EM DEBATE

Continuando a discussão iniciada no número anterior de Teoria & Debate publicamos aqui mais três pontos de vista sobre a virada histórica que sacode o planeta e muda todas as perspectivas do socialismo.

Para José Dirceu de Oliveira e Silva, a sociedade socialista deve ser democrática a ponto de os trabalhadores e seus partidos estarem sujeitos a perder o governo dentro da legalidade.

Ozeas Duarte acredita na superação da livre iniciativa, de um lado, e do estatismo, de outro, para uma sociedade socialista renovada.

O terceiro artigo é de Augusto de Franco, que aposta na autocrítica radical: "Há muito o que fazer".

O Pluralismo Inevitável- Entrevista com José Dirceu

Nem burguesia nem estatismo

Muito o que (des)fazer

O Pluralismo Inevitável- Entrevista com José Dirceu

 

 

A que se deve o abandono do termo comunista por inúmeros partidos historicamente ligados à III Internacional? O termo comunismo estará assim tão "sujo" aos olhos da humanidade, como estava em 1917 o termo social-democracia, que Lenin resolveu deixar de lado quando morreu com os partidos social-democratas e fundou os partidos comunistas? Ou será que o socialismo se rendeu aos valores do capitalismo?

Acredito que está havendo uma virada histórica; creio que se pode usar o exemplo do abandono do nome social-democracia. O socialismo foi implantado, concebido e organizado pelos partidos, comunistas nos países onde se fez a revolução, como no caso da Rússia, a China, da Coréia, de Cuba ou nos países da Europa oriental, onde não se deu o processo revolucionário clássico. Em todos estes, à exceção da Iugoslávia, não houve propriamente a tomada do poder através de uma reviravolta interna, mas o que ocorreu foi a mudança de sistema através da libertação contra o nazi-fascismo pelo Exército Vermelho. Na minha opinião, o papel dos partidos comunistas na construção do socialismo esgotou essa visão de projetar como deve ser o socialismo, de preconceber a sociedade - uma visão que não tem perspectivas no próximo século. É preciso repensar essas sociedades, repensar o socialismo, repensar a teoria. Particularmente a teoria do Estado. Os marxistas no poder deixam de ser marxistas. Deixam de analisar a sociedade que dirigem a partir de critérios científicos e históricos, desconhecem a formação cultural e econômica de seus países, as lutas sociais, as diferenças culturais. Desconhecem, enfim, a realidade, o que é a elevação ao absurdo da negação do marxismo. Enfim, o abandono do termo comunista corresponde à derrota de uma forma - e de uma concepção - de socialismo.

Pois, então, no socialismo real o que deve ser desfeito? O planejamento da economia? Enfim, essa tutela da sociedade civil, se é que existe alguma sociedade civil?

O fundamental é a forma de organizar o Estado e a produção, a economia. O primeiro obstáculo que precisa ser desfeito são os entraves, os estrangulamentos e as barreiras que impedem o crescimento econômico, ou seja, o aumento da criação de riquezas e a sua distribuição entre os produtores. Todos os países socialistas, sem exceção, vivem uma crise gravíssima de perspectiva em termos de desenvolvimento tecnológico, de desenvolvimento científico e, particularmente, de desenvolvimento da produção de bens de consumo, de alimentos e da prestação de serviços. As economias socialistas privilegiaram a indústria pesada e a prestação de serviços básicos: saúde, educação, transporte. E a sociedade capitalista desenvolveu, mantendo grande parte da população e da humanidade na miséria, um amplo setor de serviços, de diversão, de lazer e também uma ampla indústria de bens de consumo pessoal. Modernizou a vida, tanto a familiar quanto a pessoal, de uma parcela da população. Como os países capitalistas mais desenvolvidos já tinham acumulado grande estoque de riqueza, principalmente os Estados Unidos, a Europa e o Japão, eles elevaram o padrão de vida de suas populações - o que também se deve à luta democrática dos trabalhadores, que conseguiram distribuir renda e garantir direitos sociais. Eu não considero que o planejamento deva ser abolido nos países socialistas (falo do planejamento estratégico, em termos econômicos, e democráticos, em termos políticos) e, embora defenda a manutenção da propriedade coletiva dos meios de produção essenciais, não se pode imaginar que é possível desenvolver as forças produtivas nesses países todos sem deixar a pequena e média propriedades, além da prestação de serviços, não mão de particulares, ou seja, sem a existência da propriedade privada dos meios de produção e de bens. Essa é uma das lições dos setenta anos de socialismo. É evidente que o agravante é a ausência de pluralismo e de liberdade nessas sociedades. Porque à medida que o socialismo cria uma série de desigualdades, por causa da burocracia, instituições como partido único e imprensa estatal constituem uma bomba de efeito retardado. Não adianta: o pluralismo é inevitável assim como a luta social, a luta sindical, a luta partidária. É preciso existir uma imprensa que não seja controlada pelo Estado. O grande desafio é fazer isso sem que a imprensa vire monopólio do poder econômico, sem que o partido político seja subjugado pelos pequenos grupos corporativos ou econômicos; fazer um Estado democrático sem que renasçam nos países formas de controle de meios de produção e de controle da economia que reinstaurem o capitalismo e restaurem aquilo que chamamos de a "ditadura da burguesia" na democracia representativa parlamentar. Essa ditadura só foi perdendo força no mundo capitalista à medida que os trabalhadores, ao conquistarem a democracia, foram conquistando direitos sociais e se tornando classe dirigente, ainda que não classe dominante: ou governando, ou tendo participação no parlamento, ou democratizando a informação.

Você falou que para desenvolver as forças produtivas é essencial se manter certo nível de propriedade privada. Seria uma coisa parecida com o que aconteceu na NEP (a Nova Política Econômica, proposta por Lenin), no começo da década de 20?

Não. É uma questão mais ou menos estratégica. A NEP era uma recuo tático. Eu prefiro ser pragmático sobre isso. Cada unidade de produção que deixa de funcionar, da pequena e da média propriedade, seja agrícola, seja industrial ou de prestação de serviços, deve ser substituída por uma organização socialista de produção, com o objetivo de aumentar a produtividade. Não é verdade que a pequena propriedade seja mais produtiva e mais rentável do que a da rede McDonald's. Mas é preciso deixar a pequena propriedade se organizar. Eu concebo a unidade de produção capitalista, a pequena e a média, como uma possibilidade de se liberar a criatividade, a capacidade, a organização da mão-de-obra, de capitais, de administração ou de recursos humanos, por milhares de pequenos, micros e médios empresários. Primeiro, porque a economia socialista não é capaz de organizá-los. Segundo, porque, no nível de desenvolvimento, das forças produtivas, isso é uma necessidade para o desenvolvimento, tanto da capacidade de produção de bens materiais quanto de gerência e administração. Alguém pode argumentar: "Mas é o pequeno empresário quem mais explora a mão-de-obra trabalhadora!". Eu respondo: "Mais explora a mão-de-obra trabalhadora na atual distribuição de riqueza e da renda nacional, em que todo o sistema de subsídios e de incentivos só favorece as grandes corporações e os grandes monopólios". Se você pensar numa economia democrática e numa sociedade em que o Estado tenha outro papel de planejamento e distribuição de renda, uma sociedade socialista, vai ver que a propriedade pequena terá outro papel. Não acredito que nos próximos cinqüenta anos alguma sociedade possa saltar para o futuro sem combinar a propriedade coletiva com a pequena e média propriedades privadas.

Didaticamente, o conceito de forças produtivas pode ser traduzido como sendo a técnica, a ciência e o homem. E, nesse sentido, seria possível estabelecer um tipo de comparação entre o socialismo real e o capitalismo e deduzir que o capitalismo talvez tenha sido mais bem sucedido no desenvolvimento das forças produtivas do que o socialismo. Isso precisa ser um pouco relativizado, claro. Por exemplo, quanto ao desenvolvimento do homem, o capitalismo jogou mais gente para morrer de fome, mais gente na miséria, destruiu a natureza num nível muito mais elevado. Mas, por outro lado, as grandes descobertas da técnica e da ciência, por mais que a União Soviética tenha se esforçado até estrategicamente nesse sentido, acontecem mais do lado do capitalismo. E aí?

Isso é uma verdadeira aberração, porque a revolução política socialista faz parte de um processo social que visa desenvolver as forças produtivas, de maneira organizada e democrática. Não aconteceu nem o desenvolvimento organizado nem democrático. Agora, na luta política e ideológica foram introduzidos elementos totalmente falsos sobre a "derrocada" do socialismo e a "vitória" do capitalismo. Por exemplo, a Europa ocidental é, na verdade, produto de duas guerras mundiais e de, praticamente, quinze anos de nazifascismo. Acredito que não proceda essa comparação sobre quem é que desenvolveu mais a liberdade, quem desenvolveu mais o homem. É verdade que o sistema capitalista nos países industrializados, no Japão, nos Estados Unidos e na Europa ocidental, particularmente, desenvolveu a ciência e a técnica a um ponto sem paralelos nos países socialistas. Mas estes, em contrapartida, resolveram os problemas da miséria, da fome, da prostituição, da delinqüência, ainda que tudo isso tenha aumentado nos últimos anos. E quanto à liberdade que se diz existir nos países capitalistas, ela é, antes de tudo, resultado da luta dos trabalhadores, da luta dos socialistas, dos choques pela distribuição da renda, da quebra do monopólio absoluto que a burguesia tinha sobre os sufrágios, sobre os meios de comunicação, sobre o aparelho de Estado. E essa liberdade é mais um mito: a invasão do Panamá pelos Estados Unidos, revela a verdadeira face da chamada democracia ocidental.

Em sua opinião, é possível afirmar que as degenerações do socialismo teriam seu enraizamento na inexistência de uma Teoria Geral do Estado Socialista? Em virtude dessa notável ausência, o Estado não teria se convertido na extensão e, dialeticamente, na armadura do partido, no partido do centralismo democrático burocratizado? Com isso a férrea disciplina partidária não teria se transfigurado numa monstruosa "disciplina estatal", obrigando pessoas comuns a se comportarem como um unívoco Estado militante? Por mais "não materialista" que isso possa parecer, a ausência de uma Teoria Geral do Estado não estaria na gênese da crise do socialismo?

Sem dúvida, a inexistência da Teoria Geral do Estado Socialista tem um peso fundamental no fracasso das experiências socialistas. Falta a concepção de Estado democrático, a concepção de Estado que tenha absoluta obediência à lei, à legalidade. O problema real é que ao não se elaborar uma teoria democrática e ao não se conceber o exercício do poder através de mecanismos de consulta e de representação, ao não se conceber a sociedade como uma sociedade diferente, plural, foi-se paulatinamente substituindo a legitimidade do poder exercido pelos trabalhadores e do poder representativo do partido ou dos partidos pelo recurso da força bruta. Ora, nem a revolução burguesa nem a revolução socialista sobrevivem sem criar mecanismos democráticos. Caso contrário, a revolução será suplantada por outras revoluções, talvez mais violentas. É uma ilusão pensar que se pode exercer impunemente o poder, sem democracia e sem atender às expectativas das utopias da maioria da sociedade. As sociedades lutam por liberdade e igualdade, seja no capitalismo, seja no socialismo. E aqueles que se dizem socialistas ou marxistas e que, chegando ao poder, desconhecem que a luta de classes, a desigualdade, o pluralismo cultural, social, ético, religioso, continuam existindo acabam fracassando. Temos de admitir que é real a explicação histórica segundo a qual o socialismo fracassou porque as sociedades que chegaram a ele não se desenvolveram democraticamente, porque não havia uma sociedade civil estabelecida e atuante. Mas isso não explica tudo. A que o stalinismo, a burocracia, a ausência de um movimento social, cultural, socialista e a base material não vão explicar o que aconteceu nesses países. É preciso analisar esses fatores em conjunto, mas o importante é ter a convicção de que não é esse socialismo real que pode levar a humanidade a um futuro de liberdade e de igualdade. Quero dizer, pensar que pela coerção se pode organizar e enquadrar uma sociedade, fazer desenvolver as forças produtivas, e que isso é o socialismo, acho uma aberração. Isso significa que os socialistas vão ter que conceber uma sociedade em que eles podem perder o governo.

Como é uma sociedade socialista em que os trabalhadores possam perder o poder? Quer dizer que a concepção leninista da ditadura do proletariado estaria ultrapassada?

Acredito que a concepção leninista da ditadura do proletariado, não como ela foi concebida, mas como foi realizada na prática, está ultrapassada. Ela impôs uma imprensa estatal, ausência de oposição, partido único e uma planificação da economia. Acho que os setenta anos de socialismo julgaram e reprovaram. A sociedade tem que se desenvolver democraticamente. Mas o capitalismo também não resolveu isso. Hoje, a democracia da sociedade capitalista é a seguinte: existe democracia desde que você não queira votar pela maioria. Desde que não queira tirar da classe dominante o poder que ela tem como dirigente e os instrumentos que tem para administrar a riqueza social em seu benefício. Como seria na sociedade socialista? É ainda um desafio. O que sei é que é uma ficção que os trabalhadores deleguem a um partido único o poder na sociedade socialista. Até porque não existe um só partido de trabalhadores. A experiência histórica de partido único mostrou que não é verdade que esse partido seja único.

Então você está negando mesmo a teoria leninista?

Estou dizendo que no socialismo devem existir vários partidos.

Pois então.

