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Preocupação de Assange desde o início das atividades dele em 2006 era a internet vir a ser instrumento de monitoramento por parte dos governos. E inegavelmente, acrescento, ser utilizada de maneira tão agressiva, despudorada pelas grandes corporações empresariais.

O jornalismo realmente existente não é capaz de decifrar o enigma Julian Assange.

Ou não quer.

Decifrado, seria difícil mirar o espelho.

A chegada de Assange pareceu um estranho “Deus ex-machina”.

A mexer com tudo, desafiar paradigmas estabelecidos havia mais de século.

Máquina admirável, a do jornalismo.

Surgido como algo surpreendente, em busca da verdade, irrompendo caminhos para a burguesia, mas também abrindo veredas, aqui e acolá, para a classe trabalhadora.

Marx foi jornalista, e valorizou muito a profissão.

Lênin se valeu do jornalismo.

Gramsci, com muita ênfase.

Nenhum deles, enquanto exerciam a atividade e encontravam brechas para o exercício da crítica, desconheciam fosse um território dominado essencialmente pela burguesia.

Houve momento, Marx redator-chefe, caiu da Gazeta Renana porque a burguesia não suportava a pena crítica dele.

Gramsci, o comunista mais sagaz na descoberta dos segredos da revolução no Ocidente, refletiu, e já vai quase século isso, sobre a natureza partidária das empresas de comunicação da época.

“Muitas vezes,[...] o Estado-Maior intelectual do partido orgânico [...] atua como se fosse uma força diretriz em si, superior aos partidos e por vezes mesmo julgada como tal pelo público. Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista  (ou um grupo de revistas), são também ´partidos´ ou ´frações de partidos´ ou ´função de determinado partido´. Pense-se na função do Times Inglaterra, na que teve o Corriere dela Sera em Itália, e também na função da chamada ´imprensa de informação´, que se dizia ´apolítica´, e mesmo na imprensa desportiva e na imprensa técnica.”

Imagine o quanto foi aprofundada tal natureza partidária ao longo do desenvolvimento desses meios.

E nem se queira driblar tal noção por conta do surgimento da internet, absolutamente dominada por grandes e pouquíssimas corporações, envolvidas na defesa do grande capital, elas próprias integradas ao mundo do capital, por obviedade.

De modo cristalino, tais corporações são hoje o principal instrumento da hegemonia do capital, instrumento de uma “governança mundial”, a conturbar a vida das nações.

Sentem-se no direito de intervir no destino das nações.

A propor e propagar golpes, sem quaisquer limitações, como se eleitas para dirigir o mundo, sempre a favor do capital e voltadas aos próprios interesses.

Tem pouco tempo, quatro anos passados, Elon Musk afirmava sem rodeios:

_ Vamos dar golpe em quem quisermos.

Falava a respeito da Bolívia.

Do interesse dele no lítio boliviano.

Como adversário, isso mesmo, de Evo Morales então.

Não se trata assim apenas de uma intervenção direta.

Trata-se de um protagonismo político aberto.

Nada de dissimulação.

A internet, e Musk é largamente o principal controlador dela atualmente, e a antiga e atual mídia empresarial, impérios de comunicação envolvendo televisões, emissoras de rádio e, ainda, jornais, impressos ou não, constituem atualmente o partido a que se referia Gramsci nos primeiros anos do século 20.

Atuam em defesa da ordem.

Da ordem capitalista neoliberal atualmente.

Sepultar as ilusões.

O denominado jornalismo, nascido com tintas revolucionárias mesmo sendo substancialmente um instrumento da burguesia, foi ao longo do tempo e cada vez mais colocado no devido lugar.

A verdade deixara de ser a utopia da atividade, e isso já de há muito tempo.

Sempre houve brechas, acessos disruptivos provocados por jornalistas mais ousados, capazes de surpreender.

Sem nunca, no entanto, no processo, alterar a condição estrutural da atividade jornalística: assegurar a boa governança capitalista nas diversas fases desse modo de produção.

O jornalismo ousado, aquele em busca da verdade, foi contido por parâmetros estabelecidos, por rotinas produtivas bem estabelecidas, por determinações “vindas de cima”, como se naturais fossem, configurando um “modo de produção” de notícias muito próprio, com poucas e selecionadas fontes, capazes de simular, quando fosse o caso, coberturas amplas, como se o fossem.

E apareceu o Deus ex-machina.

E surgiu Assange.

Estranho personagem a desafiar máquina tão admirável, o jornalismo, posta para deleite dos poderosos do mundo, inclusive dos grandes impérios.

Ele queria desafiar aquela máquina.

Mostrar o quanto de segredos havia neste mundo vasto mundo e não me chamo Raimundo.

Desafiou.

A internet, a mídia empresarial tradicional, os impérios, as burguesias do mundo não aceitaram a chegada dele.

Era um estranho, a querer estragar o baile.

O baile mundial das classes dominantes.

E o elegeram inimigo público número um.

E o encarceraram.

A criação do WikiLeaks em 2006 foi uma espécie de tapa na cara do jornalismo tradicional.

Não um tapa qualquer.

Posto em sossego, os barões da mídia empresarial e mesmo os jornalistas, acorrentados aos parâmetros impostos por aqueles barões, não esperavam o surgimento de um grupo de ativistas disposto a demonstrar houvesse muito mais coisas no mundo do que podia imaginar nossa vã filosofia, tantos segredos guardados a sete chaves, que o jornalismo não pretendia descobrir.

Assange e sua trupe ousada, pretendiam.

E foram responsáveis pelo vazamento de setecentos mil documentos considerados secretos pelo império norte-americano.

