A que se deve o abandono do termo comunista por inúmeros partidos historicamente ligados à III Internacional? O termo comunismo estará assim tão "sujo" aos olhos da humanidade, como estava em 1917 o termo social-democracia, que Lenin resolveu deixar de lado quando morreu com os partidos social-democratas e fundou os partidos comunistas? Ou será que o socialismo se rendeu aos valores do capitalismo?
Acredito que está havendo uma virada histórica; creio que se pode usar o exemplo do abandono do nome social-democracia. O socialismo foi implantado, concebido e organizado pelos partidos, comunistas nos países onde se fez a revolução, como no caso da Rússia, a China, da Coréia, de Cuba ou nos países da Europa oriental, onde não se deu o processo revolucionário clássico. Em todos estes, à exceção da Iugoslávia, não houve propriamente a tomada do poder através de uma reviravolta interna, mas o que ocorreu foi a mudança de sistema através da libertação contra o nazi-fascismo pelo Exército Vermelho. Na minha opinião, o papel dos partidos comunistas na construção do socialismo esgotou essa visão de projetar como deve ser o socialismo, de preconceber a sociedade - uma visão que não tem perspectivas no próximo século. É preciso repensar essas sociedades, repensar o socialismo, repensar a teoria. Particularmente a teoria do Estado. Os marxistas no poder deixam de ser marxistas. Deixam de analisar a sociedade que dirigem a partir de critérios científicos e históricos, desconhecem a formação cultural e econômica de seus países, as lutas sociais, as diferenças culturais. Desconhecem, enfim, a realidade, o que é a elevação ao absurdo da negação do marxismo. Enfim, o abandono do termo comunista corresponde à derrota de uma forma - e de uma concepção - de socialismo.
Pois, então, no socialismo real o que deve ser desfeito? O planejamento da economia? Enfim, essa tutela da sociedade civil, se é que existe alguma sociedade civil?
O fundamental é a forma de organizar o Estado e a produção, a economia. O primeiro obstáculo que precisa ser desfeito são os entraves, os estrangulamentos e as barreiras que impedem o crescimento econômico, ou seja, o aumento da criação de riquezas e a sua distribuição entre os produtores. Todos os países socialistas, sem exceção, vivem uma crise gravíssima de perspectiva em termos de desenvolvimento tecnológico, de desenvolvimento científico e, particularmente, de desenvolvimento da produção de bens de consumo, de alimentos e da prestação de serviços. As economias socialistas privilegiaram a indústria pesada e a prestação de serviços básicos: saúde, educação, transporte. E a sociedade capitalista desenvolveu, mantendo grande parte da população e da humanidade na miséria, um amplo setor de serviços, de diversão, de lazer e também uma ampla indústria de bens de consumo pessoal. Modernizou a vida, tanto a familiar quanto a pessoal, de uma parcela da população. Como os países capitalistas mais desenvolvidos já tinham acumulado grande estoque de riqueza, principalmente os Estados Unidos, a Europa e o Japão, eles elevaram o padrão de vida de suas populações - o que também se deve à luta democrática dos trabalhadores, que conseguiram distribuir renda e garantir direitos sociais. Eu não considero que o planejamento deva ser abolido nos países socialistas (falo do planejamento estratégico, em termos econômicos, e democráticos, em termos políticos) e, embora defenda a manutenção da propriedade coletiva dos meios de produção essenciais, não se pode imaginar que é possível desenvolver as forças produtivas nesses países todos sem deixar a pequena e média propriedades, além da prestação de serviços, não mão de particulares, ou seja, sem a existência da propriedade privada dos meios de produção e de bens. Essa é uma das lições dos setenta anos de socialismo. É evidente que o agravante é a ausência de pluralismo e de liberdade nessas sociedades. Porque à medida que o socialismo cria uma série de desigualdades, por causa da burocracia, instituições como partido único e imprensa estatal constituem uma bomba de efeito retardado. Não adianta: o pluralismo é inevitável assim como a luta social, a luta sindical, a luta partidária. É preciso existir uma imprensa que não seja controlada pelo Estado. O grande desafio é fazer isso sem que a imprensa vire monopólio do poder econômico, sem que o partido político seja subjugado pelos pequenos grupos corporativos ou econômicos; fazer um Estado democrático sem que renasçam nos países formas de controle de meios de produção e de controle da economia que reinstaurem o capitalismo e restaurem aquilo que chamamos de a "ditadura da burguesia" na democracia representativa parlamentar. Essa ditadura só foi perdendo força no mundo capitalista à medida que os trabalhadores, ao conquistarem a democracia, foram conquistando direitos sociais e se tornando classe dirigente, ainda que não classe dominante: ou governando, ou tendo participação no parlamento, ou democratizando a informação.
