A relação do governo Lula com o atual Congresso Nacional – renovado em menos de 50%, e com a continuidade dos presidentes das Casas e de boa parte dos líderes da legislatura anterior – vai requer da coordenação política do Palácio do Planalto muita paciência, humildade, disposição para o diálogo, calibragem no conteúdo das políticas públicas e capacidade de articulação e negociação, especialmente quando se tratar da revisão de marcos regulatórios aprovados nos últimos seis anos.
É que nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, ambos temerosos de processos de impeachment, o Poder Executivo fez suas as pautas de setores empresariais e do Congresso Nacional, tendo os líderes dos partidos da base e os presidentes das Casas domínio pleno da agenda e até do orçamento público, por intermédio das emendas impositivas e de relator.
No caso dos setores empresariais ou de mercado, em troca do apoio aos dois governos, as concessões foram grandes, especialmente na desregulamentação de direitos, na desativação das fiscalizações do trabalho e do meio ambiente. As principais mudanças foram a reforma trabalhista, a terceirização generalizada, o teto de gasto, a autonomia do Banco Central, o marco de saneamento, a reforma da previdência, as restrições de atuação e a privatização de estatais estratégicas, dentre outras.
No caso dos parlamentares, as retribuições pelo apoio se deram por intermédio do aumento dos fundos eleitoral e partidário, pela volta do horário eleitoral gratuito, pelo caráter impositivo das emendas de bancada, pela instituição das emendas de relator, o famoso orçamento secreto, e, principalmente, pela indicação dos ministros para a coordenação política e interlocução com o Congresso, bem como para as pastas com maior orçamento e capacidade de gasto.
Com a alternância no poder nas eleições de 2022, a pauta do Poder Executivo voltou para o controle do titular da Presidência, cujo perfil e visão de mundo difere completamente dos seus anteriores e isto incomodou profundamente, tanto a parcela do mercado que se beneficiou no período anterior, quanto os partidos conservadores e fisiológicos que perderam o controle sobre a agenda governamental.
Além disso, é preciso lembrar que o presidente Lula foi eleito em segundo turno com uma margem pequena de votos e não elegeu uma base consistente, em número suficiente, para aprovar sua agenda, dependendo da formação de coalizão de apoio que inclui partidos que apoiaram os governos anteriores e que nem sempre irá comungar com todas as iniciativas governamentais, especialmente aqueles que revejam temas aprovados nos governos Temer e Bolsonaro.
Num ambiente desses, é natural que essas forças reajam à perda de poder e tentem, a todo custo, pelo menos preservar os “avanços” que tiveram nos governos anteriores. Por isso, a reação a qualquer tentativa do atual governo de rever marcos regulatórios aprovados nos últimos seis anos, especialmente se não houver um amplo, convincente e demorado processo de convencimento e negociação política.
É nesse contexto que devem ser lidas as derrotas do governo em relação à retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e em relação ao marco de saneamento, exatamente porque não houve diálogo e os instrumentos escolhidos para fazer a mudança – medida provisória e decreto – dispensaram a outiva do Congresso Nacional, visto como uma afronta ao Poder Legislativo. Acrescente-se a isso o adiamento da votação do Projeto de Lei das Fake News.
Esses episódios – em que no primeiro o governo foi forçado a trocar a medida provisória por um projeto de lei e no segundo em que a Câmara sustou os atos do decreto, que ainda depende de deliberação do Senado, para a suspensão efetiva, assim como a retirada da pauta do Projeto de Lei das Fake News – demonstram que a Câmara dos Deputados, pressionada por bolsonaristas e por parcela do mercado, não está disposta a votar temas polêmicos nem rever marcos regulatórios aprovados nos governos Temer e Bolsonaro, ainda mais se não houver um processo de entendimento com o Poder Legislativo.
O recado dado é absolutamente claro. Se não houver diálogo e calibragem nas propostas, o Congresso Nacional, em particular a Câmara dos Deputados, vai criar dificuldades para o governo. Além disto, existe o problema do Banco Central, cujo presidente, um opositor claro do atual presidente da República, continua insistindo em manter os juros nas alturas, dificultando enormemente o retorno do crédito e, em consequência, a volta dos investimentos da geração de emprego e renda.
Por isto, o governo precisa dobrar o cuidado na relação com o Congresso para evitar surpresas desagradáveis, como as recentemente ocorridas. Nunca é demais lembrar que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, absolutamente político e sem base material, foi mais resultado de pressão do mercado, da mídia e de parcela expressiva do Congresso, inconformado com a pouca atenção dada aos parlamentares e com uma postura mais intervencionista da presidente na economia, do que por supostos desvios de conduta.
A pauta mais robusta do governo – além da retomada dos programas sociais, da reconstrução da máquina pública e da revisão de excessos em alguns marcos regulatórios, como o da educação básica, do saneamento, do trabalhista, do meio ambiente e outros – será a aprovação do arcabouço fiscal e da reforma tributária, vistos pela mídia e pelo mercado como indispensáveis para a estabilidade econômica e a retomada do crescimento econômico.
O governo já sabe que as forças políticas na Câmara estão organizadas em torno das bancadas informais, como agronegócio, evangélica e de segurança, que possuem muito poder de pressão, e os partidos políticos em torno de blocos, com os quais necessita dialogar urgentemente. São quatro grupos ou blocos: um composto informalmente pelos partidos de esquerda (Federações PT/PCdoB/PV e PSol/Rede), um integrado formalmente por forças do Centrão e partidos de centro-esquerda (União, PP, Federação PSDB/Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota), outro constituído formalmente pelos partidos MDB/PSD/Republicanos/Pode/PSC, e, por fim, o bloco informal de oposição, formado basicamente pelo PL e o partido Novo.
O desafio do governo em geral, e do presidente Lula, em particular, será superar esses obstáculos de relacionamento com o Congresso e criar os meios para retomar o crédito e incentivar a atividade econômica. Para tanto, é necessário organização e criatividade. No caso do Banco Central talvez tenha que recorrer ao Conselho Monetário Nacional (CMN), no qual possui maioria para aumentar a meta de inflação, retirando o pretexto para a manutenção dessa taxa de juros exorbitante, e no caso do Congresso Nacional, particularmente da Câmara, adotar uma postura de diálogo e respeito para com as diversas forças políticas representadas no Poder Legislativo, sem atropelos, além de mostrar para elas que a vontade majoritária do povo foi no sentido das medidas propostas pelo novo governo.
O sucesso do governo depende da aprovação de sua agenda no Congresso Nacional e da volta do crédito e dos investimentos, sem os quais dificilmente o terceiro mandato repetirá o sucesso dos dois primeiros, que combinaram crescimento econômico, redução das desigualdades e o controle das contas públicas. A situação pode e certamente será equacionada, desde que seja melhorada a comunicação e a coordenação política do governo, a Secretaria de Relações Institucionais (SRI) seja empoderada e dê mais atenção ao relacionamento com o Poder Legislativo e o governo, em última instância, faça uso de um ativo inigualável na arte de dialogar e convencer: o presidente Lula, um homem com enorme poder de persuasão e negociação e que consegue expressar, melhor do que ninguém, as angústias e necessidades do povo.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap e é membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – o Conselhão