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O atual presidente mantém coerência na prática constante de desorientar os adversários a cada dia, com suas idas e vindas, como se isso fosse simplesmente desatino. Não é. Tem método

Vocês querem bacalhau?

Não atino a razão pela qual Chacrinha me veio à mente quando penso nas aparentes loucuras de Jair Bolsonaro. Talvez pelo fato de não querer explicar, de querer sempre confundir, ele explique o atual presidente. Antecipa a explicação. Talvez a lembrança de Chacrinha seja um convite a todos nós. A emergência de lideranças populistas de direita – nem gosto muito de utilizar o conceito de populismo para esses casos, mas sigo a moda, por enquanto – nos obriga, obriga a esquerda, a repensar-se quanto à comunicação. No mínimo, a entender o fenômeno novo, e a abandonar ferramentas antigas, pensar em novos caminhos, sob pena de imaginarmos a possibilidade de navegar com bússolas antigas em mares novos e tempestuosos.

Nem quero tratar do último fato político. Não sabemos as consequências do pedido de demissão de Sérgio Moro. Ainda não. Quem sabe, tenham razões os defensores da ideia de que isso deu um poderoso combustível para o impeachment de Bolsonaro, ascensão de Hamilton Mourão. É, porque o atual presidente saindo, assume o vice. Não há escapatória. Salvo tivesse a esquerda força para impor outra saída, com novas eleições, por exemplo, o que parece não ser o caso nesse momento. O presidente perde alguma coisa, alguns aliados. Mas, em contrapartida, abre caminho, vai constituindo um governo à sua inteira feição, uma temeridade, uma tragédia, mas real. Em poucos dias, demitiu Luiz Henrique Mandetta, seu então prestigiado ministro da Saúde, a conduzir a luta contra a pandemia com alguma sensatez, e depois Sérgio Moro, apontado como uma pedra no sapato dele nas eleições de 2022. E ainda deixa no ar a hipótese de tirar Paulo Guedes, nesse caso esperando uma sinalização do grande capital. Nas últimas horas, o prestigiou – e técnico prestigiado, sabemos como é. A ver.

Meu esforço aqui é outro.

Vamos nos entender: abandonemos a ideia da loucura como elemento de explicação das atitudes do atual presidente. Ele é parte da ascensão mundial de líderes de extrema-direita, capazes de colocar a cara de fora, e obter apoio popular. Estão aí, a nos desafiar, entre vários, Donald Trump, Beppe Grilo, Giuseppe Conte, Boris Johnson, Bolsonaro e Viktor Orbán, nascidos sob outros modos de fazer política e pretendendo sepultar a “velha política” e, do jeito deles, sepultando-a.

Não há nada parecido com os métodos tradicionais na atividade deles. Não levam em conta a maioria dos paradigmas da política tradicional. Como é que se imaginaria tanta ousadia num presidente sem maioria no Parlamento viver em permanente ofensiva contra os políticos, como faz Bolsonaro? É da nova lógica. Se não começarmos a perguntar sobre esses novos paradigmas, nos equivocaremos a cada passo.

Se alguém disser que muitos dos métodos dessas lideranças guardam semelhança com a metodologia nazifascista, pode ter razão. É neofascismo. Outro tempo, outra conjuntura mundial, na era da revolução digital. Vamos tentar discutir isso. A revisitação do passado é sempre essencial, disso não tenho aberto mão. Mas como subsídio para o entendimento do presente, sempre a nos desafiar. Nunca para nos manter presos ao passado.

Em outro momento, já discuti esse assunto, de raspão, aqui mesmo em Teoria e Debate. Devo insistir. Desde o início, o atual presidente manteve a coerência: no respeito aos dogmas neoliberais no plano econômico e na prática constante de desorientar os adversários a cada dia, com suas idas e vindas, como se isso fosse simplesmente desatino.

Não é. Tem método.

Ele não está sozinho. As demais lideranças de extrema-direita seguem o mesmo caminho. Aquilo aparentado com a gafe, método. Fake news, método. Uma iniciativa sobrepondo-se a outra, método. Manter o país eletrizado, voltado para elas, método.

Não vieram pra explicar. Querem confundir os adversários, e confundem.

Querem o mundo girando em torno deles, e o mundo só fala neles.

Eu já falei aqui no portentoso livro Os Engenheiros do Caos, e sou levado a ele novamente, por necessidade.

Giuliano Da Empoli, o autor, nos alerta, e é aconselhável anotar: no mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, são os três citados por ele, "...cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática".

Isso nos diz alguma coisa?

Parece Brasil?

Parece Bolsonaro?

Nem importa muito, importa muito pouco, o discurso da grande mídia empresarial.

A interessar mesmo o tratamento dado pela população, pelo povo, às provocações, aos movimentos da liderança, aos aparentes insights lançados por ela ao vento.

Importam mais os memes viralizados, o humor suscitado, o comentário disseminado, a piada.

Ocupam a cena, independentemente do discurso arrumado da mídia tradicional.

O mundo virou de cabeça pra baixo, “está fora do eixo”, como diz Da Empoli, remetendo-se a Hamlet. Está. E é preciso compreendê-lo.

Há, rotineiramente, uma fala popularesca nos líderes da extrema-direita, objeto do escárnio por mentes esclarecidas, como se elas fossem rematada besteira.

São e não são. Tais falas não nascem ao acaso.

Os novos procedimentos, a “nova política”, de fundo profundamente conservador, como óbvio, são resultado do trabalho feroz de spin doctors, de ideólogos e, cada vez mais, “de cientistas especializados em Big Data”, sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder”, como diz Da Empoli.

Se a esquerda não se apossar desse novo mundo, em plena evolução, se não souber lidar com o fenômeno do chamado “partido-algorítmico”, se não se apropriar da metodologia da utilização dessa monumental quantidade de dados à disposição, inclusive os dados referentes ao pensamento do povo, estará fadada a uma espécie de “lamento esclarecido” enquanto desfilam e crescem à sua frente as hordas animadas pelos consultores das lideranças da extrema-direita, promovendo as vitórias delas. Trump, Brexit, Bolsonaro, todos, lideranças e fenômenos, fruto desses consultores, tudo considerado improvável, tudo tornado realidade.

Quando Trump, Boris Johnson ou Bolsonaro falam besteiras, na visão do nosso Iluminismo, ignoramos a base de suas falas, as pesquisas, a metodologia de animação da psicologia das massas, conhecida por eles a partir dos dados monitorados minuto a minuto por seus “engenheiros do caos”, a quem costumamos ironizar, como se não houvesse ciência em tudo isso, e há.

As besteiras, e não são poucas, viram, já o dissemos, o assunto do dia, o bate-papo de bar, a fofoca, viralizam, viram memes, provocam gargalhadas, ocupam o palco, tudo correndo por fora da mídia tradicional. As lideranças de extrema-direita sabem o terreno onde pisam, estudam a psicologia das massas quase milimetricamente, dia após dia. Não se movimentam tão aleatoriamente como se imagina.

Não é necessário lembrar, porque ocioso, ter Jair Bolsonaro ganhado a eleição contra a Globo. A pauta hoje é acionada pelos tuítes do presidente ou de seus filhos ou de Olavo de Carvalho. Nosso discurso, necessariamente contra-hegemônico, não pode ignorar o admirável mundo novo do Big Data. Temos de travar a luta levando-o em conta, única maneira de sentir a temperatura da psicologia das massas.

A luta contra-hegemônica nunca pretenderá a manipulação.

Quer conhecer o pensamento do povo para com ele dialogar, e caminhar junto. E para tanto necessita utilizar o novo manancial tecnológico à disposição, o universo de dados à mão. Saber valer-se com base científica das redes sociais. O que dizer para o povo em cada momento de modo a exercitar a contra-hegemonia. A extrema-direita tem avançado nisso, e muito, mundo afora. Tem sido, nesse aspecto, contemporânea de seu tempo. Não custa recorrer novamente a Da Empoli:

“Onde quer que seja, na Europa ou em outros continentes, o crescimento dos populismos tomou a forma de uma dança frenética que atropela e vira ao avesso todas as regras estabelecidas. Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam aos olhos dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua incompetência é vista como garantia de autenticidade. As tensões que eles produzem em nível internacional ilustram sua independência, e as fake news que balizam sua propaganda são a marca de sua liberdade de espírito”.

Tudo parece contrassenso.

O mundo de cabeça pra baixo.

Sacudir esse mundo, colocá-lo novamente no eixo, exigirá muito de nós.

A esquerda precisa ser contemporânea da comunicação do seu tempo para disputar a hegemonia novamente. Para sustentar suas lutas essenciais em defesa da liberdade, da democracia, da igualdade, da superação do capitalismo.

Referência bibliográfica

EMPOLI, Giuliano Da. Os Engenheiros do Caos. São Paulo: Vestígio, 2019.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros