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Dados sugerem que a noção de “legitimidade” da violência conjugal contra parceiras é mais provável em contextos familiares

Em 2001, pesquisa da Fundação Perseu Abramo (FPA) com 2.502 brasileiras, acima de 14 anos, permitiu a projeção escandalosa de que pelo menos 2,2 milhões de mulheres seriam espancadas a cada ano no país – uma a cada 15 segundos. Constatou ainda a transversalidade da violência conjugal não só física, mas também em suas expressões moral-psicológica e sexual, atingindo mulheres de todas as idades, raças, classes sociais e regiões (v. A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004).

De lá para cá, houve avanços, a começar pela criação, já no início do primeiro mandato do governo Lula, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com a decorrente expansão de programas contra a violência de gênero, absorvendo demandas de décadas do movimento feminista. No plano legal, ocorreu a promulgação da Lei Maria da Penha (11.340/06), que agravou a punição dos agressores e trouxe definitivamente para a esfera pública o que o senso comum ainda insiste em considerar como parte do âmbito estritamente privado.

Mas os resultados dessas novidades ainda são tímidos (v. Enfrentamento à Violência Contra a Mulher – Balanço de Ações 2006-07, SPM), diante da magnitude do problema e do enraizamento histórico-cultural do machismo na sociedade brasileira. Na mesma pesquisa de 2001 da FPA, paralelamente à amostra nacional de mulheres, fez-se um estudo piloto com 408 homens paulistanos, na tentativa de se compreender a questão da violência conjugal pela ótica dos agressores. Os dados obtidos confirmaram a profundidade do problema, ao mesmo tempo que sugerem caminhos para a prevenção.

Embora quase unânime o reconhecimento da existência do machismo no Brasil (92%), a maioria dos paulistanos projetava o problema nos outros, considerando-se não-machista (74%). Entre esses, no entanto, 14% admitiram já ter batido em uma esposa ou namorada (a mesma taxa entre os que se admitiram machistas), sendo 8% uma vez e 6% “algumas vezes” (contra 11% e 3% dos machistas assumidos). Entre os agressores confessos, apenas pouco mais da metade avaliou “ter agido mal” (56%) ou afirmou que, em situação semelhante, não bateria novamente em sua parceira (54%). Os demais acreditavam ter “agido bem” (21%) ou ao menos em parte (18%); disseram não saber se o fariam novamente (32%) ou que bateriam nelas outra vez (14%).

A gravidade da questão não estaria, pois, apenas na alta incidência do fenômeno, mas também na proporção elevada de agressores que acredita “fazer a coisa certa” – como se houvesse circunstâncias em que o uso da violência contra a mulher fosse moralmente justificável.

Já a indicação de vias preventivas decorre da observação de que, controlando-se a “educação” que receberam, a taxa de agressores entre os que levavam surras dos pais foi quase o dobro (18%) que a observada entre os que nem sequer levavam tapas (10%). Na mesma direção, considerando-se somente os que tinham filhos, apenas entre a minoria (13%) que disse nunca ter apanhado dos pais prevaleceram os que nunca teriam batido nos filhos (84%); entre os (33%) que levavam tapas dos pais, a maioria afirmou de vez em quando dar tapas nos filhos (61%); e justamente entre a metade (51%) que disse ter levado surra dos pais, registrou-se a maior taxa dos que confessaram já ter surrado os filhos (9%, contra 3% entre os estapeados e 0% entre os não-agredidos).

Enfim, apesar de seu caráter exploratório, os dados sugerem que a noção de “legitimidade” da violência conjugal contra parceiras é mais provável em contextos familiares em que se reproduz a violência doméstica, entre gerações, tida como “natural”. Há, pois, de se meter mais fundo a colher no que parece ser briga de marido e mulher.

Gustavo Venturi é sociólogo e cientista político ([email protected]).