Você falou que para desenvolver as forças produtivas é essencial se manter certo nível de propriedade privada. Seria uma coisa parecida com o que aconteceu na NEP (a Nova Política Econômica, proposta por Lenin), no começo da década de 20?
Não. É uma questão mais ou menos estratégica. A NEP era uma recuo tático. Eu prefiro ser pragmático sobre isso. Cada unidade de produção que deixa de funcionar, da pequena e da média propriedade, seja agrícola, seja industrial ou de prestação de serviços, deve ser substituída por uma organização socialista de produção, com o objetivo de aumentar a produtividade. Não é verdade que a pequena propriedade seja mais produtiva e mais rentável do que a da rede McDonald's. Mas é preciso deixar a pequena propriedade se organizar. Eu concebo a unidade de produção capitalista, a pequena e a média, como uma possibilidade de se liberar a criatividade, a capacidade, a organização da mão-de-obra, de capitais, de administração ou de recursos humanos, por milhares de pequenos, micros e médios empresários. Primeiro, porque a economia socialista não é capaz de organizá-los. Segundo, porque, no nível de desenvolvimento, das forças produtivas, isso é uma necessidade para o desenvolvimento, tanto da capacidade de produção de bens materiais quanto de gerência e administração. Alguém pode argumentar: "Mas é o pequeno empresário quem mais explora a mão-de-obra trabalhadora!". Eu respondo: "Mais explora a mão-de-obra trabalhadora na atual distribuição de riqueza e da renda nacional, em que todo o sistema de subsídios e de incentivos só favorece as grandes corporações e os grandes monopólios". Se você pensar numa economia democrática e numa sociedade em que o Estado tenha outro papel de planejamento e distribuição de renda, uma sociedade socialista, vai ver que a propriedade pequena terá outro papel. Não acredito que nos próximos cinqüenta anos alguma sociedade possa saltar para o futuro sem combinar a propriedade coletiva com a pequena e média propriedades privadas.
Didaticamente, o conceito de forças produtivas pode ser traduzido como sendo a técnica, a ciência e o homem. E, nesse sentido, seria possível estabelecer um tipo de comparação entre o socialismo real e o capitalismo e deduzir que o capitalismo talvez tenha sido mais bem sucedido no desenvolvimento das forças produtivas do que o socialismo. Isso precisa ser um pouco relativizado, claro. Por exemplo, quanto ao desenvolvimento do homem, o capitalismo jogou mais gente para morrer de fome, mais gente na miséria, destruiu a natureza num nível muito mais elevado. Mas, por outro lado, as grandes descobertas da técnica e da ciência, por mais que a União Soviética tenha se esforçado até estrategicamente nesse sentido, acontecem mais do lado do capitalismo. E aí?
Isso é uma verdadeira aberração, porque a revolução política socialista faz parte de um processo social que visa desenvolver as forças produtivas, de maneira organizada e democrática. Não aconteceu nem o desenvolvimento organizado nem democrático. Agora, na luta política e ideológica foram introduzidos elementos totalmente falsos sobre a "derrocada" do socialismo e a "vitória" do capitalismo. Por exemplo, a Europa ocidental é, na verdade, produto de duas guerras mundiais e de, praticamente, quinze anos de nazifascismo. Acredito que não proceda essa comparação sobre quem é que desenvolveu mais a liberdade, quem desenvolveu mais o homem. É verdade que o sistema capitalista nos países industrializados, no Japão, nos Estados Unidos e na Europa ocidental, particularmente, desenvolveu a ciência e a técnica a um ponto sem paralelos nos países socialistas. Mas estes, em contrapartida, resolveram os problemas da miséria, da fome, da prostituição, da delinqüência, ainda que tudo isso tenha aumentado nos últimos anos. E quanto à liberdade que se diz existir nos países capitalistas, ela é, antes de tudo, resultado da luta dos trabalhadores, da luta dos socialistas, dos choques pela distribuição da renda, da quebra do monopólio absoluto que a burguesia tinha sobre os sufrágios, sobre os meios de comunicação, sobre o aparelho de Estado. E essa liberdade é mais um mito: a invasão do Panamá pelos Estados Unidos, revela a verdadeira face da chamada democracia ocidental.
Em sua opinião, é possível afirmar que as degenerações do socialismo teriam seu enraizamento na inexistência de uma Teoria Geral do Estado Socialista? Em virtude dessa notável ausência, o Estado não teria se convertido na extensão e, dialeticamente, na armadura do partido, no partido do centralismo democrático burocratizado? Com isso a férrea disciplina partidária não teria se transfigurado numa monstruosa "disciplina estatal", obrigando pessoas comuns a se comportarem como um unívoco Estado militante? Por mais "não materialista" que isso possa parecer, a ausência de uma Teoria Geral do Estado não estaria na gênese da crise do socialismo?
Sem dúvida, a inexistência da Teoria Geral do Estado Socialista tem um peso fundamental no fracasso das experiências socialistas. Falta a concepção de Estado democrático, a concepção de Estado que tenha absoluta obediência à lei, à legalidade. O problema real é que ao não se elaborar uma teoria democrática e ao não se conceber o exercício do poder através de mecanismos de consulta e de representação, ao não se conceber a sociedade como uma sociedade diferente, plural, foi-se paulatinamente substituindo a legitimidade do poder exercido pelos trabalhadores e do poder representativo do partido ou dos partidos pelo recurso da força bruta. Ora, nem a revolução burguesa nem a revolução socialista sobrevivem sem criar mecanismos democráticos. Caso contrário, a revolução será suplantada por outras revoluções, talvez mais violentas. É uma ilusão pensar que se pode exercer impunemente o poder, sem democracia e sem atender às expectativas das utopias da maioria da sociedade. As sociedades lutam por liberdade e igualdade, seja no capitalismo, seja no socialismo. E aqueles que se dizem socialistas ou marxistas e que, chegando ao poder, desconhecem que a luta de classes, a desigualdade, o pluralismo cultural, social, ético, religioso, continuam existindo acabam fracassando. Temos de admitir que é real a explicação histórica segundo a qual o socialismo fracassou porque as sociedades que chegaram a ele não se desenvolveram democraticamente, porque não havia uma sociedade civil estabelecida e atuante. Mas isso não explica tudo. A que o stalinismo, a burocracia, a ausência de um movimento social, cultural, socialista e a base material não vão explicar o que aconteceu nesses países. É preciso analisar esses fatores em conjunto, mas o importante é ter a convicção de que não é esse socialismo real que pode levar a humanidade a um futuro de liberdade e de igualdade. Quero dizer, pensar que pela coerção se pode organizar e enquadrar uma sociedade, fazer desenvolver as forças produtivas, e que isso é o socialismo, acho uma aberração. Isso significa que os socialistas vão ter que conceber uma sociedade em que eles podem perder o governo.
Como é uma sociedade socialista em que os trabalhadores possam perder o poder? Quer dizer que a concepção leninista da ditadura do proletariado estaria ultrapassada?
Acredito que a concepção leninista da ditadura do proletariado, não como ela foi concebida, mas como foi realizada na prática, está ultrapassada. Ela impôs uma imprensa estatal, ausência de oposição, partido único e uma planificação da economia. Acho que os setenta anos de socialismo julgaram e reprovaram. A sociedade tem que se desenvolver democraticamente. Mas o capitalismo também não resolveu isso. Hoje, a democracia da sociedade capitalista é a seguinte: existe democracia desde que você não queira votar pela maioria. Desde que não queira tirar da classe dominante o poder que ela tem como dirigente e os instrumentos que tem para administrar a riqueza social em seu benefício. Como seria na sociedade socialista? É ainda um desafio. O que sei é que é uma ficção que os trabalhadores deleguem a um partido único o poder na sociedade socialista. Até porque não existe um só partido de trabalhadores. A experiência histórica de partido único mostrou que não é verdade que esse partido seja único.
Então você está negando mesmo a teoria leninista?
Estou dizendo que no socialismo devem existir vários partidos.
Pois então.
Estou negando a teoria leninista de partido único, mas não nego a teoria leninista, a concepção que ela tinha do Estado. O que é preciso para superar a teoria leninista de Estado? Ter um Estado democrático. É a única maneira. Agora, ter um Estado democrático pressupõe que a burguesia vai aceitar pacificamente a derrota democrática e o início de um processo de construção de uma economia que não é capitalista, coisa que a história tem mostrado que ela não aceita. Então, o que se coloca para os revolucionários e para os socialistas? Como eles constroem uma estratégia de tomada de poder que não os leve à ditadura, ao terror? Essa é a questão que precisa ser resolvida nos partidos socialistas. É possível que uma transição ao socialismo faça combinar, em algum momento, a política e a guerra, como tem acontecido na solução dos grandes problemas da humanidade. O essencial, nesses casos, é evitar que aquilo que é excepcional, aquilo que é uma necessidade extrema, possa se transformar em política de Estado ou em lei. A oposição tem direito de existir. A oposição tem que exercer todos os direitos individuais e coletivos, que devem estar na constituição. E a ela deve ser garantida até mesmo a liberdade de pregar a volta ao capitalismo. Precisamos, portanto, pensar uma Teoria Geral do Estado Socialista para garantir os espaços e canais democráticos. Nas relações de poder, por exemplo. É um erro descartar a democracia representativa. Está provado que a diferenciação cultural da população, principalmente dentro da classe trabalhadora, faz com que grande parte das pessoas não consiga exercer o poder através da democracia direta, através de plebiscito e do referendo, e que a democracia representativa é uma necessidade. É um erro dos socialistas deixar de lado um instrumento fundamental para a legitimidade e para o consenso: o voto numa delegação, numa representação. A burguesia desenvolveu historicamente uma forma de organização do Estado, a divisão em três poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Assim, o Parlamento controla o Executivo, e o Judiciário subordina todos à legalidade. Há a garantia dos direitos individuais e coletivos, que são totalmente violados pela burguesia quando o seu poder está em jogo. Viola os direitos que ela mesma concebeu. Seja pela desigualdade social, pela miséria, pela ignorância, pelo analfabetismo. Mas isso não quer dizer que, em tese, não seja uma forma democrática de exercer o governo. Então, acredito que devemos resgatar a representação parlamentar como forma de organizar o poder, desde que democratizemos os meios de comunicação e o poder militar. Não dá para imaginar uma sociedade socialista e democrática sem que os sindicatos, as associações, as entidades da sociedade civil, não só os partidos participem das decisões do governo. O desenvolvimento de um a sociedade socialista pressupõe negociação. Tem que haver diferenciação e pluralismo. Não quer dizer que o Estado vá agir sempre por consenso. Mas os mecanismos democráticos garantem ao Estado a legitimidade para as ocasiões em que seja necessário o emprego da força para exercer a coerção. Porque senão não existiria sistema penitenciário, sistema penal. Quer dizer, a sociedade delega uma parte do poder a uma autoridade. O problema é que essa autoridade, no caso do Estado, também está dentro da legalidade. Mas, geralmente, tanto no capitalismo quanto no caso do socialismo, essa autoridade fica acima da lei e da legalidade. Não é um privilégio socialista isso. O capitalismo agora quer posar de pai da liberdade e da igualdade, principalmente as grande empresas capitalistas aproveitando-se da derrocada da forma de governo que está havendo na Hungria, na Polônia, na Tchecoslováquia, e pela evidente demonstração que o povo está tomando o poder nesses países. Mas quando o povo toma o poder nos países capitalistas, eles chamam o Exército e promovem verdadeiros massacres, como fizeram já em vários países da América Latina.
Você acredita na possibilidade de que alguns desses países retornem ao capitalismo?
Veja as principais declarações e as principais exigências dos grupos econômicos e dos governos dos Estado Unidos e da Alemanha para investirem na Polônia: mão-de-obra barata, isenção de impostos, não-interferência do Estado e a chamada liberdade de mercado. Ora, quando você pede mão-de-obra barata na Polônia, quando pede que o Estado dê subsídios, que crie condições para os investimentos estrangeiros, acredito que é uma utopia, porque acho que a classe trabalhadora não vai aceitar jamais esse tipo de relação capitalista clássica.