Estou negando a teoria leninista de partido único, mas não nego a teoria leninista, a concepção que ela tinha do Estado. O que é preciso para superar a teoria leninista de Estado? Ter um Estado democrático. É a única maneira. Agora, ter um Estado democrático pressupõe que a burguesia vai aceitar pacificamente a derrota democrática e o início de um processo de construção de uma economia que não é capitalista, coisa que a história tem mostrado que ela não aceita. Então, o que se coloca para os revolucionários e para os socialistas? Como eles constroem uma estratégia de tomada de poder que não os leve à ditadura, ao terror? Essa é a questão que precisa ser resolvida nos partidos socialistas. É possível que uma transição ao socialismo faça combinar, em algum momento, a política e a guerra, como tem acontecido na solução dos grandes problemas da humanidade. O essencial, nesses casos, é evitar que aquilo que é excepcional, aquilo que é uma necessidade extrema, possa se transformar em política de Estado ou em lei. A oposição tem direito de existir. A oposição tem que exercer todos os direitos individuais e coletivos, que devem estar na constituição. E a ela deve ser garantida até mesmo a liberdade de pregar a volta ao capitalismo. Precisamos, portanto, pensar uma Teoria Geral do Estado Socialista para garantir os espaços e canais democráticos. Nas relações de poder, por exemplo. É um erro descartar a democracia representativa. Está provado que a diferenciação cultural da população, principalmente dentro da classe trabalhadora, faz com que grande parte das pessoas não consiga exercer o poder através da democracia direta, através de plebiscito e do referendo, e que a democracia representativa é uma necessidade. É um erro dos socialistas deixar de lado um instrumento fundamental para a legitimidade e para o consenso: o voto numa delegação, numa representação. A burguesia desenvolveu historicamente uma forma de organização do Estado, a divisão em três poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Assim, o Parlamento controla o Executivo, e o Judiciário subordina todos à legalidade. Há a garantia dos direitos individuais e coletivos, que são totalmente violados pela burguesia quando o seu poder está em jogo. Viola os direitos que ela mesma concebeu. Seja pela desigualdade social, pela miséria, pela ignorância, pelo analfabetismo. Mas isso não quer dizer que, em tese, não seja uma forma democrática de exercer o governo. Então, acredito que devemos resgatar a representação parlamentar como forma de organizar o poder, desde que democratizemos os meios de comunicação e o poder militar. Não dá para imaginar uma sociedade socialista e democrática sem que os sindicatos, as associações, as entidades da sociedade civil, não só os partidos participem das decisões do governo. O desenvolvimento de um a sociedade socialista pressupõe negociação. Tem que haver diferenciação e pluralismo. Não quer dizer que o Estado vá agir sempre por consenso. Mas os mecanismos democráticos garantem ao Estado a legitimidade para as ocasiões em que seja necessário o emprego da força para exercer a coerção. Porque senão não existiria sistema penitenciário, sistema penal. Quer dizer, a sociedade delega uma parte do poder a uma autoridade. O problema é que essa autoridade, no caso do Estado, também está dentro da legalidade. Mas, geralmente, tanto no capitalismo quanto no caso do socialismo, essa autoridade fica acima da lei e da legalidade. Não é um privilégio socialista isso. O capitalismo agora quer posar de pai da liberdade e da igualdade, principalmente as grande empresas capitalistas aproveitando-se da derrocada da forma de governo que está havendo na Hungria, na Polônia, na Tchecoslováquia, e pela evidente demonstração que o povo está tomando o poder nesses países. Mas quando o povo toma o poder nos países capitalistas, eles chamam o Exército e promovem verdadeiros massacres, como fizeram já em vários países da América Latina.

Você acredita na possibilidade de que alguns desses países retornem ao capitalismo?

Veja as principais declarações e as principais exigências dos grupos econômicos e dos governos dos Estado Unidos e da Alemanha para investirem na Polônia: mão-de-obra barata, isenção de impostos, não-interferência do Estado e a chamada liberdade de mercado. Ora, quando você pede mão-de-obra barata na Polônia, quando pede que o Estado dê subsídios, que crie condições para os investimentos estrangeiros, acredito que é uma utopia, porque acho que a classe trabalhadora não vai aceitar jamais esse tipo de relação capitalista clássica.

As pessoas cultivam uma espécie de preconceito contra as liberdades civis, as quais você acabou de defender até no nível do direito de propriedade dentro do socialismo, e, por outro lado, privilegiam ou superestimam as liberdades políticas que acabam se dissolvendo sem as liberdades civis. Pois que direito de propriedade pode haver, que democracia pode existir onde a grande maioria da população sofre privações bárbaras? Eu não sei qual a sua opinião sobre isso: há liberdades políticas sem liberdades civis?

Acho que não há. Existe uma questão de fundo que nós temos que incorporar na nossa cultura: problema de legalidade. Os países socialistas fizeram esse discurso da legalidade socialista durante décadas, mas nunca a respeitaram. Não se pode transigir nessa matéria. Nada pode ser feito à margem da lei: não pode existir na sociedade nenhum organismo, nenhum partido, nenhuma instância que esteja acima da lei. Isso precisa ser transparente e público.

Haveria os famosos processos de Moscou se fosse seguido o princípio da legalidade?

Não.

Mas você não estaria sendo um tanto jurista demais e marxista de menos?

Não. Admitir que alguma formação política ou social de um país pode estar acima da lei é abrir caminho para a tirania e para a ditadura. Acho que não há meio-termo. Agora, é evidente: como se faz a lei? Como se faz a Constituição? Devemos reconhecer que nem sempre a lei e a legalidade são legítimas. Mas aí temos de criar mecanismos políticos e democráticos para que se mudem a lei e a Constituição.

Creio que seria oportuno neste momento aproveitar essa entrevista e a sua pessoa, que conhece profundamente o regime cubano, para colocar uma pergunta que até agora ainda não foi encarada durante este debate sobre socialismo real promovido por nossa revista: existe uma ditadura em Cuba, pelo menos em termos formais. Como você enfrenta essa discussão?

Tenho muita dificuldade de falar sobre Cuba por causa da minha relação afetiva, cultural e, de vida, com o país, com o seu povo e com os dirigentes do partido e da Revolução. Vivi em Cuba um bom período. Em Cuba houve um processo de constitucionalização do país em 1976, que foi democrático. Isso dentro dos marcos da concepção da ditadura da maioria, concepção leninista do Estado. Houve um debate amplo na sociedade, que optou por uma nova série de regras, depois por um sistema eleitoral que foi experimentado na província de Matanzas: o sistema de poder popular. Mas a imprensa em Cuba está controlada pelo partido e pelo Estado. Acho que isso não contribui para o seu desenvolvimento democrático, pelo contrário. Vai congelando as formas de exercício da democracia que Cuba teve até espontaneamente por causa da Revolução.

Pois é, o calor da Revolução vai arrefecendo.

Concordo. Agora, tem havido mudanças. Tem havido uma liberação da imprensa.

Mas que não incluem as publicações da perestroika, que estão sendo censuradas.

Com a perestroika, houve um retrocesso com a proibição das notícias de Moscou. Acredito que mais cedo ou mais tarde a estrutura do partido em Cuba vai acabar também sendo colocada em questão. Ela tem mais vigor que nos outros países, na medida em que mais de um milhão de cubanos saíram de Cuba. E grande parte da população trabalhadora foi educada e organizada nas entidades, na Federação de Mulheres, nos sindicatos, na União da Juventude Comunista, na Federação de Estudantes do Ensino Médio, nas federações esportivas universitárias. Essa combinação de entidades sociais, de massa, com o Partido Comunista e com o poder local determinou, ao lado do papel que Fidel joga e da popularidade que tem, a legitimidade da política cubana até hoje. Mas não acredito que isso resista. Por quê? Porque vai haver uma grave crise econômica em Cuba. Porque Cuba foi agora, praticamente, abandonada pelos países socialistas.

Andam dizendo até que, com a morte de Fidel, Cuba se voltaria ao seu destino histórico de ser, uma eterna "república de bananas".