Jornalismo na veia.

Impossível de ser exercido pela atividade jornalística tradicional.

Fosse, e o jornalismo dos barões não seria o estabelecido, o conformista, o sustentáculo do capitalismo e dos grandes impérios, de modo especial do império norte-americano.

Preocupação de Assange desde o início das atividades dele em 2006 era a internet vir a ser instrumento de monitoramento por parte dos governos.

E inegavelmente, acrescento, ser utilizada de maneira tão agressiva, despudorada pelas grandes corporações empresariais.

E hoje, manipulada ostensivamente pelas forças da extrema-direita, cujo crescimento, entre tantos outros fatores, deve-se à internet.

Numa entrevista a Jamil Chade, em 2013, Assange afirmava ter a internet redefinido as relações de poder no mundo, transformando-se no sistema nervoso central das sociedades, e tal poder estaria se virando contra as populações.

De lá para cá, tudo piorou, e os vaticínios de Assange se confirmaram.

E hoje a internet é a principal difusora das chamadas fake news.

Os governos democráticos são obrigados a regular as redes sociais de modo a terem o direito de governar.

Porque levados a enfrentar a avalanche de mentiras, de construções fantasiosas propagadas pela internet, dispostas a contribuir com golpes e a manipular corações e mentes.

E isso se dá, essa avalanche, sobretudo pelos grupos de variada natureza da extrema-direita.

A libertação dele, depois de quase uma década e meia de prisão, há de ser comemorada.

E aqui há se de contar o confinamento desde o momento da entrada dele na embaixada do Equador, em 2012, passando depois pela “Prisão de Sua Majestade Belmarsh” desde 2019, no Reino Unido, prisão conhecida também como “Baía de Guantánamo da Grã-Bretanha”, tal o modo como tratadas as pessoas ali encarceradas.

Prisão reservada a presos masculinos, Belmarsh abriga “presos de alto perfil”, curiosa definição reservada àqueles relacionados à segurança nacional.

Dentro de Bermarsch, há 48 celas individuais.

Parecida com Guantánamo, a odiosa prisão dos Estados Unidos em território cubano, porque ali encarcerados suspeitos de terrorismo sem qualquer acusação, e por longo tempo.

É a prisão mais dura da Inglaterra, alvo de muitas denúncias de torturas, à semelhança, insista-se, de Guantánamo.

Ali Assange viveu cinco anos, o mais tormentoso, sofrido momento da saga dele.

Houve muita mobilização de expressivos intelectuais, militantes de direitos humanos de todo o mundo, de várias autoridades, Lula entre elas, em favor da libertação dele.

Pouco da própria mídia empresarial.

Pouco também das redes sociais tradicionais.

O jornalismo parecia ter vergonha de Assange.

E tinha alguma razão para tanto.

À euforia do mundo democrático diante da libertação dele, dos defensores de direitos humanos, da liberdade de opinião, à euforia dos defensores do jornalismo livre, aquele da utopia da busca da verdade, a isso tudo corresponderam notas de pé de página da mídia tradicional.

E um noticiário insosso, “objetivo”, a naturalizar os processos persecutórios estadunidenses, como a dar razão a todos os procedimentos do império contra o jornalista.

Provável, e não o diz, essa mídia condene a atividade de Assange.

Talvez imagine, só para argumentar ela diria, Assange trabalhe fora dos parâmetros estabelecidos por ela, mídia tradicional.

Foi atrás de coisas perigosas.

Desafiou a segurança nacional dos Estados Unidos.

Sem permissão.

Está acostumada isso.

A pedir licença.

Assange não queria pedir licença.

Queria mostrar a cara do monstro.

A cara do império.

De como trata os adversários.

A qualificá-los de terroristas, e a matá-los, eliminá-los com métodos terroristas.

Estamos assistindo a isso agora, como o holocausto verificado em Gaza, com Israel e Estados Unidos massacrando toda uma população com o argumento do combate ao terrorismo, usando o terrorismo diariamente contra mulheres e crianças principalmente.

Assange fez jornalismo.

Decididamente, Assange é um herói desses tempos de internet, desses tempos da mídia empresarial acovardada, totalmente submissa, porque parte do capitalismo neoliberal, com toda a violência e política de exclusão praticada pelo atual estágio do modo de produção de mercadorias no mundo.

Os defensores do jornalismo, daquele jornalismo voltado a buscar a verdade, têm uma dívida monumental com Assange.

E compreendem porque o império norte-americano tem ódio profundo a ele, capaz de expor a nu os muitos atos de terrorismo praticados por aquela grande potência.

E o mundo capaz de verdadeiramente amar a liberdade, a democracia, a liberdade de expressão, esse  mundo comemora a soltura de Assange das masmorras dos impérios.

Viva Assange!

Viva a liberdade!

Viva o direito à verdade!

 

Referências

CHADE, Jamil. Entrevista com Assange: “É bom que os governos tenham medo das pessoas”. Estadão, 02/02/2013.

CHADE, Jamil. “Assange estava preocupado com a internet como instrumento de monitoramento por parte dos governos”, diz jornalista que entrevistou fundador do WikiLeaks. 98 Talks, 25/06/2024.

GRAMSCI, Antonio.  Obras Escolhidas, volume 1. Editorial Estampa, 1974, p. 285.

“Vamos dar golpe em quem quisermos”, diz Elon Musk, dono da Tesla, sobre a Bolívia. No twitter, bilionário respondeu provocação sobre interesse em derrubar Evo Morales para ter acesso ao lítio boliviano. Brasil de Fato, São Paulo (SP), 25/07/2020.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros