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O texto papal levanta caminhos e mudanças necessárias para a preservação da vida, humana e da natureza. Dá ênfase à relação que temos com a cultura do descarte. Em tempos de covid-19, essa mensagem adquire sentido ainda mais vivo, profundo e urgente

Em 24 de maio de 2015 foi publicada a Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da Casa Comum. A propósito do aniversário de cinco anos desse belo e anunciador documento do Papa Francisco, este texto levanta algumas reflexões também motivadas pela data de 5 de junho, dia mundial do meio ambiente, que marcou a abertura da famosa Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, também conhecida como Conferência de Estocolmo, realizada em 1972.

Uma carta encíclica tem a função de comunicar uma mensagem do Santo Padre para dentro e para fora da Igreja. Sua publicação reflete, portanto, a expectativa de provocar um debate mais amplo na sociedade. Passados cinco anos da socialização do texto da Laudato Si’, avalio que o Papa Francisco foi bastante feliz em sua decisão, seja pela repercussão que o texto alcançou desde então, seja pelo fato de que se somou a um conjunto de reflexões de diversas matrizes do conhecimento sobre o tema, as quais não poderiam estar mais na ordem do dia.

Nas cerca de 190 páginas da Carta Encíclica, o papa discorre sobre várias questões relativas à nossa relação com a Casa Comum – ou mãe irmã terra, Pachamama, Gaia, planeta Terra. Já na escolha do nome para o documento, situa-nos sobre o ponto de partida do texto. Laudato Si’ corresponde à expressão louvado seja, utilizada por São Francisco de Assis em seu Cântico das Criaturas, também conhecido como Cântico do Irmão Sol, no qual ele faz referência à irmã mãe terra, irmã lua, irmão vento, irmã água, irmão fogo, dentre outras criaturas que coabitam e constroem conosco a vida na Terra.

O subtítulo, sobre o cuidado da Casa Comum, é também importante marcador do tom do documento. A começar pela ideia de cuidado. Trata-se de uma dimensão cara aos estudos de economia feminista, os quais apontam como o trabalho de cuidado (da casa, das crianças, dos idosos) é majoritariamente realizado por mulheres e historicamente invisibilizado. São atividades necessárias para a vida de cada uma e cada um de nós e, no âmbito coletivo, fundamentais para a reprodução social. Isto é, para permitir que outras tarefas e trabalhos sejam realizadas fora do lar. Apesar de indispensáveis, esses trabalhos são ignorados do ponto de vista econômico, via de regra nem chegam a ser contabilizados no orçamento das famílias. Uma das consequências desse processo é a invisibilização ou mesmo negação do próprio lugar das mulheres na sociedade, com efeitos objetivos e subjetivos sobre a percepção que temos de nós mesmas.

Apesar do documento não se referir explicitamente a essas elaborações do campo da economia feminista, ele abre espaço para tanto, pois nos convoca ao cuidado nas diversas dimensões. Da mesma forma, o entendimento da casa é também plural. Permite interpretações da morada que vão desde o nosso próprio corpo – a pluralidade de corpos também importa – passando pelo lar no sentido do domicílio e alcança finalmente a percepção da Terra como nossa Casa.

A noção de Comum, por sua vez, reforça tanto o cuidado como a casa. Reitera a ideia de que somos parte de um organismo maior, um organismo vivo e, decorrente disso, traz a dimensão da partilha e da comunhão, seja das riquezas que foram construídas antes da humanidade existir no planeta, seja daquelas que ajudamos a construir. Ao mesmo tempo em que partilhamos a riqueza, somos igualmente chamados a dividir as responsabilidades, assim como o próprio significado dessa caminhada, que envolve seres humanos e os demais seres que aqui estão, vivos e não vivos – como é o caso dos vírus. Falando em vírus, em tempos de covid-19 vemos como todas essas palavras, cuidado, casa e comum, e a mensagem emitida pelo papa adquirem sentidos ainda mais vivos, profundos e urgentes.

A Carta Encíclica se organiza em seis capítulos: 1. O que está a acontecer à nossa casa; 2. O Evangelho da criação; 3. A raiz humana da crise ecológica; 4. Uma ecologia integral; 5. Algumas linhas de orientação e ação; e 6. Educação e espiritualidades ecológicas.

Como vemos, a discussão sobre ecologia é central. Ela se faz presente no documento em duas dimensões distintas, porém interligadas: a ecologia dos saberes e a ecologia das práticas. Isto é, o diagnóstico do Papa Francisco sobre o que está a acontecer à nossa casa é elaborado a partir de uma gama variada de saberes e interpretações sobre a realidade. Essa abordagem vai além do que comumente chamamos de interdisciplinaridade, que corresponde à tentativa de colocar disciplinas variadas para conversar. A Laudato Si’ combina interpretações oriundas de distintas formas de conhecer e conceber o mundo, da ciência à religião. Nesse sentido, abre a possibilidade para encontros ainda mais potentes, envolvendo, por exemplo, toda sorte de conhecimentos indígenas, decoloniais, não ocidentais e outros.

A ecologia das práticas é tratada sobretudo nos capítulos de 4 a 6. Neles, a Carta levanta caminhos e mudanças necessárias para a preservação da vida, humana e da natureza. Dá ênfase à relação que temos com o consumismo e com o que o papa chama de a cultura do descarte. Vemos que o tema adquire ainda mais importância no contexto da pandemia: para alguns, a situação é de total privação, inclusive de alimentos. Para outros, os que têm os meios para comprar, a questão que se coloca é relativa ao sentido disso tudo. Diante de tamanha reviravolta, nos questionamos – precisamos nos questionar – sobre o sentido dessa acumulação sem limites, sem propósito. O ponto 203 da Encíclica já nos alertava para uma situação em que “temos demasiados meios para escassos e raquíticos fins”. Essa discussão nos permite revisitar o bom e velho debate sobre o ter e o ser.

No mundo em que vivemos, aqueles que não podem ter, que não podem acumular recursos financeiros, são tratados como descartáveis. Mas o que fazer com o que é descartável? Se os limites da Casa Comum extrapolam nosso domicílio e alcançam o próprio planeta, não faz sentido jogarmos nada fora e menos ainda produzir coisas que sejam feitas para logo perecer. A perspectiva da ecologia integral coloca em xeque o próprio “fora”, onde eventualmente depositamos o lixo. Nossa sina é então lidar com os rejeitos e rejeitados, a podridão do lixo e com as consequências de toda a desigualdade e decadência ética que produzimos.

No ponto 13 da Carta, o papa reafirma a urgência do desafio e sua fé na possibilidade de mudança, quando diz “sabemos que as coisas podem mudar”. A covid-19 mostrou que as coisas podem sim mudar. Mais que isso, já mudou muitas coisas.

À máxima do neoliberalismo expressa por Margaret Thatcher sobre a inexistência de alternativas – There Is No Alternative, TINA – dizemos que sim, há alternativa. Não há de ser o normal de antes, que nada tem de normal. Há de ser um caminho mais digno, justo, igualitário, feliz e respeitoso com todas as formas de vida, humana e da natureza.

 

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)