EM DEBATE

A vitória de Mandela nas eleições da África do Sul mexeu com corações e mentes das forças progressistas e de esquerda de todo o mundo.

Enfim, caía por terra uma das maiores vergonhas da humanidade. O século XXI, pelo menos, despertará com a consciência libertada dessa sombra sinistra que é o apartheid, a política de segregação racial criada pela elite branca sul-africana e instituída desde 1948 por seu Partido Nacional (PN).

Com isto, todos parecemos concordar.

No entanto, que política o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Mandela, trilhou em termos de alianças ou deverá trilhar para que essa vitória realmente se consolide e se traduza de fato numa transformação real das condições de vida da grande maioria de sul-africanos, os negros?

O caminho escolhido pelo CNA, a conselho sobretudo do seu partido aliado Partido Comunista Sul-Africano (PCSA), foi a negociação com concessões ao PN do ex-presidente DeKlerk. Isto precedeu as eleições, envolvendo negociações inclusive com organizações sindicais.

O projeto decorrente desse caminho plebiscitado é aprovado. Ou seja, é sobre esse projeto que que se elege Mandela.

E é esse projeto o pomo da discórdia, o tema de uma discussão que, queiramos ou não, subjaz também aos diferentes entendimentos do que deve e pode ser um Governo Democrático e Popular no Brasil. Entendimentos e expectativas, é claro.

Nos textos que apresentamos neste debate entre Markus Sokol (secretário de Comunicação da Executiva Nacional do PT) e o jornalista Jayme Brener, que cobriu as eleições de Johanesburgo, estão colocadas algumas questões centrais dessa divergência.

O que se pode esperar de Mandela?

Goiabada com queijo

O que se pode esperar de Mandela?

Oba-oba. É o que resume o estado de ânimo generalizado em relação à ascensão de Nelson Mandela ao governo da África do Sul. Na mídia, uma verdadeira unanimidade. O que numa sociedade atravessada por interesses tão contraditórios, como a nossa, já mereceria uma interrogação.

De saída, é claro que o fim do regime social criado pelo apartheid seria um enorme progresso para a humanidade. Encerraria uma das mais brutais formas de exploração do homem pelo homem, que utiliza o terror sistemático, a discriminação racial por um regime estatal de exclusão.

A África do Sul, ou Azânia como preferem os militantes que vêm do Movimento da Consciência Negra, foi um dos primeiros países a lutar contra o colonialismo e um dos últimos a conquistar a independência. É que, como explica a AzapoUnknown Object, trata-se de um país riquíssimo, que produz de 50% a 75% de todo o ouro do mundo. E que os ingleses, quando se viram obrigados a outorgar a independência, entregaram aos descendentes dos Boers (colonos brancos). Estes constituíram o que a Azapo qualificou como "um sistema híbrido de racismo e capitalismo que procura manter o povo de Azânia numa escravidão perpétua", ou seja, "numa relação de simbiose entre o capitalismo e o racismo".

Não foi à toa que todo o mundo saudou a crise aberta na virada da década, em particular quando o povo negro conseguiu libertar seus principais dirigentes presos.

Mas foi também esse o momento em que os EUA resolveram tomar o assunto diretamente em suas mãos. No quadro da pretendida "nova ordem mundial", foi uma iniciativa americana que levou ao processo de "negociações" terminado nas recentes eleições.

Como em outros processos - como o que resultou nos acordos de Gaza e Jericó sobre a nova partilha da Palestina-, o governo de Washington convocou diretamente forças e partidos oriundos do antigo aparato internacional ligado ao regime da burocracia soviética, agora desagregada.

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O PCSA (Partido Comunista Sul-Africano) transformou-se no interlocutor das "negociações", incumbido da tarefa de subordinar o forte movimento operário aos acordos - o que, de outra forma, também ocorreu com frações da antiga burocracia dos países do Leste da Europa na hora da "reconversão" (privatizações etc). O PCSA está historicamente associado ao Congresso Nacional Africano, o CNA, que é a mais importante organização dos negros do país, mas não a única.

Os quatro anos de "negociação", para que se chegasse ao acordo passaram pela associação das organizações sindicais ao processo. Um primeiro passo foi a assinatura de um "pacto estratégico" entre o PCSA e a principal central sindical, Cosatu.

