EM DEBATE

O projeto do Ministério da Cultura que cria a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), para regular e fiscalizar os mercados de cinema e TV, tem gerado polêmica e discordância entre os setores interessados. Promovendo o debate na revista publicamos artigos de Juca Ferreira, secretário-executivo do ministério, e de Paulo Thiago, cineasta e presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica e Audiovisual.

Ancinav: omissão ou missão?

Oportunidade histórica

Ancinav: omissão ou missão?

“O Estado nunca esteve à altura do fazer do nosso povo, nos mais

variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira.

É preciso ter humildade, portanto. Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. Sabemos muito bem que, em matéria de cultura, assim como saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes à lógica do mercado – que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte. Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance, da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos.”

(Gilberto Gil, ministro da Cultura, em seu discurso de posse, em janeiro de 2003)

 

O governo Lula herdou um Ministério da Cultura sem relevância, atrofiado institucionalmente, sem políticas abrangentes nem interferência significativa na cultura do país. O Estado renunciou cumprir sua missão e seu papel constitucional de formulador e executor de uma política capaz de promover o desenvolvimento cultural da sociedade brasileira. Simplesmente estava entregando essa tarefa ao mercado, aos departamentos de comunicação e marketing das empresas.

Sem menosprezar a importância e o papel da ação empresarial para a cultura, chegamos a uma situação absurda, pautada pela ausência do Estado e por ações culturais operadas prioritariamente pelo balcão, por favorecimentos e clientelismos de toda ordem.

Apesar de todas as dificuldades, hoje o Estado começa a retomar seu lugar e seu papel na vida brasileira. É nesse contexto, portanto, que se situa o debate sobre a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav).

Para enriquecer o debate sobre a regulação econômica do setor audiovisual brasileiro, gostaria de sublinhar alguns aspectos para melhor contextualizar o debate.

Novos paradigmas

As razões do descaso progressivo dos governos anteriores frente à cultura brasileira são múltiplas. Começam com a dificuldade de definição do papel do Estado na sociedade e sua importância para o desenvolvimento cultural, o que torna difícil, se não impossível, a criação de políticas realmente eficientes e lúcidas, a partir do interesse público, e a compreensão dos interesses nacionais no mundo globalizado.

A desproporção de importância entre a economia e a cultura e demais políticas sociais é histórica em nosso país. Exatamente por falta dos referenciais sociais, as altas taxas de desenvolvimento econômico que o Brasil experimentou no século passado – entre as maiores do mundo – foram extremamente impactantes para nosso patrimônio natural e para a qualidade de vida dos brasileiros, em suas necessidades materiais e culturais.

A visão neoliberal, hegemônica no Brasil e em boa parte do mundo depois da queda do Muro de Berlim, só agravou essa alienação entre crescimento econômico e outras dimensões da vida social. É absolutamente coerente que um governo de inspiração neoliberal tenha enfraquecido e esvaziado sistematicamente a dimensão cultural e, conseqüentemente, o ministério responsável pelo estímulo e apoio à dimensão criativa e inovadora da sociedade brasileira.

Mas hoje, em todo o mundo, a própria noção de crescimento econômico está em crise. Nesta fase da economia mundial, a produção de conceitos, processos culturais e bens simbólicos torna-se o centro da disputa hegemônica (política e econômica). As novas teorias do desenvolvimento, com a perspectiva de sustentabilidade, incorporam a cultura como aspecto decisivo do desenvolvimento. Recentemente, foi publicado o Relatório de Desenvolvimento Humano – 2004, da ONU, que destaca o papel estratégico da cultura na atuação dos Estados nacionais e na avaliação da qualidade de vida e do Índice de Desenvolvimento Humano das diferentes sociedades e comunidades.

Da omissão à missão

É nesse cenário que a política cultural do governo Lula tem de ser compreendida, como o ministro Gil afirmou em seu discurso de posse: “Como parte do projeto geral de construção de uma Nação realmente democrática, plural e tolerante”. Claro que não cabe ao Estado fazer cultura, mas sim promover e estimular o desenvolvimento cultural da sociedade. O governo tem chamado para si uma responsabilidade intransferível. É uma questão de missão e compromisso público com o desenvolvimento cultural do país e com o bem-estar da população. Trata-se de uma compreensão da cultura como direito de cidadania. Direito de todos os brasileiros.

Criar, fazer e definir obras, temas e estilos é papel dos artistas e dos que produzem cultura. Escolher o que ver, ouvir e sentir é papel do público. Criar condições de produção, difusão, preservação e livre circulação, regular as economias da cultura, democratizar o acesso aos bens e serviços culturais, isso é papel do Estado.