As pessoas cultivam uma espécie de preconceito contra as liberdades civis, as quais você acabou de defender até no nível do direito de propriedade dentro do socialismo, e, por outro lado, privilegiam ou superestimam as liberdades políticas que acabam se dissolvendo sem as liberdades civis. Pois que direito de propriedade pode haver, que democracia pode existir onde a grande maioria da população sofre privações bárbaras? Eu não sei qual a sua opinião sobre isso: há liberdades políticas sem liberdades civis?
Acho que não há. Existe uma questão de fundo que nós temos que incorporar na nossa cultura: problema de legalidade. Os países socialistas fizeram esse discurso da legalidade socialista durante décadas, mas nunca a respeitaram. Não se pode transigir nessa matéria. Nada pode ser feito à margem da lei: não pode existir na sociedade nenhum organismo, nenhum partido, nenhuma instância que esteja acima da lei. Isso precisa ser transparente e público.
Haveria os famosos processos de Moscou se fosse seguido o princípio da legalidade?
Não.
Mas você não estaria sendo um tanto jurista demais e marxista de menos?
Não. Admitir que alguma formação política ou social de um país pode estar acima da lei é abrir caminho para a tirania e para a ditadura. Acho que não há meio-termo. Agora, é evidente: como se faz a lei? Como se faz a Constituição? Devemos reconhecer que nem sempre a lei e a legalidade são legítimas. Mas aí temos de criar mecanismos políticos e democráticos para que se mudem a lei e a Constituição.
Creio que seria oportuno neste momento aproveitar essa entrevista e a sua pessoa, que conhece profundamente o regime cubano, para colocar uma pergunta que até agora ainda não foi encarada durante este debate sobre socialismo real promovido por nossa revista: existe uma ditadura em Cuba, pelo menos em termos formais. Como você enfrenta essa discussão?
Tenho muita dificuldade de falar sobre Cuba por causa da minha relação afetiva, cultural e, de vida, com o país, com o seu povo e com os dirigentes do partido e da Revolução. Vivi em Cuba um bom período. Em Cuba houve um processo de constitucionalização do país em 1976, que foi democrático. Isso dentro dos marcos da concepção da ditadura da maioria, concepção leninista do Estado. Houve um debate amplo na sociedade, que optou por uma nova série de regras, depois por um sistema eleitoral que foi experimentado na província de Matanzas: o sistema de poder popular. Mas a imprensa em Cuba está controlada pelo partido e pelo Estado. Acho que isso não contribui para o seu desenvolvimento democrático, pelo contrário. Vai congelando as formas de exercício da democracia que Cuba teve até espontaneamente por causa da Revolução.
Pois é, o calor da Revolução vai arrefecendo.
Concordo. Agora, tem havido mudanças. Tem havido uma liberação da imprensa.
Mas que não incluem as publicações da perestroika, que estão sendo censuradas.
Com a perestroika, houve um retrocesso com a proibição das notícias de Moscou. Acredito que mais cedo ou mais tarde a estrutura do partido em Cuba vai acabar também sendo colocada em questão. Ela tem mais vigor que nos outros países, na medida em que mais de um milhão de cubanos saíram de Cuba. E grande parte da população trabalhadora foi educada e organizada nas entidades, na Federação de Mulheres, nos sindicatos, na União da Juventude Comunista, na Federação de Estudantes do Ensino Médio, nas federações esportivas universitárias. Essa combinação de entidades sociais, de massa, com o Partido Comunista e com o poder local determinou, ao lado do papel que Fidel joga e da popularidade que tem, a legitimidade da política cubana até hoje. Mas não acredito que isso resista. Por quê? Porque vai haver uma grave crise econômica em Cuba. Porque Cuba foi agora, praticamente, abandonada pelos países socialistas.
Andam dizendo até que, com a morte de Fidel, Cuba se voltaria ao seu destino histórico de ser, uma eterna "república de bananas".