Não, eu não acredito. Acho que há em Cuba relações políticas, culturais... Há instituições, uma Constituição e uma legitimidade ainda do partido e do governo, que não existiam nos países socialistas. E, em Cuba, nos últimos anos, todos esses problemas que estão na base da derrocada dos países da Europa oriental foram combatidos. Quer dizer, em Cuba há uma luta muito grande contra a corrupção, contra a burocracia, contra os privilégios. Existe esse problema de como exercer o poder do socialismo em Cuba tanto pelo partido único quanto pelo controle da imprensa. Acredito, inclusive, que maiores relações comerciais e culturais com o mundo acabariam produzindo mudanças internas em Cuba. Apesar desses problemas, devo dizer que a Revolução cubana tem primado pela luta para que não seja rompida a legalidade socialista.

Mas nesse ponto de vista a coisa lá está meio complicada, não é?

Bem, há uma quebra muito grande daquilo que se chama nos países socialistas de disciplina social. Bem como da estrutura burocrático-administrativa dos altos escalões, por causa da corrupção.

Que existe.

Por causa da insatisfação. Não existe em Cuba propriamente uma insatisfação social mas uma frustração social. Essa frustração vem da incapacidade da estrutura econômica cubana de se modernizar e dar um salto tecnológico. Agora, é bem verdade que, ao se comparar Cuba com os países da África e da América Latina - por mais que isso possa parecer uma blasfêmia no Brasil -, Cuba é um paraíso. Comparada com a situação da Guatemala, de Honduras, da Bolívia, do Peru, de vários países da África, domínios econômicos e culturais da França, da Inglaterra, dos Esta dos Unidos, Cuba é um país que tem liberdade e direitos sociais com que esses países jamais sonharam. Agora, se formos conceber a sociedade socialista como temos defendido no PT, considero que não podemos, de maneira nenhuma, concebê-la como acabou se cristalizando em Cuba, como forma de governo e de democracia. Qual vai ser a saída para Cuba? A "retificação" que os cubanos iniciaram alguns anos atrás, como caminho para democratizar o socialismo e combater as deformações da democracia, do centralismo burocrático. Não está claro se isto vai ser capaz de jogar Cuba para a frente. Do ponto de vista internacional e cultural, Cuba se isolou muito. A perestroika soviética é vista em todo o mundo como um avanço político, cultural e social. O mesmo se pode dizer do que está acontecendo na Polônia e na RDA ou mesmo na Hungria. Na Hungria não houve nenhuma crise grave porque o Partido Comunista se transformou em social-democrata, por isso não houve nenhum levante popular. Agora, para esses países, uma integração na Europa ocidental seria uma volta ao capitalismo? Essa é uma questão histórica que vamos ter que analisar daqui a cinco, dez ou quinze anos. Acho que não vai acontecer necessariamente um retrocesso para o capitalismo. Acho que vão acabar buscando formas lícitas e novas de exercer o poder político e organizar a economia, inclusive porque a unificação da Europa acaba sendo uma imposição cultural e estratégica, que contraria os Estados Unidos e sua lógica imperialista. Olho tudo isso com alegria. Mas, por outro lado, olho com temor, porque espero que uma Europa forte, unificada o pacífica não queira manter o seu nível de vida e o seu padrão cultural às custas da América Latina, da África e da Ásia. Que se supere também o neocolonialismo. Que se supere não só o autoritarismo, não só o socialismo burocrático.

Espero que se supere também o capitalismo hegemonista, explorador do Terceiro Mundo; o capitalismo racista; o excludente, que não existe só no Brasil, mas na Europa também, nos Estados Unidos e no Japão. Não é verdade que o capitalismo, quero repetir, seja o sistema ideal para a humanidade. Essa tese não está comprovada historicamente. É verdade que não ficou provado historicamente que o socialismo é superior ao capitalismo. Mas acredito que o socialismo seja, do ponto de vista econômico e da liberdade, superior ao capitalismo. Temos o desafio histórico, num país como o Brasil - que tem as melhores condições objetivas e políticas -, de demonstrar isso. E o PT desempenha um papel determinante nisso, tanto do ponto de vista de concepção teórica quanto do da prática política, que, aliás, é o seu ponto forte.

José Dirceu de Oliveira e Silva é deputado estadual em São Paulo e secretário Geral do Diretório Nacional do PT.

Nem burguesia nem estatismo

Uma crítica ao "socialismo real" que não se sustente numa crítica ao marxismo ortodoxo será inevitavelmente limitada e insuficiente para efeito de reconstituição do projeto socialista.

As sociedades ditas socialistas são produtos de processos históricos dirigidos por partidos marxistas na perspectiva, conscientemente estabelecida, de transição para o comunismo. Portanto, devem ser encaradas como resultantes de uma filosofia operante, uma filosofia que buscou a realização prática integral de sua finalidade sob a forma de movimento político. A avaliação do papel das circunstâncias históricas sob as quais essa luta se processou deve considerar que o marxismo era e continua sendo parte integrante decisiva de tais circunstâncias.

É claro, sempre se poderá contestar que, em algum momento, o "verdadeiro marxismo" foi substituído pelo "revisionismo", sob a influência de algum dirigente mal-intencionado - seja Stalin, Trotsky, Kruschev etc. Mas este é um recurso inerente ao próprio marxismo ortodoxo, que, ao se reivindicar o "verdadeiro marxismo", resvalou inapelavelmente para a esterilidade dogmática. Hoje, no entanto, a situação é tal que o único atestado de veracidade desse marxismo, através das exclusões sucessivas das supostas revisões, está no fato de jamais se ter realizado com sucesso em algum lugar.

Portanto, ao situar o foco da discussão sobre o "socialismo real" nesse terreno, se exige, simultaneamente, a afirmação peremptória do caráter plural do marxismo. Podemos dizer, com Agnes Heller, (Para Mudar a Vida, Ed. Brasiliense), que "Marx é tão vivo ainda hoje precisamente porque experimentou até o fundo as mais diversas alternativas". Se a corrente de pensamento que ele fundou ainda oferece fecundidade para a apreensão dos problemas modernos, isso resulta da sua pluralidade interna e da sua abertura para discutir os próprios pressupostos. Resulta daí que o primeiro ato que se exige dos marxistas nos dias de hoje é reconhecer que a experiência da luta socialista, com todas as sua tragédias, não é uma experiência alheia mas "nossa", por mais que a rechacemos eticamente, e como tal deve ser examinada.

Pensando autocriticamente, lembro, em primeiro lugar, que, para o Marx d'O Capital e do Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, a história da humanidade não é senão a história do seu transcurso desde o "reino da necessidade" até o "reino da liberdade".

Esse sentido geral não decorre de opções que os seres humanos façam ao arbítrio de suas vontades, mas das determinações de leis sociais que operam objetivamente, isto é, independentemente da consciência dos indivíduos.

O caráter de cada época histórica e do movimento de uma época a outra é dado pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, perante o qual os seres humanos estabelecem relações necessárias entre si, com vistas à produção de sua vida material.

São essas relações objetivas que determinam a consciência dos homens e não o contrário.

De acordo com isso, a caráter necessário da transição ao comunismo se evidenciaria sob o capitalismo, no papel reservado ao proletariado. Este é tomado como a primeira classe na história que, pela sua condição de classe despossuída, só pode realizar seus interesses particulares simultaneamente com os interesses da humanidade.

Ou seja, como a primeira classe realmente universal, cuja natureza lhe confere a missão histórica de promover a transição para o "reino da liberdade". O movimento pelo comunismo se afirmando, portanto, não enquanto resultante de uma opção ética dos indivíduos mas como expressão de uma potência objetiva inerente ao capitalismo. Afinal, a dimensão do indivíduo no marxismo ortodoxo se reduz à dimensão do ser social, da sua classe.