Nesse contexto, nos chama a atenção a reação inicial, digamos, estigmatizante, frente ao anteprojeto de lei que cria a Ancinav. “Xenófobo, autoritário, stalinista, burocratizante, centralizador, leviano, estatizante, dirigista, controlador, intervencionista, chavista e soviético”. Esses foram alguns dos termos estampados na cobertura jornalística, que trouxe uma série de críticas sem embasamento em nossas reais propostas. Tentaram confundir regulação econômica com regulação artística e ameaça à liberdade de criação.

Num primeiro momento, ficamos sem chance de defesa, quase sem acesso aos meios de comunicação. A proposta de uma agência abrangente foi salva pelo carisma e pela legitimidade pública do ministro Gil, que pôs sua biografia em jogo – toda comprometida com a liberdade absoluta de criação – para provar que seu ministério não assinou e nunca vai assinar qualquer projeto que, mesmo de leve, venha a ser utilizado contra a liberdade de expressão.

Esse bombardeio causou danos à imagem da futura agência. Criaram-se estigmas. Mas, apesar dos pesares, o fato deve ser visto com naturalidade. A mídia não partiu do nada. Havia um rascunho que suscitava problemas de interpretação. Depois, quando começaram a divulgar o que de fato estamos propondo, abriu-se um debate histórico, talvez um dos fatos mais relevantes da vida democrática brasileira.

Mas, deixando o passado em seu devido lugar, o debate ganhou a luz que merecia. Seria salutar para a democracia brasileira se todas as políticas públicas e questões do país pudessem ser amplamente cobradas e discutidas pelos meios de comunicação assim como está sendo a Ancinav.

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Do palpite aos bastidores

O anteprojeto de lei propõe uma regulação econômica e amplia para todo o setor audiovisual a abrangência da regulação, hoje tratada apenas setorialmente. Na contramão de diversas experiências contemporâneas e bem-sucedidas, o Brasil ainda possui leis e instituições defasadas em pelo menos quarenta anos diante do cenário mundial.

A regulação vem, historicamente, no sentido de afirmar as nações como pólos produtores, e não apenas consumidores. Os Estados Unidos foram os primeiros: instituíram marco regulatório em 1908, o que explica muito de seu domínio no mercado mundial. Thomas Edison convenceu o governo americano a impor barreiras ao cinema francês, majoritário na época, e virou o jogo no mercado interno. Décadas depois, já dominantes no mercado global, os americanos estabeleceram, internamente, cotas de tela para o conteúdo produzido pelas próprias empresas de tevê (limitando em até 30%).

A Itália e a Alemanha têm marco regulatório desde 1920. A França, desde 1946, e continua até hoje taxando seus ingressos (recursos que são investidos em mais filmes e salas de cinema). Na Índia, o setor audiovisual merece tratamento estratégico pelo Estado desde a libertação dos ingleses.

Em todos esses países, vigoram não apenas dispositivos regulatórios, mas também instituições abrangentes que tratam do audiovisual como uma economia integrada e convergente, acompanhando a evolução das novas plataformas tecnológicas.

Nesse cenário de transformações tecnológicas e econômicas, em que países buscam rever e atualizar suas leis (de cinco em cinco anos, no caso do Japão), o Brasil vive um anacronismo radical. Vinte anos de ditadura e pouco mais de uma década de liberalismo vulgar aumentaram a confusão e a dificuldade do Estado brasileiro de se legitimar socialmente na criação de instituições e políticas efetivas de regulação.

Nossa legislação para o setor data do Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (portanto, de antes do golpe de 64) do Decreto-Lei de 1967 (portanto, em pleno período autoritário) e de outros acréscimos após a ditadura. É quase meio século de atraso, letargia e incapacidade de agir frente à nova realidade do setor. A mais recente lei para o assunto é de 1995, a chamada Lei do Cabo.

Quero chamar a atenção para um fato crucial. Além de defasada e fragmentada, essa legislação dá conta apenas de uma dimensão: as concessões de espaço eletromagnético, autorizações de uso de antenas, infra-estrutura, redes, objetos regulados pela Anatel e pelo Ministério das Comunicações. A produção de conteúdos, a circulação pelas diversas plataformas e suportes, assim como o acesso a esses conteúdos pela população, continuam órfãos de políticas.

A partir de agora, o desafio do país é se afirmar como sujeito produtor de suas imagens e narrativas, e não apenas como pólo de escoamento. A demanda por conteúdo, em todo o mundo e no Brasil, irá crescer exponencialmente nos próximos anos. Diante da TV digital, da fusão entre tevê e internet e das novas janelas como o celular, o Brasil precisa se antecipar e se modernizar.

O Ministério da Cultura encontrou na sociedade um embrião de visão estratégica para o setor. Há tempos, representantes do audiovisual discutem e defendem a criação de uma agência regulatória com essa finalidade. Não é por acaso que esta já é a terceira iniciativa de criar uma agência com essa abrangência; as outras duas se deram na gestão FHC.

No III e no IV Congresso Brasileiro de Cinema (1998 e 2000), por exemplo, muitos dos cineastas, representantes da televisão, da distribuição e da exibição defenderam explicitamente não só a criação de uma agência regulatória, mas também muitas das taxas que hoje propomos. Taxas a ser recolhidas do setor e reinvestidas nos pontos que hoje impedem seu desenvolvimento.

Síndrome do cangaceiro

Apenas por um ângulo imediato, é verdade que o cinema brasileiro vive um boom. Existe, de fato, um interesse renovado do povo brasileiro por nossos conteúdos audiovisuais. Mas estamos ainda longe de consolidar uma economia forte. Quase 92% de nossos municípios não têm sequer uma sala de cinema. Ir ao cinema tornou-se uma experiência cara. Só 8% dos brasileiros têm esse privilégio. Nem sempre os filmes nacionais têm acesso ao DVD, ao vídeo e aos canais abertos e fechados de tevê.

O sucesso recente do cinema nacional trouxe novos espectadores e provou sua qualidade. Mas, nos bastidores, sabe-se que o sucesso internacional de um filme brasileiro rentabiliza, freqüentemente, a empresa estrangeira que o distribuiu. Trata-se de uma aliança entre as majors americanas e poucos produtores locais, que lançam seus filmes sem capitalizar as produtoras nacionais.

Parece que sofremos ainda a “síndrome do Cangaceiro”. Grande sucesso internacional da empresa paulista Vera Cruz, nos anos 50, O Cangaceiro, de Lima Barreto, deu lucros, menos para quem o produziu. Tal fato colaborou com a falência deste que foi um dos maiores empreendimentos capitalistas (de risco efetivo) na atividade cinematográfica. A Vera Cruz emplacava seus sucessos, mas, nos bastidores, era aniquilada por um paradigma econômico injusto e predatório.

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Convergência econômica e tecnológica

No setor audiovisual, o cenário econômico é de reordenamento e aumento da concentração. Grandes companhias com tradição restrita na prestação de serviços de telecomunicação hoje “fagocitam” empresas de cinema, comunicação, jornalismo e entretenimento, formando conglomerados interessados em ocupar novos mercados nacionais.

São megaempresas que se aliam a seu Estado rico de origem, ou a seu Estado pobre de destino, e atuam politicamente para derrubar o que elas chamam de barreiras. Lutam, em seu país, para flexibilizar leis antiverticalização. Faz todo o sentido. Para quem ocupa posição dominante no mercado mundial, o discurso neoliberal tem toda a coerência, como postura ideológica e estratégica.

Na prática, todas as megacorporações contam com o apoio ostensivo de seu governo para defender as regras que melhor as beneficiem entre os organismos intergovernamentais. E é preciso que se diga: isso é feito por intermédio de burocracias de Estado, altamente competentes e aguerridas, que utilizam para tanto todos os recursos de que dispõem.

Outro aspecto importante refere-se à televisão. Antes, o filme na sala escura era o rei da cultura de massas, hoje o posto é ocupado pelas tevês, que se tornaram um dos mais relevantes fatos culturais, talvez o mais importante do mundo. No Brasil, a tevê aberta reina quase absoluta no mundo audiovisual. É, de certa forma, um absurdo que nenhum ministro antes de Gilberto Gil tenha dado à televisão brasileira o reconhecimento que merece como agente cultural. A televisão é, como aponta o especialista Chris Barker, “a forma suprema de comunicação nas sociedades ocidentais”1.

O cinema depende cada vez mais do vídeo e do DVD, da televisão aberta, da tevê a cabo, das telas dos celulares, enfim, de uma complexa teia de veiculação e distribuição de conteúdos audiovisuais. Hoje, mais de 70% da renda de um filme tende a se realizar fora das salas de exibição.

O futuro chegou com a revolução digital e trouxe, com ele, grandes oportunidades e novos modelos de negócio: a possibilidade de investimento das empresas telefônicas em conteúdos audiovisuais (para transmitir por celular, internet e novas janelas), por exemplo, poderá trazer robustos investimentos para a produção de filmes e vídeos.

Reforçando a integração no plano econômico, a revolução digital vem avalizando mudanças de paradigmas. A pergunta a fazer agora é se o poder público terá mecanismos regulatórios para garantir o impulso democratizador inerente a essas mudanças tecnológicas. De forma desregulada, essa revolução pode ter efeito contrário ao esperado. O país pode se fragilizar ao ignorar essa realidade. Tentar evitar a convergência tecnológica nos parece uma intenção vã e reacionária.