Em seu congresso de 1991, a Cosatu adota um programa, bancado sobretudo pelo PCSA, que contempla ocupar-se de decisões de investimento; introdução de novas tecnologias e técnicas de produção; utilização do lucro; e decisões do que produzir.

Trata-se da vontade de associar os sindicatos à gestão da economia capitalista. Seguiam-se assim as recomendações do FMI (o país não integrava oficialmente a instituição). Isso ficou mais claro quando, para esse fim, constituíram-se mais de duzentas estruturas tripartites - sindicato, patronato e Estado - nos últimos anos.

Hoje, a direção da Cosatu afirma que "a cooperação e a parceria entre o trabalho e o capital são um elemento crucial para a estabilidade e a concorrência internacional... O patronato e o movimento sindical devem se colocar de acordo sobre os programas para atenderem níveis mais elevados de produtividade e de lucro".

Na África do Sul, harmonizar os brancos do apartheid com o povo negro oprimido, como se vê, acarreta harmonizar o capital e o trabalho, para fins de concorrência internacional. O que, tal como no Brasil, implicaria pôr de acordo patrões e operários, sobre estabilidade e lucro.

Nessa trilha, chegou-se ao Acordo de Kempton Park que estabeleceu o quadro institucional das recentes eleições. Delas emergiu um governo de coalizão entre o CNA, de Mandela, e o Partido Nacional, de De Klerk.

A elementar democracia deveria significar a transferência do poder da minoria branca para a maioria negra, pelo princípio "um homem um voto", num Estado unitário (ver aqui), bem como a restituição à Nação das riquezas do povo negro espoliado pela ocupação colonial e o apartheid, o que significaria a "nacionalização" daquele patrimônio.

É certo que pela primeira vez todos os sul-africanos puderam votar. Só que a nova Constituição "negociada" interdita a transferência do poder. Obriga um governo de coalizão nacional, com todos partidos que ostentam 5% ou mais dos votos, a tomar decisões apenas por consenso. Quer dizer, confere um poder de veto permanente àqueles que se beneficiaram do apartheid.

<--break->A mesma Constituição protege de qualquer nacionalização os setores da economia ditos "integrados" ao mercado mundial (ouro, diamantes, platina etc) assim como as grandes propriedades agrárias "de tipo exportador". Neste particular a reforma agrária só é permitida com "objetivos de ordem pública", o que é sabiamente diferente do "interesse público" (social), e se restringe a estradas, obras etc.

É muito significativo que um certo juiz John Kriegler, presidente da Comissão Eleitoral Independente, tenha declarado ao jornal norte-americano Internacional Herald Tribune, a propósito destas eleições - das quais não se sabia quantos podiam votar e nem mesmo quando terminava o pleito - "São eleições à africana. Não devem ser analisadas com base em critérios europeus ou americanos"...

A Azapo defendeu a abstenção ativa nestas eleições que, estima-se, tiveram a participação de 19,5 milhões dentre 26 milhões de negros no país. Outros grupos sindicalistas, e inclusive dirigentes da Cosatu que antes falavam em um Partido dos Trabalhadores, eleitos deputados ou nomeados ministros, deixaram de levantar a questão.

O governo Mandela recebe todo o peso da herança da crise econômica do apartheid.

Descobre-se hoje que, embora oficialmente e boicotado nos fóruns internacionais, o regime do apartheid beneficiou-se de importantes aportes financeiros. E cujo reembolso nem sempre era exigido do antigo regime pelos bancos. Banco Mundial e FMI só vieram a oficializar suas relações agora, com as autoridades da transição. Isso para renegociar os termos do pagamento da dívida externa que chega a 22 bilhões de dólares e que, segundo o Sunday Times inglês, correspondente a 55% do PIB do país. O governo está diante de um crescimento do montante dos juros da dívida neste ano de 2 para 2,5 bilhões de dólares, segundo o jornal, especialmente em virtude da construção de casas de luxo no ano passado.

O resultado, garantido pelos acordos negociados, é que o Orçamento anual para 1994-95 consagra 20% ao pagamento da dívida e apenas 2% às "medidas sociais de urgência". Foi o que sobrou para o RDP (Reconstructiou and Development Programme), o programa apresentado pelo CNA.

A imprensa internacional não se cansou de elogiar esse "orçamento de continuidade".