Qual é, então, o significado da noção de praxis revolucionária segundo o marxismo ortodoxo? Seria uma atividade livre e criadora daqueles que optam por um projeto de transformação da sociedade? Não, a praxis, no caso, é mera manifestação das leis sociais enquanto agir humano. Por essa noção - na qual se inspiraram todos os partidos dirigentes de processos de "construção do socialismo" -, o que os revolucionários fazem não é mais do que cumprir um desígnio da história.

Ora, se assim é, de fato não há qualquer lugar para a autonomia dos valores éticos, mesmo porque a revolução não se resolve no nível das opções individuais mas no nível dos "interesses históricos de classe".

Tampouco haverá lugar para a política que ressalte a autonomia dos agentes sociais, o convencimento, a capacidade de hegemonia, a democracia. Não, a atividade própria do marxismo ortodoxo se distingue por ser utilitária, mero agir mecânico, orientada pelo critério único da eficácia. Atividade pela qual o autoritarismo e a burocracia tendem a ser expressões típicas da política.

A transição do capitalismo ao comunismo seria decorrência automática da afirmação do particular universal, o proletariado, através, primeiro, da sua organização em classe dominante, segundo, do esmagamento político-militar da burguesia e, terceiro, do desenvolvimento das forças produtivas socializadas, ou seja, colocadas sob controle estatal. Radicalizar o particularismo proletário, na expectativa de que venha a emergir daí o ser humano genérico, eis aí a razão de ser da ditadura do proletariado - pedra de toque do marxismo ortodoxo, cujo certificado de êxito seria a morte natural do Estado.

Se levarmos em conta que esta foi a concepção efetivamente aplicada na União Soviética e em outros países, teremos compreendido, afinal, o porquê de as coisas terem ocorrido exatamente no sentido oposto, isto é, no de configurar um Estado que se caracteriza pelo gigantismo, pelo corporativismo, pela burocratização e pelo totalitarismo.

Ao fim e ao cabo, o que se leve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante.

Lenin não deixa lugar para dúvida: "A ditadura do proletariado é a dominação do proletariado sobre a burguesia, dominação não limitada pela lei e que se baseia na violência e goza da simpatia e do apoio das massas trabalhadoras e exploradas". Eis ai a evidência do equívoco que se comete quando se pretende que o conceito de ditadura do proletariado se refere estritamente ao conteúdo (de classe) do Estado, sendo, portanto, passível de compatibilização com a democracia. Ao contrário, a literatura e a prática marxistas ortodoxas consagraram esse conceito como significando, mais do quê o conteúdo, uma forma de Estado antidemocrática e, por definição, inconciliável com a noção de estado de direito.

A preocupação com o ordenamento institucional, ali onde a ditadura do proletariado se conformou de maneira mais "pura" se limitou à formalização do corporativismo. A restrição ao direito de voto apenas aos trabalhadores, a fixação da base do poder nas unidades produtivas, a subordinação dos eleitos aos particularismos de cada uma dessas unidades através do mandato imperativo, a revogabilidade do mandato etc. são instituições típicas do "poder soviético" perfeitamente sintonizadas com a idéia de realizar a universalidade através da radicalização do particular.

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921.

Pouco importa que o adversário seja um "camarada provado" como Bukharin ou Trotsky: ao se voltarem contra o comitê central do partido, eles se teriam passado objetivamente para o campo antiproletário, tornando-se passíveis inclusive de atos anti-humanos, como a tortura e a pena de morte. Foi o próprio Stalin quem empregou o conceito de "inimigo objetivo" para qualificar exatamente os ex-camaradas que, ao se voltar contra a direção do partido, teriam se transformado em "agentes inconscientes da burguesia".

A via pela qual era concebida a morte do Estado passava antes de tudo por dentro do próprio Estado. Por sinal, um caminho diametralmente oposto àquele pensado por Gramsci, que preconizava a progressiva absorção do Estado por uma sociedade civil autônoma e em contínuo desenvolvimento. Em Stalin, a idéia era simplesmente estatizar a sociedade: "Só a forma soviética de Estado, que incorpora as organizações de massas dos trabalhadores e explorados à participação permanente e incondicional na direção do Estado, é capaz de preparar a extinção do Estado"(Os Fundamentos do Leninismo, Moscou, Ed. Progresso). Desse modo, ele reiterava o corporativismo, ainda hoje subsistente na URSS, e a antidemocracia, expressa na tutela da sociedade civil pela burocracia estatal.

Com base em todos esses pressupostos, agravados pela estatização da economia, não haveria como supor um outro resultado a não ser este que temos presenciado nas últimas décadas, cujo caráter negativo a perestroika veio evidenciar de forma irrefutável.

Muito longe de perecer, o Estado adquiriu dimensões monumentais, estendendo seus tentáculos por todos os poros da sociedade, cuja margem de iniciativa própria é praticamente nula. Alienado da política, num nível jamais imaginado por Marx, o povo prostrou-se rendido à burocracia. Privado de autonomia, o indivíduo submergiu à norma homogeneizadora do coletivo, substituindo a capacidade de rebelar-se e criar pela "psicologia da inércia social" - este é o tema de um interessante estudo de Igor Kou, da Academia de Ciência da URSS, publicado na revista soviética Estudos Sociais, de março deste ano.

E, com a opressão, reiterou-se também a exploração: a separação entre governantes e governados sob uma economia estatizada só poderia resultar na transformação dos governantes em privilegiados.

Novas formas de expropriação do excedente passaram a vigor, mais dissimuladas e em nome do progresso e bem-estar de todos. É este, essencialmente, o quadro em todos os países do "socialismo real", da URSS a Cuba, da China à Bulgária, da Albânia ao Vietnã, o que, aliás, evidencia a presença determinante de uma racionalidade.

Não que certas circunstâncias particulares devam ser encaradas como algo praticamente nulo.

A rigor, pode-se supor que o resultado teria sido bem outro, não fossem determinadas condições históricas potencialmente favoráveis ao êxito provisório do marxismo ortodoxo. Atraso econômico, político e cultural, presença explosiva de carecimentos elementares na sociedade, falta de tradições democráticas etc. são algumas dessas condições sem as quais o marxismo ortodoxo, provavelmente, jamais teria alcançado o tempo de glória que ostentou. A sua impotência nos países capitalistas avançados é o outro lado da moeda, suficiente para autorizar a mesma conclusão. E agora, cientes também de que a complexidade da sociedade soviética assinalou o seu colapso justamente ali onde o seu sucesso foi mais retumbante, esta conclusão só se fortalece.

A tarefa de renovação do socialismo precisa enfrentar incontornavelmente a exigência de uma reforma intelectual e moral do próprio movimento socialista. A crise do "socialismo real" é, antes de tudo, uma crise do marxismo ortodoxo e de pressupostos, não de respostas apenas. O marxismo ortodoxo - filosofia oficial do "Estado soviético" e seus assemelhados - não passa, hoje, de uma filosofia do conservadorismo burocrático. O título não a salva da condição de filosofia reacionária, uma escolástica cuja função é justificar a opressão e a alienação política do povo.

