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Após dez anos do início da discussão sobre o tema, em setembro foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial

“É muito fácil, para os prepostos do poder (público ou privado), saber quem é negro. (...) A cor da pele subsiste como valor de distinção, de discriminação e preconceito. Gostemos ou não, esses são os fatos.”
Fernando Conceição, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA
(Observatório da Imprensa, 2.6.2009)

Após dez anos do início da discussão sobre o tema, em setembro foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, um conjunto de normas cuja vigência legal depende ainda de votação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e de sanção presidencial. Entre outras ações afirmativas, as políticas de cotas para negros e indígenas nas universidades e no mercado de trabalho e a definição de remanescentes em quilombos, que constavam do texto original do senador Paulo Paim (PT-RS), foram excluídas da versão aprovada.

Como na década passada, a atual polêmica sobre ações afirmativas de cunho racial oculta uma convergência importante: tanto os que as defendem quanto a maior parte dos que as rejeitam argumentam com base no mesmo princípio moral de defesa da igualdade de direitos de todo ser humano, independentemente de sua “raça” ou cor da pele. Os que são favoráveis a cotas raciais as veem como recursos temporários para equilibrar oportunidades entre negros e brancos; instrumentos de combate a desigualdades muito objetivas (documentadas por indicadores socioeconômicos) que políticas públicas formalmente universais não foram capazes de superar em 121 anos já passados da Abolição. A maioria dos que se opõem a ações afirmativas argumenta que, por serem humanamente iguais, todos devem ter os mesmos direitos, de modo que negros e indígenas não devem ser tratados como diferentes (ou, em versão retorcida, os brancos não podem ser prejudicados só por sua cor).

Portanto, já não é hegemônica – e isso não é pouco – a ideologia racista que, assentada em uma noção há menos de um século ainda tida como científica, sustentava a existência de raças biológicas distintas na espécie humana e a superioridade da “raça” branca sobre as demais. Abandonado esse paradigma, cuja pá de cal veio do recente sequenciamento do genoma humano – derrubando em definitivo qualquer diferença entre grupos “raciais” para além de características fenotípicas –, o debate deslocou-se para uma divergência tática sobre como atingir a utopia da igualdade universal: para os críticos (de boa fé) das políticas de discriminação positiva de negros e indígenas, sua implementação leva à racialização das relações sociais, realimentando o racismo que pretenderiam combater; para os defensores das ações afirmativas, a existência de “raças” – não como fato biológico, mas como construção histórico-cultural – já é um dado estruturante das relações sociais, tanto na esfera interpessoal como no plano institucional, fazendo-se necessário seu enfrentamento por meio de políticas “raciais” compensatórias.

Pesquisa nacional da Fundação Perseu Abramo e da Rosa Luxemburg Stiftung (v. Racismo no Brasil, Santos, G. e Silva, M.P., EFPA) apurou, em 2003, que se a maioria dos brasileiros de cor branca acreditava que “ser branco ou não branco no Brasil” é indiferente (60%, contra 38% que admitiam haver diferença), a percepção majoritária era inversa entre os de cor preta (41% a 55%) e entre os indígenas (38% a 60%). Ademais, 43% dos entrevistados de cor preta declararam já ter sido discriminados em ao menos um dos espaços investigados (escola, trabalho, atendimento na saúde, relação com a polícia e espaços de lazer), assim como 28% dos indígenas, contra 19% dos que se autoclassificaram como de cor parda e 16% dos brancos. A racialização do cotidiano é uma realidade cuja reversão, por paradoxal que pareça, passa pelo reconhecimento – e não pela negação ingênua – do fator racial como um marcador social da diferença.

Gustavo Venturi é doutor em Ciência Política, é professor de Sociologia da FFLCH-USP ([email protected])