O novo ministro das Finanças foi Derek Keis do Partido Nacional, que ocupava o mesmo cargo(!) no governo De Klerk (mesma coisa com o presidente do Banco Central), até que renunciou agora em julho. Rapidamente, Mandela substitui-o pelo banqueiro Liebenberg.

Ninguém se surpreendeu quando Keys em seu primeiro "discurso sobre o Estado da nação", segundo o jornal econômico francês La Tribune, "tenha tranquilizado os homens de negócios não impondo nenhuma reforma fiscal 'revolucionária', (...) como forma de cumprir os compromissos de De Klerk com o FMI do final de 1993."

O problema agora é saber como se comportará o povo negro em face dessa política. O jornal The Star (27/04/94) publicou um cínico comentário de um dirigente do Democratic Party, ligado ao capital inglês: "Mandela disse que a época de manifestações de massa está terminada, e que será preciso aguardar três a cinco anos antes que possamos responder realmente às nossas necessidades! Gostaria muito que assim fosse. Se ele conseguir sem provocar uma revolta, será um feito".

Com efeito, as necessidades de alimentação, emprego, educação e habitação são prementes, na África do Sul. O RDP estima entre 5 a 8 bilhões de dólares, o custo do atendimento das demandas imediatas. O país é rico: as poucas famílias que controlam a Anglo-American Corporation, maior produtora de diamantes, ouro e platina detém só nesta empresa, 7,2 bilhões de dólares nos mercados financeiros sul-africanos, quase o equivalente ao financiamento do RDP inteiro. Só que os acordos institucionais proíbem tocar nas fortunas constituídas em três séculos de opressão do povo negro.

<--break->Dessa forma, é discutível o futuro que terão as promessas de campanha, embora pareça bastante crível o engajamento do governo em alguns outros dos compromissos marcados no RDP.

Por exemplo, quando se limita a conduzir as "relações com as instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e FMI, de modo a proteger a integridade da formulação doméstica e promover os interesses da população e da economia da África do Sul". Nada mais, nem mesmo a denúncia retórica desses organismos.

O RDP está, na realidade, completamente enquadrado no ajuste recomendado pelas instituições multilaterais, que renunciou combater.

Em outra passagem ele esclarece que "a nova política deve levar em conta as limitações dos setores da indústria distintos do aço, da metalurgia e dos produtos químicos. Os recentes acordos do GATT geraram um ajuste doloroso em certos setores, e a política seguida deveria reduzir e repartir o impacto deste ajuste, melhorando ao mesmo tempo a eficácia. As reduções de direitos alfandegários sobre as importações são uma exigência do GATT, constituindo igualmente um instrumento estratégico de uma política comercial. Eles são hoje objetivo de uma negociação no seio do National Economic Forum (um fórum tripartite)."

Está bem expressa aí a utilização do tripartismo para repartir o impacto doloroso do ajuste. Por tudo isso, e muito mais, seria um erro considerar a política levada por Mandela até aqui como um exemplo para os socialistas no mundo.

Já se conhecia a transição chilena, pactuada ao redor do general Pinochet no Ministério do Exército, como garantidor da continuação dos planos do FMI, ao lado da eleição do presidente da República. Não ocorreu a nenhum dirigente importante do PT, na época, considerar que isso fosse expressão de "generosidade" da antiga oposição. Ao contrário, para qualquer petista isso apenas configurava o caráter dessa oposição, e a necessidade de um novo partido, independente, digno dos trabalhadores, comprometido com suas lutas, apenas com elas e não com os planos do FMI. No fundo, é o mesmo problema com o CNA na África do Sul.

O que se pode, então, esperar de Mandela?

Os dados indicam que seria uma precipitação (na realidade, uma derivação desastrosa) embandeirar-se do "modelo" da política de Mandela.

Logo depois de apertar a mão de Lula, Mandela e seu governo de União Nacional baixaram um pacote de medidas incluindo cortes nos gastos públicos, mais impostos em produtos de consumo popular e sobretaxa nas rendas superiores a mil dólares por mês, bem ao agrado do FMI (Veja, 29/06/94).

Qualquer que seja nossa simpatia por velhos lutadores que amargaram o exílio e a prisão, nada deve se sobrepor ao nosso compromisso com a necessidade de uma vida digna para os povos em qualquer parte do mundo, em oposição, portanto, ao plano do ajuste que se pretende universal. Tal é o caminho de uma ordem internacional justa, para um partido com uma política internacionalista independente dos atuais centros de poder. E na África do Sul, como em outras partes, haverão parceiros determinados para isso.