A crítica a esse marxismo é o ponto de partida fundamental para a formulação de uma alternativa revolucionária humanística e universal. Vivemos uma situação tal quê a emancipação dos seres humanos da opressão a que os submete a sociedade burguesa depende de que, antes, eles sejam emancipados, no nosso cérebro, da ditadura das leis sociais a que os subjuga o marxismo ortodoxo. Não há liberdade possível que não seja conquista de seres capazes de escolhê-la, desejá-la e agir com autonomia; que possa e deva ser alcançada por um Absoluto que anteceda os indivíduos; que, ela própria, por isso, seja também um Absoluto.

Tal concepção, antideterminista e libertaria, deverá conferir à noção de hegemonia o estatuto de categoria central da política revolucionária. Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. O que precisa ser dito, principalmente, é que a teoria econômica de um socialismo humanístico só será efetivamente isto na medida em que se fundar em pressupostos radicalmente distintos. Ela demandará a concepção de um novo modo de vida, pelo qual a superação cabal, inquestionável, dos carecimentos humanos se compatibilize com a negação radical da ideologia e erige o progresso material em valor supremo que se impõe por si mesmo, ainda que ao preço de enormes custos sociais, da destruição da vida o do planeta.

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano.

Ozeas Duarte é militante do PT-SP e membro do conselho editorial da revista Teoria&Debate.

Muito o que (des)fazer

 

 

Dedico este artigo ao companheiro Athos Pereira

Caberia cumprimentar a revista, tanto pela oportunidade do debate quanto pela coragem da chamada da capa da edição anterior: "Socialismo Real - O que Des-fazer?".

Para debater a crise do chamado "socialismo real" é necessário reconhecer que, a rigor, não existem no mundo países socialistas. No máximo poderíamos falar de sociedades pós-revolucionárias, pós-capitalistas, talvez proto-socialistas. Para onde ocorreram revoluções socialistas a melhor fórmula seria a que Tau Golin define no artigo "O Enigma Chinês"(Teoria e Política, nº 12, outubro de 1989, Brasil Debates, São Paulo, p. 73): "sociedades pós-revolucionárias legitimadas no marxismo". Assim, o que se chama de "socialismo real" está mais para socialismo realmente inexistente do que para socialismo realmente existente (como designou a fórmula "sorex" no final da década de 70).

Pois bem, o que está havendo com os países ditos socialistas? Uma insurgência dos "de baixo", com toda a certeza não importa se inicialmente estimulada pela glasnost gorbatcheviana. (Importaria sim investigar mais a fundo o que compeliu a URSS para a glasnost.)

Vai acabar o socialismo nesses países? Não, porque não pode acabar o que não existe. Vão retomar ao capitalismo? Também não, porque não há nenhum interesse das castas burocráticas reformistas em se suicidarem. Por outro lado, as massas trabalhadoras desses países também não parecem ter interesse em reeditar um regime social em que perderiam, de certa forma, o mínimo de segurança material que conquistaram em termos de emprego, cesta básica, transporte, habitação, saúde e educação em troca de uma incerta liberdade política sem democracia econômica.

Qual o problema então? Devem existir vários problemas, mas o fim fundamental é que há o início de uma possível solução. A não ser naqueles países, como China e Cuba, em que a insurgência democrática das massas está sendo barbaramente reprimida ou simplesmente não está existindo.

O caso da China é o mais grave e muito já se escreveu sobre ele. O "enigma chinês" está menos para a interpretação, digamos, benévola do livro de Wladimir Pomar e mais para a do provocante artigo de Tau Golin. Carlos Nelson Coutinho havia sugerido que o enigma colocado pela democracia às sociedades pós-revolucionárias legitimadas no marxismo era: "Me decifras ou te devoro". "Do ponto de vista da burocracia chinesa", escreve Golin, "o enigma é invertido: Se me decifras, eu te devoro!" Ao que tudo indica a esfinge chinesa não permanecerá, como a de Gizeh, imóvel ante a emergência dos subalternos que a forem decifrando. Se preciso for (e se possível) liquidará milhões antes de ceder.

Em Cuba, a ausência de movimento de massa não constitui uma indicação tranqüilizadora de que lá o socialismo vai muito bem, obrigado, e de que o marxismo-leninismo continua guiando o povo, como potente farol na árdua (porém segura) travessia para o porto abençoado do comunismo. Trata-se de um indicador análogo ao da última votação conferida pelos fiéis albaneses há hoje não tão fiéis) ao falecido camarada Enver Hoxha. O Partido Comunista Cubano não quer saber de nenhuma abertura: confunde de propósito glasnost com perestroika para neutralizar a influência da primeira no seu própria povo através da crítica ortodoxa aos desacertos da segunda. Mais do que isso: proíbe (quem diria!) as publicações de Moscou ao invés de "vencê-las" pelo debate. Os ventos da renovação parecem ainda não ter soprado na nossa querida ilha. Quando, a dez anos do terceiro milênio, o jornal Granma, comentando a execução de Ochoa, ainda tem a cara-de-pau de escrever: "Quando o partido fala, nenhuma só palavra, nenhuma só vírgula, se distância da verdade" (edição de 9/7/89), é sinal de que a coisa vai mal.

Mas onde está a causa de tudo isso? Agora, então, vêm as hipóteses levantadas para explicar a crise. Quase todas elas se baseiam numa mesma matriz teórica: a da "degeneração", da qual existem variadas versões, fora também dos meios trotskistas. Mais do que uma matriz teórica, essa explicação evoca, no plano do imaginário, o arquétipo da "queda primordial", alimentando a crença na existência de uma perfeição (ou promessa de perfeição) passada que se corrompeu.

Assim como não acredito na existência passada ou presente de países socialistas, também não acredito que tenha existido alguma vez na história um Estado realmente operário (quer dizer, baseado em instituições proletárias: organismos soberanos e democráticos legislativo-executivos de participação direta da classe operária em todos os níveis e organizações armadas subordinadas a esses organismos). Por isso, não posso abraçar a hipótese do "paraíso perdido", do "pecado original", da "corrupção do anjos" ou do "desvio da rota" (mesmo porque o caminho não existe previamente; faz-se, como diz o poeta, ao andar).

Examinemos o caso da URSS, que, como lembra Gorender (Teoria & Debate, nº 8, p. 9), é paradigmático. A política que, a partir do início de 1918 - portanto, bem antes do "lobo mau" Stalin (outro arquétipo dos contos infantis) concentra "todo o poder em suas mãos", como assinala Glauco Arbix (idem, p. 14) -, praticamente colocou na ilegalidade todas as organizações de massa do movimento dos trabalhadores que não fossem os sindicatos oficiais e, sucessivamente, aboliu o direito de greve, admitiu a implantação de normas segundo as quais podiam-se cassar as entidades sindicais, restringiu e depois retirou dos sindicatos o direito de eleger livremente seus representantes para os órgãos da administração econômica e, finalmente, permitiu a demissão por decreto das diretorias sindicais legitimamente eleitas instaurando a prática das nomeações dos dirigentes das entidades de massa pelo partido, serviu de suporte para tais desdobramentos da relação entre partido e movimento, não surgiu do nada.

O intervencionismo do partido no movimento, relacionado ao desenvolvimento da burocracia no partido e nas instituições do Estado, que esvaziou os sovietes, esmagou todos os tipos de organizações representativas da classe operária com a criação do sindicato oficial atrelado, impedindo destarte o florescimento da atividade autônoma das massas na construção da nova sociedade, tem sido justificado de várias maneiras no últimos sessenta anos. A justificativa mais antiga é de que o desenvolvimento da centralização, gerando de certa forma o burocratismo partidário e estatal e eliminando progressivamente a autonomia do movimento, foi uma contingência inevitável, imposta pelas necessidades militares durante a guerra civil e pela urgência de reconstrução de uma economia arrasada pela guerra. Quem fala contra essa justificativa, porém, é a própria história: não foi a partir da guerra civil que se verificaram os mencionados acontecimentos. A política intervencionista e centralizadora do Partido Bolchevique começou a ser colocada em prática bem antes e institucionalizou-se justamente depois de a guerra civil estar praticamente terminada.

Parece evidente que o desenvolvimento do Partido Bolchevique, no sentido da centralização, tenha sido condicionado pelas tarefas que ele mesmo se impôs. Um proletariado pouco numeroso e pouco desenvolvido não havia conseguido conquistar sua hegemonia sobre as demais classes trabalhadoras, as quais, defendendo seus próprios interesses, se opunham às medidas econômicas tomadas pelo novo governo. Ao partido não restava outra alternativa senão "forçar a barra" através da intervenção vertical autoritária em todos os setores da vida social, em especial nos sovietes e nos sindicatos, a fim de obter pela coerção o que não poderia ser conseguido simplesmente pela persuasão. Massas populares que não foram movidas por uma ideologia proletária e, conseqüentemente, não assumiram um projeto socialista de transformação social só podiam ser compelidas a produzir sob a ditadura, nos marcos de um regime forte e centralizado. E qualquer democracia e autonomia maiores admitidas aqui comprometeriam irremediavelmente a revolução.

Se esse argumento, entretanto, dá conta de explicar os motivos que condicionaram a marcha do Partido Bolchevique rumo à centralização e ao intervencionismo, ele não pode ser usado como cortina de fumaça para ocultar outros fatores que predispuseram essa marcha. Quero dizer que a política que orientou a atuação do partido revolucionário após a tomada do poder tinha suas raízes aprofundadas no tempo, há quase duas décadas, num processo de construção partidária baseado numa concepção politicista de transformação social. Em outras palavras: no campo da auto-emancipação dos trabalhadores como luta pela conquista da democracia e da autonomia, não houve ruptura entre o que se fez depois de 1917 e o que, antes, se concebia necessário fazer!

O partido, que foi construído para destruir o aparato burocrático-militar das classes dominantes, subordinou de tal forma todas as demais atividades necessárias à transformação social ao enfrentamento com o velho Estado que, uma vez tomando o poder, não conseguiu garantir uma participação ativa dos trabalhadores na gestão.

A história mostra que não havia, nem antes e nem depois de 1917, uma política de construção de organizações independentes e autônomas dos trabalhadores como embriões de novos organismos de direção e de poder da sociedade.

O partido não conseguia admitir que pudesse surgir, fora do seu planejamento e direção, alguma iniciativa revolucionária. Mesmo depois de 1905, como assinala Pierre Broué (Le Parti Bolchévique, Editions de Minuit, Paris, 1963, p. 35), "aqueles que no Partido Bolchevique eram mais favoráveis aos sovietes viam unicamente neles, e no melhor dos casos, auxiliares do partido". Não é de espantar que o resultado dessa política tenha sido o enfraquecimento do movimento, a tal ponto que, à época da insurreição, não haviam sido construídos instrumentos suficientes capazes de permitir às massas trabalhadoras o exercício do novo poder. Em outubro de 1917, por exemplo, não existiam mais do que novecentos sovietes em toda a Rússia, a maioria dos quais formados a toque de caixa, sem nenhuma experiência de reunião e de decisão e com uma forte presença de camponeses e soldados em seu seio. (Isso em parte pode ser explicado pelas condições particulares da luta contra o czarismo, que não permitia o livre desenvolvimento do trabalho de massas. Mas não se pode negar que também era resultado de uma política determinada.)

O que estava por trás dessa política autoritária senão uma concepção de partido que, imaginando-se o único centro gerador da consciência e da ideologia revolucionárias, era, ao mesmo tempo, autor e protagonista (infalível) da transformação social? Essa concepção, cristalizada como doutrina, amalgamava classe e partido de classe: se é o partido da classe o único portador dos interesses históricos da classe, o poder da classe só se realiza através do poder do partido. Dentro dessa linha de raciocínio não tem mesmo nenhum sentido falar em autonomia das organizações dos trabalhadores em relação ao partido (nem ao Estado dirigido por este). Ora, sem essa iniciativa autônoma das massas não poderia mesmo haver socialismo, se é que entendemos - como Marx - por socialismo um processo de auto-emancipação dos trabalhadores, fundamentalmente na sua auto-organização.

O resto foi a cópia do modelo: a partir de 1925 Zinoviev, à cabeça da III Internacional, lançaria para todo o mundo a palavra de ordem da "bolchevização dos partidos comunistas". Ou então foi imposição do modelo (como na Polônia, onde o socialismo foi empurrado goela abaixo do povo "pelas tropas soviéticas de ocupação, em conformidade com o modelo stalinista").

Hoje podemos estar assistindo a uma retomada revolucionária da iniciava das massas nas sociedades pós-revolucionárias e pós-capitalistas. Essas massas querem ter o direito de viver em uma sociedade civil e não nos domínios de um despótico Estado oriental. Não sendo o capitalismo, alguma coisa de melhor poderá vir para os povos do Leste. E para todos nós.

Termo "Comunismo"

Diante de tudo o que vem acontecendo, deveria ser abandonado o termo "comunismo"? Independentemente das atuais "reformas no socialismo real", o termo comunismo, como nome de partido, já está sendo abandonado pelas forças vivas da revolução. Como nome de partido, insistir na palavra "comunista" para não ceder às pressões da mídia burguesa é uma teimosia boba, uma vez que causa mais confusão do que esclarecimento. Nos países capitalistas, o povo acha que partidos comunistas são os que defendem os velhos regimes burocráticos do chamado "socialismo real". Em grande parte dos países dito socialistas, como os recentes acontecimentos vêm demonstrando, as massas tendem a atribuir ao Partido Comunista em geral único, monolítico e fundido ao Estado - toda a responsabilidade pela opressão política e pela dominação ideológica de que foram e estão sendo vítimas. (E, nesse caso, não é à toa. nem pelo efeito da propaganda burguesa!)

No plano teórico, o termo comunismo, usado para designar o objetivo de nosso projeto socialista, não deveria ser abandonado mas revisitado. A utopia comunista, tal como foi formulada no século passado pelos fundadores do marxismo, continua sendo uma referência fundamental - que, aliás, tem pouca coisa a ver com o que tiraram os próprios comunistas do nome "comunismo" (e em seu nome). Mas mesmo esse "modelo" básico, já centenário, não pode ter o caráter de "verdade revelada". Precisa ser repensado à luz de uma reflexão que recupere elementos da elaboração marxista engelsiana original, porém avance para a modernidade, incorporando resultados de investigações recentes do pensamento filosófico e científico contemporâneo (que leve em conta, por exemplo, a chamada "mudança dos paradigmas", a alteração dos padrões de apreensão do mundo e de ação sobre o mundo, a visão sistêmica da vida, a ecologia etc.). Comunismo como horizonte utópico e como movimento real de negação do capitalismo permanece como referência fundamental para a construção de um novo homem, de uma nova mulher, de um novo mundo.

O marxismo acabou?

A tradição doutrinária e dogmática dos partidos comunistas (se bem que tentasse) não deu conta de acabar com o marxismo. Por certo não devemos mais guardar aquela reverência mística, do devoto de Maomé perante o Alcorão, frente as "escrituras sagradas" de Marx, Engels e Lenin.

Por que marxismo? Marxismo porque o âmbito teórico no qual se erige qualquer sistema conceitual que tenha como objetivo desvelar as causas da situação de exploração econômica, de opressão política e de dominação ideológica e indicar um rumo para a superação dessa realidade ainda é o do marxismo. Isso significa que, embora se fale de crise do marxismo, parto da convicção de que não é o marxismo enquanto conjunto de teorias científicas (nem como "fermento revolucionário") que está em crise mas sim as velhas formas ideológicas, através das quais essas teorias foram vividas pelos homens (e que esse "fermento" foi empregado).

Vivemos a hora, dolorosa (é verdade), da ruptura com os velhos dogmas da nossa crença. Chegou o momento de rasgar a antiga cartilha baseada no mito segundo o qual o "marxismo-leninismo" (com esse hífen no meio) seria uma teoria científica; não é - é uma teoria ideologizada como doutrina para legitimar o domínio de Estados-partidos burocraticamente centralizados sobre sociedades pós-revolucionárias. É tempo de anticartilha marxista-leninista: a história não marcha inexoravelmente para o socialismo (como aprendemos no Politzer) nem, em caso contrário, marcharia para a barbárie. O socialismo não leva inexoravelmente, ao comunismo, não é uma necessidade histórica objetiva, não é o desígnio de nenhum deus ex machina (nem o cumprimento de nenhuma "lei de bronze da história") - é um projeto humano a realizar (que requer, por certo, condições objetivas), obra exclusiva da revolução social, e esta revolução não constitui um projeto imanente à realidade social: é um ato humano (uma explosão e também um processo) levado a efeito por um sujeito histórico principal (o proletariado) que tem vocação de hegemonia, mas não tem nenhuma "missão" (quem a teria conferido?) e nem é revolucionário simplesmente pela posição que ocupa no modo de produção.

Afirmações como estas ainda são motivo de escândalo ou contrariedade em nosso meio. Seria preferível, entretanto, que nos contrariássemos menos com os que "perderam" a velha doutrina e nos preocupássemos mais com os que estão abandonando a perspectiva revolucionária.

E o PT com tudo isso?

Face à ofensiva do capitalismo internacional contra o socialismo, o PT não deveria ter se colocado numa posição defensiva durante a campanha presidencial - mesmo que isso implicasse desgostar aliados ideologicamente retrógrados, como o PCdoB.

Tivemos - e não pudemos aproveitar bem - muitas chances para dizer, em alto e bom som, que éramos socialistas sim e qual era o nosso socialismo. Por que não o fizemos? Por um motivo básico (além de evitar problemas na frente): não conseguimos, ainda, definir com clareza o socialismo que queremos e o caminho estratégico para conquistá-lo e construí-lo. Debates como este irão contribuir em muito para clarear as posições, preparando a discussão do VII Encontro Nacional do PT, que deverá se manifestar efetivamente sobre a questão em junho próximo. Será, ao que tudo indica, o principal debate da história do partido, porque o que se estará discutindo não é apenas uma definição teórico-programática, mas realmente o que desfazer da tradição dogmática e autoritária das velhas internacionais, em especial da III IC, a cuja herança ainda não renunciamos inteiramente.

Talvez constitua um bom exemplo dessa herança as concepções de socialismo que se expressaram na cartilha de formação política intitulada O que é Socialismo?, editada como "texto para debates", em junho de 1989, pelo Coletivo da Secretaria Nacional de Formação Política. No que tange ao tema do presente debate, essa cartilha defende a "teoria do defeito", ou seja, os processos de burocratização verificados nas sociedades pós-revolucionárias, chamadas eufemisticamente de "problemas de burocracia", são qualificados como defeitos. "É verdade", diz o texto à página 37, "que os atuais Estados socialistas sofrem, em diferentes graus, variando de país para país, os defeitos do burocratismo e do autoritarismo. Mas esses males não são próprios do socialismo." A cartilha admite à página 31 que "problemas", "erros", "deformações", "defeitos", por terem "bases Materiais bem concretas... continuarão existindo por muitos e muitos anos". Esses "defeitos existentes... foram se manifestando com o tempo em função das contribuições históricas, tanto materiais quanto teóricas", e poderiam em parte ser evitadas (através do estudo, "com seriedade", das bases reais dos erros e dos acertos na história dos países socialistas) - citação da página 38.

Em suma, existem países socialistas, mas eles não são – e não poderiam ser - perfeitos. O socialismo quando "materializado" numa sociedade concreta costuma dar sempre, em maior ou menor grau, algum defeito! E não adianta procurar a responsabilidade em alguma "orientação deformada" por que "não é esse o caminho correto", uma vez que as incorretas "teorias só são capazes de convencer quando existem bases materiais bem concretas para isso" (página 31). Ou seja, as limitações históricas, materiais, concretas, explicam tudo.

Mas será possível explicar, por algum "erro" ou defeito imposto por condicionamentos materiais, desde o assassinato de um milhão de comunistas (dentre os quais 90% dos comandantes do Exército Vermelho) na URSS de Stalin até os sapatos de diamante de madame Ceaucescu na pobre Romênia?

Tem-se a impressão de que, para a cartilha, o socialismo não é um projeto humano a realizar, mas uma "sociedade transitória" pela qual estamos fadados a trafegar a fim de atingir o paraíso comunista, fechando o ciclo que começa na comunidade primitiva, passa pelo escravismo, pelo feudalismo, pelo capitalismo - tudo apoiado numa base material que progride linearmente. Porque, "como em tudo na vida, a consciência socialista também precisa se apoiar numa base material" (página 22).

Não há democracia nos atuais países socialistas? "Ora", responde a cartilha na página 28, "no socialismo não seria sensato pretender que a democracia estivesse plenamente conquistada, da noite para o dia, ainda mais se levarmos em conta as enormes dificuldades enfrentadas por todos os processos revolucionários(ataques da burguesia, bloqueio econômico, sabotagens internas etc.). (E depois) a implantação de uma verdadeira democracia socialista também requer uma base real."

"Da noite para o dia." Acontece que os povos desses países, muitos dos quais já atravessaram uma noite de setenta anos, estão se mostrando indispostos a esperar mais um dia de não se sabe quantos anos até atingir, como quer a cartilha, na página 28, "um nível material, cultural e científico elevado em que as desigualdades existentes na sociedade tenham sido eliminadas ou reduzidas sensivelmente".

Essa concepção anacrônica de socialismo, escrava do império das condições objetivas, não constitui "erro" ou "desvio" particular de nenhum grupo ou militante de esquerda. Constitui parte da herança a que todos nós temos de renunciar se quisermos permanecer na vanguarda das transformações sociais.

Para isso, teremos igualmente de nos transformar.

Do que se fez em nome do comunismo e do socialismo há, por certo, muito que desfazer.

Assumir isso autocriticamente constitui agora o nosso principal desafio.

Augusto de Franco é membro do Diretório Nacional do PT.

 

 

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