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O casamento infantil não é percebido como um problema social, pois em geral se trata de união informal e consensual. Assim, escamoteia-se o caráter de imposição, uma "forma de ocultar o abuso e a violência"

O casamento infantil corresponde a uniões nas quais um ou ambos os cônjuges são menores de dezoito anos de idade. Na maior parte das vezes ocorre entre um homem mais velho e uma menina.

De acordo com a organização Girls not brides, a cada ano 12 milhões de mulheres se casam antes de completarem 18 anos. O que corresponde a 23 casamentos por minuto – ou quase uma jovem menor de dezoito anos se casando a cada 3 segundos. Segundo a mesma organização, de todas as mulheres vivas atualmente, cerca de 650 milhões se casaram enquanto crianças, cerca de uma em cada cinco mulheres em todo o mundo. Se essa tendência não for interrompida, até 2030 mais 150 milhões de meninas devem se casar antes dos dezoito anos.

Níger (76%), República Centro Africana (68%), Chade (67%), Bangladesh (59%) e Burkina Faso, Mali e Sudão do Sul (52%) são os países com as cinco maiores proporções de mulheres com idade entre 20 e 24 anos que se casaram antes de completarem 18 anos de idade. Em números absolutos, a Índia ocupa a primeira posição (15,5 milhões), seguida de Bangladesh (4,4mi), Nigéria (3,5mi), Brasil (3,03 mi) e Etiópia (1,1mi).

Para o Brasil, os dados mais recentes, de 2006, indicavam que 36% das mulheres brasileiras (à época entre 20 e 24 anos) se casaram antes de completar 18 anos e 11% se casaram antes dos 15 anos de idade.

Dentre as motivações mais comuns dos casamentos infantis encontram-se a pobreza, a busca pela provisão de estabilidade econômica, expectativas de conservar a honra da família e preocupações com a segurança e a saúde das meninas – neste último caso acredita-se que o casamento seria uma forma de impedir a contaminação de doenças sexualmente transmissíveis, quando na prática muitas meninas são contaminadas pelos próprio maridos.

Em sociedades pobres o casamento infantil apresenta-se como uma estratégia econômica de sobrevivência, uma vez que as meninas são comumente percebidas como "fardos econômicos" para suas famílias. O costume dos dotes aumenta ainda mais esse "fardo", de forma que a cessão das filhas é uma maneira de contornar o pagamento dos dotes, ainda prevalente em "sistemas tradicionais".

No Brasil o casamento das meninas não é ritualizado e imposto por motivos religiosos. Porém, consequências semelhantes se abatem sobre as jovens: gravidez precoce e subsequentes problemas de saúde maternal, neonatal e infantil; evasão escolar e redução do nível educacional das meninas; limitações a mobilidade, autonomia e independência; e a frequente exposição à violência doméstica.

O tratamento do casamento infantil em tratados internacionais foi tema de estudo de Luiza Sartori Costa, que deu origem ao livro Casamento Infantil – infância roubada por graves violações de direitos humanos das crianças (2019). A autora analisa acordos relativos aos direitos das crianças e aos casamentos, a fim de  identificar lacunas e espaços propícios para o enfrentamento da questão. A análise de Costa aponta incongruência "entre diversos documentos internacionais e tratados que discorrem sobre casamentos de modo geral e sobre casamentos infantis", ao mesmo tempo em que ressalta a "inexistência de uma proibição clara nos tratados internacionais, [os quais] deixam os Estados decidirem sobre questões fundamentais para a erradicação dessa prática".

Costa argumenta em favor de normas proibitivas, "com obrigações de caráter positivo e negativo que deverão ser cumpridas pelos Estados". Ela propõe a forma de um "protocolo adicional à Convenção sobre os Direitos da Criança", que trate especificamente dessa matéria.

As medidas justificam-se pelo fato de que o casamento infantil não é apenas uma violação dos direitos humanos das crianças, mas uma violação grave desses direitos –universais, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes. Sua violação contraria diversos artigos da Declaração sobre os Direitos das Crianças, de 1959, e da Convenção sobre os Direitos das Crianças.

O mais importante documento internacional sobre os direitos das crianças, a Convenção levou dez anos para ser aprovada. Começou a ser elaborada em 1979, decretado pela ONU como o Ano Internacional das Crianças, e foi finalmente aprovada em 1989. Ao longo da década posições conflitantes vieram à baila, "marcadas principalmente por diferenças entre visões ocidentais e orientais acerca da infância e pelo contexto da Guerra Fria". Felizmente, resultou no "documento internacional sobre direitos humanos com maior aceitação internacional, tendo sido a sua ratificação a mais rápida já verificada dentre os demais documentos que visam assegurar os direitos humanos". Foi sancionada por 196 países, sendo a única exceção os Estados Unidos. Note-se que nessa mesma época o Brasil sancionava o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, reconhecendo as crianças como atores sociais e sujeitos de direitos, na esteira das conquistas da Constituição Cidadã de 1988.

Porém, conforme analisa Costa, a temática do casamento infantil está ausente tanto na declaração como na convenção. Veio a ser tratada pela Assembleia Geral da ONU em duas resoluções específicas sobre Child, early and forced marriage (61/156 e 71/175) somente nos anos 2014 e 2016, respectivamente.

Recentemente também no Brasil comemoramos uma importante conquista do ano de 2019: a aprovação da Lei 13.811, que alterou o artigo 1.520 do Código Civil brasileiro, proibindo o casamento de menores de 16 anos. Até então o código permitia o casamento a qualquer idade em caso de gravidez ou para evitar cumprimento de pena criminal. A nova lei, contudo, não revogou a exceção que permite o casamento aos 16 anos.

Este tipo de proibição formal é fundamental, assim como é necessária maior atenção pública sobre o tema. Um dos desafios ao enfrentamento da questão decorre do fato do casamento infantil não ser percebido como um problema social, pois em geral se trata de uniões informais e consensuais. Com isso, escamoteia-se o caráter de imposição ou falta de opção melhor para as meninas, uma "forma de ocultar o abuso e a violência". Ressalta-se, contudo, que o consentimento decorre muitas vezes de uma "expectativa de se conquistar liberdade ao sair da casa dos pais, ambiente muitas vezes marcado por conflito e violências". Ao passo que esta espécie de agência feminina evidencia a própria "ausência de qualquer outra opção que apresente às meninas melhores condições de vida".

Justamente porque é um fenômeno multifacetado, com causas variadas, seu enfrentamento requer políticas públicas integradas, envolvendo combate à pobreza, educação, saúde, promoção da autonomia das mulheres, dentre outras. No âmbito internacional, tais políticas devem se orientar pelas metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.

Na contramão de todas essas orientações, vemos com indignação os retrocessos em curso no Brasil. Ataques ao ECA, desmantelamento de políticas de promoção da igualdade de gênero, a exclusão das temáticas de gênero e sexualidade das agendas da educação e as mais recentes propostas de abstinência sexual das jovens mulheres para evitar a gravidez precoce.

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)