Markus Sokol é secretário de Comunicação da Comissão Executiva Nacional do PT.

Goiabada com queijo

Como levar a maioria negra ao poder após oito décadas de luta, evitando a fuga em massa dos brancos, de seus técnicos e de seu dinheiro? Como evitar que o fim do regime de apartheid gerasse uma enorme expectativa, entre a população negra, de prosperidade a curto prazo (uma expectativa que o novo governo dificilmente teria condições de preencher)? Como canalizar a energia da luta anticolonialista em potencial de desenvolvimento econômico?

A resposta a essas questões não está em nenhum manual com receitas para a confecção do socialismo. Ela teve que ser elaborada pelo Congresso Nacional Africano (CNA, o partido de Nelson Mandela) e veio em uma espécie de fórmula goiabada com queijo. Trata-se da transição negociada com o Partido Nacional (PN), que em 1948 arquitetou as leis do apartheid. Negociada no duro: os "nacionais", e com eles a minoria branca, conservaram fatias importantes do poder, inclusive ministérios-chave como das Finanças e a Presidência do Banco Central.

Na verdade, não foi exatamente o grupo de Mandela que desenvolveu o modelito, e sim seus aliados do Partido Comunista Sul-Africano (PCSA), um dos raros PCs do mundo que manteve durante décadas uma tradição de combatividade. No comando, o legendário Joe Slovo, judeu nascido na Lituânia, o primeiro branco a participar da cúpula do CNA. Foi Slovo, ex-comandante militar do Umkhonto we Sizwe (Lança da nação, o braço armado do CNA), quem convenceu Mandela e os seus depois de vários meses de debates - a negociar e fazer concessões aos nacionais do ex-presidente Frederik De Klerk. "Traição!", chiam as comadres puristas, interessadas em mais uma experiên cia de socialismo a toque de caixa na África. A resposta à chiadeira veio das próprias urnas sul-africanas. A turma do socialismo puro e duro levou uma surra. Até mesmo o Congresso Panafricanista (PAC), uma corrente política que tem existência real, teve um desempenho muito abaixo das expectativas. Que dirá meia dúzia de grupúsculos de origem trotskista, cada qual com duas dezenas de votos (existem trotskistas dentro do CNA, é bom lembrar)?

O fato é que os sul-africanos identificaram no CNA e em Nelson Mandela uma transição real, mas pacífica. Estão muito vivas as experiências de países vizinhos, como Angola, Moçambique e, em menor escala, o Zimbábue. Lá, a vitória de partidos socialistas ou nacionalistas negros provocou uma fuga em massa dos brancos e de seu capital, seguida pela guerra civil, que o CNA quis evitar. Tudo bem, eram tempos de Guerra Fria, quando qualquer conflito regional transformava-se em um fuça-a-fuça entre as superpotências. Agora, com o harakiri da União Soviética, a Casa Branca pode dar-se ao luxo de conviver melhor com Mandela no governo do mais rico país africano.

Mas a engenharia da transição política na África do Sul - e seu sucesso inicial - não podem ser explicados apenas pelo fim da Guerra Fria. O país vivia, há anos, um terrível impasse. A minoria branca já não tinha condições de governar, mas não queria largar a rapadura - leia-se minas de ouro e diamante, reservas de urânio, um importante parque industrial. A maioria negra tinha certeza absoluta da vitória eleitoral. Mas, como disse Joe Slovo, "não chegaríamos aos centros reais de poder, como as Forças Armadas, o empresariado e os serviços secretos. Decidimos então negociar com esses centros de poder". O passaporte para a negociação foi o fato de que o CNA era o único interlocutor possível para quem estivesse interessado em compartilhar do futuro da África do Sul. E a negociação foi recheada dos cuidados de Mandela em garantir aos brancos, mulatos, chineses, judeus, seu lugar (e seus lucros) no país governado pelo nacionalismo negro.

Os primeiros resultados da tática goiabada com queijo foram excelentes. A extrema-direita branca (neonazista mesmo, com direito a uniformes e ao ridículo passo de ganso) viu-se esvaziada, já que os setores menos babantes decidiram participar das eleições, por meio da Frente pela Liberdade, do general Constand Viljoen. O separatismo zulu do partido Inkhata, que até às vésperas das eleições de abril estava em pé-de-guerra com o CNA, agora faz parte do gabinete de Mandela, ainda que não se saiba por quanto tempo.

Aliás, uma palavrinha sobre o tribalismo. Não creio que se possa definir a sociedade sul-africana como tribal. A modernização e a urbanização acelerada destruíram grande parte dos laços tradicionais. O tribalismo - em particular dos zulus, a maior nação do país - foi incentivado pelos brancos como forma de dividir a maioria negra. Hoje, a rigor, só existem duas grandes tribos na África do Sul: a minoria zulu do Inkhata (porque a maior parte dos zulus apóia o CNA) e a extrema-direita branca dos bôeres, descendentes dos colonos holandeses e franceses. O CNA, de outra parte, afirmou-se como única força multirracial de peso (o PAC manteve, por muito tempo, uma linha política "negrista"). Uma das provas disso foi a vitória do partido de Mandela nas eleições para o governo da província do Cabo do Norte, onde grande parte da população é mestiça.

Seja como for, a tática goiabada com queijo do CNA enquadrou o tribalismo e isolou os separatistas radicais. Isso deverá funcionar como uma garantia de estabilidade, e aí está a questão: estabilidade para que Mandela, Slovo & Cia. pilotem aquele que talvez seja o mais ambicioso plano de reformas sociais já representado em um processo eleitoral em todo o mundo. Para avaliar a radicalidade do programa de Mandela, é preciso conhecer o tipo de desigualdade social que o regime do apartheid engendrou. A África do Sul produz mais da metade de toda a energia elétrica do continente, uma parcela da qual é exportada. Mas apenas 36% das residências têm luz elétrica. Há 14 mil escolas para negros sem luz. É comum ver casa confortável, pertencente a um casal negro, com dois carrões importados na porta, mas sem luz. Dois terços dos sul-africanos não têm água em casa e 12 milhões de pessoas não contam com redes de esgoto. Quer dizer, os serviços públicos obedeciam a lógica da exclusão dos negros.

O Programa de Reconstrução e Desenvolvimento do CNA prevê, em cinco anos, a eletrificação de 72% das residências. Cerca de 250 mil casas deverão ser construídas a cada ano. As redes de água e esgotos serão duplicadas no mandato de Mandela. A energia nuclear, que representou um elemento estratégico no governo do apartheid, será desativada (os técnicos do CNA encontraram seis bombas atômicas prontinhas). Uma das orientações do novo governo é romper o isolamento, tocando projetos em comum com Moçambique (petróleo), Namíbia (gás) etc.

Ok, as condições para o sucesso do programa são excelentes e talvez não encontram paralelo em outros países. A África do Sul quase não tem dívida externa (apenas US$ 900 milhões) e há muita gente interessada em investir no país, graças à credibilidade da transição. As reservas minerais (ouro, diamante, urânio) estão entre as maiores do planeta. Agora, o eixo do plano econômico é dinamizar os investimentos públicos com obras sociais, o que também contribuiria para diminuir o desemprego, hoje na casa dos 2,5 milhões de pessoas. Paulada no neoliberalismo. Se isso não é fazer uma revolução (ainda que não haja a tomada do Palácio de Inverno nessas terras bronzeadas), o que será então?

O projeto goiabada com queijo de Mandela abre ainda grandes perspectivas para o conjunto da África. Um mercado comum envolvendo os vizinhos é só questão de tempo. Logo começarão as discussões sobre um mercado global da África, o que certamente não agradará a muitos exportadores tradicionais de bens para o continente.

Em tempo: o CNA põe muita fé na vitória de Lula no Brasil. Quadros de primeiro time, como Jeremy Cronin dirigente do CNA e do PC - não perdem chances de fazer perguntas sobre o PT (Quem ganhou a convenção nacional? Como anda a turma do Genoino? Lula conseguiu reunificar a Articulação?). A idéia é que a África do Sul com Mandela, o Brasil com Lula, além de eventuais vitórias de forças de esquerda no México e no Uruguai, alterem as relações de força entre o Primeiro e o Terceiro Mundo. Essa articulação pode não ser a Quarta Internacional nem funcionar como farol do socialismo perdido. Mas que vai dar samba, isso vai.

Jayme Brener é editor de "Brasil" da revista Isto É.

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