Não, eu não acredito. Acho que há em Cuba relações políticas, culturais... Há instituições, uma Constituição e uma legitimidade ainda do partido e do governo, que não existiam nos países socialistas. E, em Cuba, nos últimos anos, todos esses problemas que estão na base da derrocada dos países da Europa oriental foram combatidos. Quer dizer, em Cuba há uma luta muito grande contra a corrupção, contra a burocracia, contra os privilégios. Existe esse problema de como exercer o poder do socialismo em Cuba tanto pelo partido único quanto pelo controle da imprensa. Acredito, inclusive, que maiores relações comerciais e culturais com o mundo acabariam produzindo mudanças internas em Cuba. Apesar desses problemas, devo dizer que a Revolução cubana tem primado pela luta para que não seja rompida a legalidade socialista.
Mas nesse ponto de vista a coisa lá está meio complicada, não é?
Bem, há uma quebra muito grande daquilo que se chama nos países socialistas de disciplina social. Bem como da estrutura burocrático-administrativa dos altos escalões, por causa da corrupção.
Que existe.
Por causa da insatisfação. Não existe em Cuba propriamente uma insatisfação social mas uma frustração social. Essa frustração vem da incapacidade da estrutura econômica cubana de se modernizar e dar um salto tecnológico. Agora, é bem verdade que, ao se comparar Cuba com os países da África e da América Latina - por mais que isso possa parecer uma blasfêmia no Brasil -, Cuba é um paraíso. Comparada com a situação da Guatemala, de Honduras, da Bolívia, do Peru, de vários países da África, domínios econômicos e culturais da França, da Inglaterra, dos Esta dos Unidos, Cuba é um país que tem liberdade e direitos sociais com que esses países jamais sonharam. Agora, se formos conceber a sociedade socialista como temos defendido no PT, considero que não podemos, de maneira nenhuma, concebê-la como acabou se cristalizando em Cuba, como forma de governo e de democracia. Qual vai ser a saída para Cuba? A "retificação" que os cubanos iniciaram alguns anos atrás, como caminho para democratizar o socialismo e combater as deformações da democracia, do centralismo burocrático. Não está claro se isto vai ser capaz de jogar Cuba para a frente. Do ponto de vista internacional e cultural, Cuba se isolou muito. A perestroika soviética é vista em todo o mundo como um avanço político, cultural e social. O mesmo se pode dizer do que está acontecendo na Polônia e na RDA ou mesmo na Hungria. Na Hungria não houve nenhuma crise grave porque o Partido Comunista se transformou em social-democrata, por isso não houve nenhum levante popular. Agora, para esses países, uma integração na Europa ocidental seria uma volta ao capitalismo? Essa é uma questão histórica que vamos ter que analisar daqui a cinco, dez ou quinze anos. Acho que não vai acontecer necessariamente um retrocesso para o capitalismo. Acho que vão acabar buscando formas lícitas e novas de exercer o poder político e organizar a economia, inclusive porque a unificação da Europa acaba sendo uma imposição cultural e estratégica, que contraria os Estados Unidos e sua lógica imperialista. Olho tudo isso com alegria. Mas, por outro lado, olho com temor, porque espero que uma Europa forte, unificada o pacífica não queira manter o seu nível de vida e o seu padrão cultural às custas da América Latina, da África e da Ásia. Que se supere também o neocolonialismo. Que se supere não só o autoritarismo, não só o socialismo burocrático.
Espero que se supere também o capitalismo hegemonista, explorador do Terceiro Mundo; o capitalismo racista; o excludente, que não existe só no Brasil, mas na Europa também, nos Estados Unidos e no Japão. Não é verdade que o capitalismo, quero repetir, seja o sistema ideal para a humanidade. Essa tese não está comprovada historicamente. É verdade que não ficou provado historicamente que o socialismo é superior ao capitalismo. Mas acredito que o socialismo seja, do ponto de vista econômico e da liberdade, superior ao capitalismo. Temos o desafio histórico, num país como o Brasil - que tem as melhores condições objetivas e políticas -, de demonstrar isso. E o PT desempenha um papel determinante nisso, tanto do ponto de vista de concepção teórica quanto do da prática política, que, aliás, é o seu ponto forte.
José Dirceu de Oliveira e Silva é deputado estadual em São Paulo e secretário Geral do Diretório Nacional do PT.