma severa seita protestante puritana, acabam perdendo as estribeiras quando se regalam com os acepipes. Uma festa para os olhos e um prazer quase gustativo. Teve grande sucesso internacional.

Dirigido pelo britânico Peter Greenaway, O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante (Holanda, Reino Unido e França, 1989, 124 min.), com Helen Mirren, é considerado como a obra-prima deste autor cult, idiossincrático e criativo, com sua ênfase especial na música e na pintura. São célebres suas obras experimentais em multimídia. Seus filmes não se parecem com os de mais ninguém: lembre-se aquele em que se escreve sobre o corpo de um japonês nu (The Pillow Book). Tremenda crítica ao materialismo que se expressa na gula e nos excessos da gastronomia, traz cenários estranhíssimos, com imensos galpões e cozinhas escuras se desconjuntando. Monta uma oposição marido-comida/amante-livro. Visualmente rico e até sobrecarregado, grotesco e barroco.

Vatel, o Cozinheiro do Rei (direção: Roland Joffé, Reino Unido, França e Bélgica, 1999, 117 min.) trata de um caso célebre ocorrido em 1671, quando o rei Luis XIV, que vivia na corte de Versalhes, avisou o príncipe de Condé que viajaria até seu castelo, onde se hospedaria, para pôr à prova os talentos tão ovacionados de seu chef. Assistimos a toda a complicada preparação de um banquete para um rei e sua comitiva, indo desde a caça, o abastecimento, as provisões de algo difícil de conservar como o gelo, etc., indo até a confecção das iguarias. E termina com o desfecho que o caso teve na vida real, quanto Vatel, descontente com o resultado e achando que desgraçara seu senhor perante o rei, se suicida. Com Gerard Depardieu como Vatel.

Em anos mais recentes, depois que a epidemia de obesidade se tornou um problema planetário, outras perspectivas surgiram. Michael Moore, o grande militante, nunca deixa de disparar farpas nessa direção em seus livros e filmes. Pesquisando a epidemia que assola seu país, Supersize me! (direção: Morgan Spurlock, EUA, 2004, 100 min.) documenta a via-crúcis do diretor, que decidiu comer só no McDonald´s durante um mês e ver o que acontecia. Pois em um mês engordou 11 quilos e apresentou várias moléstias, tendo depois sérias dificuldades para perder o peso e voltar à saúde normal. Filme independente, ganhou o grande prêmio no festival de Sundance.

Esse é aproximadamente o ponto de vista do documentário italiano Slow Food Story (direção: Stefano Sarlo, Itália e Irlanda, 2013, 74 min.), que narra a trajetória de Carlo Petrini, fundador do movimento de resistência que antagoniza a fast-food, valorizando as tradições locais, os pequenos produtores, a diversidade agrícola e, mais importante que tudo, o princípio do prazer. Alerta para o fato de que nossos hábitos alimentares estão destruindo o planeta. O movimento Slow Food, nascido num vilarejo italiano como protesto contra as lanchonetes McDonald´s, hoje se expandiu internacionalmente e tem representação em 150 países.

 

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate.