EM DEBATE

Uma ofensiva conservadora tem se manifestado na sociedade e no parlamento do país. O resultado de décadas de luta das mulheres está sob ameaça, conquistas podem ser subtraídas pela nociva mistura entre poder e religião

Conservadorismo ataca direitos das mulheres

Quem se importa com a vida dessas mulheres?

Câmara, mulheres e indiferença

A aliança entre o capitalismo e o patriarcado

Quem se importa com a vida dessas mulheres?

As mulheres brasileiras, sobretudo as mais jovens, estão tomando as ruas do país, promovendo o debate na sociedade e nas redes sociais. Esse movimento, que alguns chamam de “Primavera das Mulheres”, é reação aos retrocessos no campo dos direitos no mundo e que reverberam no Brasil, quando debatidos no Congresso Nacional. Do ponto de vista histórico e sob a óptica feminista, trata-se da representação concreta do quanto a questão de gênero está viva e as lutas se renovam.

Desde o século 18, quando mulheres se mobilizaram para reivindicar os seus direitos durante a Revolução Francesa, até o ano 2015, bandeiras feministas surgiram como resultado das lutas das mulheres contra as regras impostas pela cultura patriarcal e machista que formaram as sociedades.

Assim foi na manifestação das trabalhadoras por direitos, que acabaram queimadas, dando origem ao 8 de março como Dia Internacional da Mulher, e nas reivindicações pelo direito ao voto em diversos países do mundo. No Brasil, essa mobilização foi liderada por Bertha Lutz, que criou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminista, em 1922, marcando o pioneirismo do movimento no país. Também demos a nossa importante contribuição na resistência à ditadura militar e na conquista da redemocratização.

Muitos são os exemplos, mas quero destacar o episódio das irmãs dominicanas Mirabal – Patria Mercedes Mirabal, Minerva Mirabal e Antônia Mirabal –, conhecidas como Las Mariposas, que lideraram um grupo em oposição à ditadura de Rafael Trujillo e, por isso, foram presas e torturadas várias vezes. Mesmo assim, seguiram denunciando o regime ditatorial, até serem violentamente assassinadas.

Com a morte das irmãs, o ditador Trujillo pensou ter se livrado de suas mais ferrenhas opositoras. Entretanto, o efeito foi contrário: a morte das irmãs causou grande comoção na República Dominicana e fez aumentar consideravelmente o apoio aos ideais de Las Mariposas. A reação popular elevou a rejeição ao regime e culminou com o assassinato de Trujillo em maio de 1961.

Já a data do assassinato de Las Mariposas, 25 de novembro de 1960, ficaria marcada, anos mais tarde, como o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher. O massacre das três irmãs na República Dominicana resultou na mobilização dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, abarcando o período de 25 de novembro até o Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro. É um grito para que nenhuma mulher seja violentada ou assassinada pelo fato de ser mulher.

O cenário tem se repetido em vários países através dos tempos: uma ação repressora contra os avanços dos direitos a uma grande primavera da liberdade.

As mulheres que hoje tomam as ruas e reivindicam a garantia dos direitos conquistados, bem como os necessários avanços, escrevem importantes páginas dessa história e demonstram muito claramente que as nossas pautas não podem jamais ser dadas como superadas.

O patriarcado possui raízes fortes e poderosas e mostra sua força e vitalidade em diferentes momentos. Um exemplo absolutamente concreto é a representação política das mulheres no país. De um lado, representamos mais da metade da população. De outro, ocupamos menos de 11% das cadeiras do Congresso Nacional. Essa disparidade revela o nível de exclusão a que as mulheres brasileiras ainda estão submetidas, mesmo após tantas lutas. E o resultado dessa sub-representação é justamente o avanço de legislações que vão na contramão dos nossos direitos.

No campo da autonomia econômica, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014 revela que, embora tenha ocorrido uma diminuição da desigualdade salarial entre homens e mulheres, estas ainda ganham 74% do que recebem os homens, mesmo sendo mais escolarizadas.

O Projeto de Lei no 5.069/2013, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, “tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto”. Isso significa criminalizar a adoção de pílulas do dia seguinte por mulheres vítimas de estupros. No Brasil existe a Lei no 12.845, de 1º de agosto de 2013, que universaliza o atendimento a todas as mulheres vítimas de violência sexual, em todos os hospitais do SUS e conveniados, e prevê também a anticoncepção de emergência em, no máximo, 72 horas. A lei está em vigência e tem demonstrado sua eficácia inclusive na prevenção de gravidez decorrente de estupro.

Portanto, o PL 5.069 é um retrocesso, mas acredito que o plenário da Câmara reverterá a decisão.

Se já vivemos um considerável atraso no que diz respeito a legislações no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o projeto representa muitos passos atrás. Sob um biombo de “defesa da vida” desprezam a vida das mulheres, sobretudo das que são vítimas de violência sexual e que muitas vezes acabam mortas como resultado de práticas absolutamente inadequadas de aborto. Reitero a pergunta: quem se importa com a vida dessas mulheres?

Tenho a convicção de que as jovens que ocupam as ruas e as redes sociais se importam e fazem a diferença neste momento da história nacional, em que se tenta por vários meios um retorno à idade das trevas. O respeito aos direitos de cada pessoa, sobretudo a garantia do seu exercício, é um princípio fundamental de uma sociedade que preza pelos direitos humanos, o respeito às diferenças e o diálogo.

Quando nos defrontamos com episódios cotidianos de racismo, sexismo, com a negação dos direitos de pessoas LGBTs – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais –, e com tantas barreiras colocadas para a ascensão das mulheres, constatamos que a mobilização por direitos tem de ser permanente e constante.

O clima de ódio que assola o mundo é o significado real da intolerância com os avanços democráticos e a liberdade de escolha alcançados no século 21 e em especial em 2015.

Eleonora Menicucci é secretária Especial de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos

Câmara, mulheres e indiferença

O Brasil vive um momento ímpar de sua história – de destilação de ódio e preconceitos. É como se ao longo de décadas as diferenças, a covardia, a discriminação, o racismo, o sentimento de superioridade de uns sobre os outros, a banalização da vida tivessem sido  acomodados sob a máscara do país da diversidade, da alegria, do respeito às diferenças, da multirreligiosidade. E nesse desvelar de intolerância(s) encoberta(s), são muitas as vítimas, e, mais uma vez, as mulheres são o alvo predileto: a uma velocidade incomum à rotina da Câmara Federal, novos projetos que violam os direitos das mulheres avançam enquanto outros que as beneficiam permanecem à espera de serem incluídos na pauta de votação.

Ao pesquisar na página da Câmara Federal, constata-se que o número de proposituras sobre mulheres é de 1.812 projetos, dos quais 1.412 já arquivados. Dos quatrocentos projetos em tramitação, quarenta estão aguardando para entrar na pauta de votação. Alguns bem recentes, como o Projeto de Lei nº 622/2015, que “dispõe sobre a proibição do uso de recursos públicos para contratação de artistas que, em suas músicas, desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres a situação de constrangimento, ou contenham manifestações de homofobia, discriminação racial ou apologia ao uso de drogas ilícitas”; e o Projeto de Lei nº 290/2015, que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, para dispor sobre o direito de regresso da Previdência Social perante o agressor”.

Não há apenas projetos de 2015 aguardando, existem outros na fila há mais tempo: o PL 3.829, que “dispõe sobre a estabilidade provisória no emprego do trabalhador cuja companheira estiver grávida”, entrou em tramitação em 1997, e o PL 6.009, apresentado em 2013 pela CPMI “Violência contra a mulher”, que “altera o art. 16 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para vedar a realização de audiência ou qualquer outro ato oficial em que se inquira o interesse da ofendida em renunciar, sem sua prévia e espontânea manifestação”. Há os que chegaram recentemente e os que estão lá há anos e que beneficiam e/ou aprimoram conquistas já alcançadas pelas mulheres após décadas de lutas. Porém, desde o início da atual legislatura, a pauta parece priorizar projetos que afetam efetivamente a vida da mulher, restringem ou extinguem direitos duramente conquistados.

Essa “aparente” priorização não é uma infeliz obra do acaso, até porque na Câmara Federal nada é por acaso. A aprovação ou não de um projeto de lei depende dos muitos interesses representados por cada parlamentar, que geralmente não são os da coletividade, mas de grupos. E nessa legislatura, particularmente, se formou e se destaca um novo grupo: o daqueles que atuam para substituir o Estado laico pelo religioso. Com esse propósito, se articulam e se inserem no debate – que deveria ser político – com o discurso da moral religiosa em vez das garantias constitucionais, das liberdades individuais, da ética. Uma Câmara retrógrada, conservadora, que se apropria indevidamente da força de um poder para minar, corromper, distorcer a sua função e colocá-lo a serviço de suas crenças é o que se vê. Exemplo disso é a recente aprovação do PL 5.069/2013 pela Comissão de Constituição e Justiça.

Esse projeto dificulta o aborto legal em caso de estupro, veda as instituições públicas de fornecerem informações às mulheres vítimas de violência sobre procedimentos que possam evitar uma gravidez, proíbe a pílula do dia seguinte, propõe que os profissionais de saúde que orientarem as mulheres sobre procedimentos adequados para não correr riscos em virtude de aborto sejam punidos, dentre outras medidas criminalizadoras. O PL não só estabelece novas barreiras como dificulta o acesso que mulheres vítimas de violência sexual já tinham garantido para se prevenir de uma gravidez fruto de estupro.

Ao apresentar o projeto, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), os doze deputados que assinaram a propositura e os membros da Comissão de Constituição e Justiça que o aprovaram demonstraram indiferença com a violência, o preconceito e o machismo que ainda permeiam a nossa sociedade. Ignoraram que, até hoje, mulheres são tratadas como objeto de satisfação sexual e/ou como brinquedos manipuláveis por indivíduos violentos, machistas, conservadores que tentam atestar seu valor e força por meio da violação dos direitos e da dignidade de uma pessoa do sexo feminino. Esses parlamentares agem por conveniência porque, provavelmente, foi por conveniência que foram eleitos e somente assim conseguem se manter onde estão.

Se agem por conveniência ou por convicção é uma reflexão que cada um tem de fazer com senso crítico e ético. O que não pode, não é justo e não deve ser tolerável é que essas pessoas eleitas para elaborar ferramentas que aprimorem a vida, a liberdade, a igualdade, a justiça social, a democracia se utilizem de seus mandatos para impor suas doutrinas, não com argumentos, ensinamentos, acolhimento, mas com a manipulação de leis. Não pode ser admissível que se aproveitem da força dos instrumentos políticos, que devem estar a serviço da coletividade, para impor a uma sociedade ampla e diversificada valores pessoais.

A história e os acontecimentos atuais têm exposto o quão nocivo é para a humanidade a mistura entre poder e religião. Ambos têm espaço, força e um papel que devem ser mantidos separadamente para que a população possa extrair o que cada um tem de melhor. É preciso agir para que nossos parlamentares atentem para isso. É preciso continuar agindo para que o conservadorismo machista e misógino que impera atualmente não resulte em retrocesso histórico.

Laisy Moriére é secretária Nacional de Mulheres do Partido dos Trabalhadores

A aliança entre o capitalismo e o patriarcado

Este artigo se propõe a compartilhar reflexões individuais e outras produzidas pela Marcha Mundial das Mulheres como espaço de ação política e instrumento da luta das mulheres. Pretendo identificar as dinâmicas da relação entre o conservadorismo e a crise considerando três eixos de articulação entre o capitalismo e o patriarcado: o trabalho, o território e o corpo.

Há algum tempo nós feministas temos falado que há uma onda conservadora em nosso país. O Congresso hoje se debruça sobre propostas de lei que atacam liberdades e direitos individuais, como são o Estatuto do Nascituro, que atribui direitos ao conjunto de células em formação em detrimento da mulher, e o Projeto de Lei nº 5.069/13, de autoria do atual presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que restringe o atendimento a mulheres vítimas de violência sexual e seu acesso a medicamentos como a pílula do dia seguinte e o coquetel anti-DSTs. O Estatuto da Família, que compreende como família apenas a união entre homem e mulher, ignora os outros arranjos formados por casais homoafetivos e tantas outras relações familiares possíveis em um contexto de pouca responsabilização masculina pelo cuidado com seus filhos.

Esses projetos se coordenam com outras iniciativas de retirada de direitos coletivos, como o PL 4.330/04, conhecido como PL da terceirização; a redução da maioridade penal; o PL 3.722/12, que pretende revogar o Estatuto do Desarmamento; a PEC 215, que transfere para o Congresso a autoridade sob o processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas; e o Código da Mineração, entre outros.

Essa avalanche se dá de forma coordenada entre a política, a economia, a cultura e a sociedade. Isso significa que mais do que uma lista de projetos de lei e emendas constitucionais de caráter retrógrado tramitando no Congresso, há uma movimentação comum desses setores conservadores, cujos posicionamentos gradativamente ocupam espaço na sociedade e na economia.

A crescente onda de conservadorismo se manifesta nos espancamentos públicos de jovens negros como forma de fazer “justiça com as próprias mãos”, no crescimento da militarização da vida cotidiana e da ordem pública; ou na opinião de 48% dos jovens entrevistados pelo Ipea, os quais “acham errado que as mulheres saiam sozinhas com os amigos, sem a companhia de seu parceiro”.

Ao compreender que o patriarcado também é um sistema que estrutura o capitalismo, vemos que o avanço do conservadorismo é funcional e essencial à reorganização da vida demandada pela crise econômica. Em outras palavras, a engrenagem do capitalismo e do patriarcado precisa se reajustar a partir da crise que se instala no país, e o conservadorismo azeita essa dinâmica.

David Harvey nos oferece um instrumento útil para entender esse processo ao explicar que o capital se reorganiza ampliando suas fronteiras e capacidade de acumulação. Essa dinâmica ele nomeia como “acumulação por despossessão”. A acumulação por despossessão é fruto da expropriação de direitos do outro, sejam individuais, coletivos e/ou da natureza, através da qual o capitalismo expande suas margens e passa a mediar pelo mercado aquilo que antes não pertencia a essa esfera. Por exemplo, bens comuns da natureza como a água, que antes era de acesso livre, passam a ser quantificados e precificados pelo mercado.

A partir de uma leitura feminista desse contexto, podemos identificar que o conservadorismo, ao “sacralizar” a desigualdade entre mulheres e homens, é funcional à aliança entre o patriarcado e o capitalismo. Se de um lado a crise encontra mulheres e homens em pontos de partida muito distintos e desiguais, de outro trabalha para refuncionalizar papéis tradicionais e estabelecer novas dinâmicas de apropriação do trabalho, dos corpos e dos territórios.

O trabalho

A divisão sexual do trabalho se expressa de forma sistêmica na esfera da produção, da reprodução e na articulação entre ambas. A partir da divisão e hierarquia entre o que é trabalho de homem e o que é trabalho de mulher e da invisibilidade e marginalidade da tarefa de sustentabilidade da vida humana, exercida quase exclusivamente pelas mulheres, o sistema econômico apropria-se do trabalho gratuito das mulheres e o sistema político organiza a subordinação e exclusão das mulheres de modo a sustentar essa divisão (Paradis; Roure, 2015, p. 177).

Na esfera da produção, a reorganização passa pelo aumento da precariedade e do desemprego. A taxa de desemprego nacional levantada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE,  já beira os 9% (terceiro trimestre de 2015). Ao olhar de perto, veremos que esse número revela também desigualdades de raça e sexo. Na cidade de São Paulo, a taxa de desemprego entre as mulheres negras chega a 15,5%, enquanto a dos homens brancos é de 10,3%. As mulheres são as primeiras a serem despedidas em um contexto de recessão econômica, e a maioria delas está empregada nas atividades mais precárias. A terceirização nas atividades fim está intimamente ligada à precarização do trabalho, e é parte das estratégias de reduzir o custo das mercadorias e o oferecimento de serviços, criando arranjos para a externalização de etapas do processo produtivo a outras empresas (Pires; Silva, 2015).

A demanda do mercado e de seus representantes por “alterações radicais” na atual política econômica passa por desvincular as receitas de direitos sociais – originários da Constituição de 1988 – e fim da política de valorização do salário mínimo (Dieese, nov. 2015). Isso afeta diretamente as mulheres, já que são maioria entre os mais pobres e, consequentemente, entre os mais dependentes das políticas públicas colocadas em questão pelos planos de ajuste. Exemplo disso é que do total de famílias inscritas no Cadastro Único, exigido para se acessar políticas de assistência, 88% são chefiadas por mulheres.

Mas se há cortes nas políticas de saúde e educação, quem será responsável por cuidar dos enfermos e das crianças que não irão à escola? Com a diminuição da renda familiar, é preciso incorporar ao trabalho doméstico atividades que antes estavam terceirizadas para o mercado. De quem se espera essa contribuição? O tempo das mulheres aparece como uma variável de ajuste, como um recurso disponível, ou mesmo como um colchão para amortecer os impactos da reorganização econômica.

Em suma, a transferência de custos da produção capitalista às mulheres e ao trabalho reprodutivo de cuidados que realizam acaba sendo parte do ajuste: são elas as gestoras, dentro do espaço doméstico, da precariedade. A exploração do tempo e do trabalho das mulheres, combinado com a desresponsabilização do Estado e dos homens com esse trabalho, explicita uma crise também no campo dos cuidados.

A crítica feminista ao modo de produção e reprodução da vida no sistema capitalista afirma que, mais do que a inclusão de contingentes de mulheres no sistema, é necessário desmontar o caráter racista e patriarcal do Estado, calcado na divisão sexual do trabalho.

O território

Legitimado por um modelo de desenvolvimento predatório, está em curso um processo de cercamento dos territórios e de controle privado sobre bens comuns. Na expansão das fronteiras do capitalismo, recursos que antes estavam disponíveis para todos de igual forma passam a ser expropriados por empresas transnacionais e grandes corporações. A ação desses grupos privados se coordena com a tramitação, no Congresso Nacional, do Código da Mineração e da PEC 215.

Os impactos de grandes projetos de infraestrutura e de exploração de recursos hídricos e minerais deixam marcas indeléveis sobre a natureza e a vida das comunidades que ali vivem. Os efeitos da falta d’água e de terra para plantar são sentidos diretamente pelas mulheres, que seguem sendo as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados, por tomar conta das hortas e dos animais e pelo manejo de conhecimentos tradicionais.

Nos últimos anos, diversos processos de luta social têm denunciado e resistido ao controle privado e predatório do capital sobre os territórios e dos bens comuns. É o caso da Chapada de Apodi, no Rio Grande do Norte, ameaçada pelo projeto do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) de construir o Perímetro Irrigado de Santa Cruz. Para isso, o DNOCS pretende desapropriar mais de 800 famílias da agricultura familiar da região para entregar as terras a cinco empresas do agronegócio. Esse caso é emblemático da luta das mulheres, que têm protagonizado a resistência e liderado mobilizações públicas como as realizadas durante a 4ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres na região.

Outros exemplos que tomaram conta do debate nacional são a transposição do rio São Francisco, as hidrelétricas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, a pressão das empresas de extrativismo sobre territórios tradicionais e até o recente desastre em Minas Gerais, que explicita o absurdo do projeto de mineração e sua inerente contradição com vida.

Nas regiões em que há essa atividade, a demanda predatória do mineroduto para transportar os minérios para o porto mais próximo escasseia a água para as pessoas que ali moram. Mesmo que o empreendimento não cruze uma área específica onde vive uma comunidade, a vida se torna inviável, já que a água deixa de estar disponível em nome do transporte de minérios.

A acumulação gerada pela exploração dos territórios e bens comuns mostra o conflito capital/vida reorganizando antigas dinâmicas de exploração dos recursos naturais. A crítica feminista tem se colocado na defesa de um modelo de produção e consumo organizado a partir da vida e não do lucro.

O corpo

O modo de produção e consumo capitalista demanda a regulação permanente dos corpos para que estejam aptos e disponíveis para longas jornadas de trabalho, uma vida hipersexualizada que alimenta o consumo, o mercado da prostituição ou mesmo para alienação do desejo.

O conservadorismo, ancorado na ordem patriarcal, tramita projetos de lei no Congresso, utiliza púlpitos e palanques, para controlar os corpos, em especial os das mulheres, limitando as decisões sobre a sexualidade e a vida.

As mulheres padecem na clandestinidade por não terem garantido o direito a decidir sobre seus corpos. Estima-se que 7,4 milhões de mulheres no Brasil já abortaram. Por trás do debate do aborto há uma tutela constante das mulheres, retirando delas toda e qualquer autoridade moral sobre seus próprios corpos. O projeto de lei do deputado Eduardo Cunha, o PL 5.069 já citado, ao exigir boletim de ocorrência e exame de corpo de delito não reconhece na voz das mulheres a única “prova” necessária para dar início ao atendimento médico.

O último Mapa da Violência Contra as Mulheres (2015), publicado pela Flacso, revelou que, durante 2013, 4.762 mulheres foram assassinadas (treze por dia), e as negras foram alvo prioritário desses homicídios. Segue sendo natural estuprar, maltratar, insultar e ofender, tanto por parte dos que perpetram tais atitudes, como por parte de nós mulheres, que não estamos acostumadas a identificar as manifestações de violência como tal.

O número de assassinatos chama muito a atenção e gera profunda indignação, entretanto é preciso dizer que as mulheres querem estar vivas para uma vida que valha a pena ser vivida, com dignidade, liberdade e direito a ter seus projetos.

Algumas considerações para terminar

A luta das mulheres por transformações não é algo linear, que avança de maneira uniforme até a igualdade completa. A história nos mostra que há momentos de mais liberdade e igualdade e outros de retrocessos, pois as dinâmicas do capitalismo e do patriarcado se atualizam.

Isso coloca o desafio de conectar a maior presença nos debates públicos dos temas históricos do movimento de mulheres, como a violência, com um processo mais amplo de transformações.

As liberdades individuais não podem ser desassociadas da ideia radical de justiça social, sob pena de se fazerem funcionais ao modelo. Ou, como nos ensina Naila Kabeer, só há reconhecimento com redistribuição, e só há redistribuição efetiva ao reconhecer as desigualdades estruturantes do atual modelo de produção e consumo.

Sarah de Roure é mestre em Desenvolvimento e Cooperação internacional pela Universidade do País Basco e militante da Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo

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