Nesse sentido, uma política pública eficiente precisa entender o audiovisual em sua dualidade de arte e mercado e em sua abrangência econômica. Daí a necessária transformação de uma agência voltada apenas para o cinema para um órgão regulador que dê conta de todos os elos da cadeia da circulação e veiculação dos conteúdos audiovisuais, a Ancinav.

Incentivos

O anteprojeto também provocou polêmica por suas taxações. Uma das propostas que vêm gerando resistência entre as empresas de televisão aberta é um artigo que fixa uma taxa sobre a compra de espaço publicitário em televisão, a ser paga pelos anunciantes.

A gratuidade da televisão brasileira só é viável porque existe a compra desse espaço, que move aproximadamente 15 bilhões/ano, apenas no Brasil. A cobertura jornalística deu espaço apenas às críticas sobre a taxa, sem nenhuma menção às razões e ao destino dos recursos.

Quase nada se comentou sobre as vantagens dos incentivos fiscais apresentados no projeto. Propomos incentivos para aumentar a produção de teledramaturgia e outros conteúdos em parceria com os produtores independentes, assim como incentivos para os anunciantes de filme brasileiro na tevê. Tais mecanismos induzem um modelo contemporâneo de parceria entre público e privado.

Essas medidas serão capazes de gerar um recurso significativo, que será devolvido ao mercado para fomentar a programação independente. Refiro-me a uma produção de baixo custo – e de qualidade – para as próprias tevês, que determinarão quando e onde exibir esses produtos. Qual é o drama, afinal? Talvez seja porque, na contramão das democracias contemporâneas, as tevês brasileiras não têm tradição de veicular produção independente nem de valorizar, através da produção regional, a diversidade cultural das várias regiões do Brasil.

Nosso sistema de produção televisiva é concentrado em grandes parques de produção, caros e centralizados em poucos pólos no eixo Rio–São Paulo. Do Oiapoque ao Chuí, quase tudo o que 180 milhões de brasileiros consomem vem de meros cinco estúdios. Nossas tevês nunca adotaram um princípio democrático – capítulo das constituições de todo o mundo, inclusive da brasileira – nem um modelo negocial bem-sucedido, já testado em diversos países.

Como reação ao projeto de lei que cria a Ancinav, as tevês têm dito que sua fatia de mercado vai muito bem, obrigada. Quem precisa de regulação, dizem, são o cinema e as empresas de serviços de telefonia. Na percepção das tevês, a transmissão de conteúdo via celular e internet deveria ser vetada ou submetida a seu controle. Querem regulação para os outros, e não para si. As empresas de tevê combinam velhos temores e preconceitos com exigências de proteção e regulação do nosso mercado audiovisual.

Para que a televisão brasileira possa se manter como provedora de uma das melhores teledramaturgias do mundo – e para que esse modelo se fortaleça e se amplie no Brasil para novos produtos e produtores – a Ancinav tem muito a contribuir.

Ao debate

O desafio de construir uma agência reguladora não é apenas deste governo, mas sim da nossa sociedade. A regulação do audiovisual é entendida na maioria dos países democráticos como pré-requisito importante – se não decisivo – para que uma nação soberana se afirme como tal.

É óbvio que um debate como esse envolve não apenas interesses públicos, mas fortes interesses corporativos e econômicos. Procuramos lançar as bases democráticas para a construção de uma política pública mais adequada à realidade e à correlação de forças em jogo.

O Ministério da Cultura não vem, como alguns têm dito, reinventar a roda, mas modernizar o mercado audiovisual e reparar suas deficiências, assim como romper com certos círculos viciosos. No entanto, a forma como esse processo vai se constituir faz parte de uma ampla discussão com a sociedade e representantes do setor audiovisual.

Não faremos nada por voluntarismo, mas pela demanda da sociedade. Estamos aqui para discutir e mediar os interesses do mercado e da sociedade. Esse é o nosso papel, a missão do Estado. Por isso, louvamos a disposição dos que têm vindo ao debate para aprimorar nossa proposta e convocamos a todos: quem vai fazer a Ancinav é o Brasil.

Juca Ferreira é sociólogo e secretário-executivo do Ministério da Cultura.

Nota

1.BARKER, Chris. Televisão, Globalização e Identidades. p. 20

Oportunidade histórica

A Califórnia é a quinta economia do planeta depois do Japão. Sua principal indústria é o cinema, junto com a informática. O cinema é a ponta do audiovisual, sua vitrine, no qual são criados e lançados os gêneros, as modas, os gostos, a motivação principal que atinge o inconsciente coletivo das multidões. A produção que nasce em Los Angeles ocupa 80% do mercado mundial. A indústria cultural é o segundo item (após a produção bélica) na balança de exportações dos Estados Unidos. O audiovisual representa o setor essencial da produção cultural, junto com a música de consumo. Esse negócio de grande magnitude não tem somente sua fantástica expressão econômica – tem importância ideológica, vende formas de pensar, sentir, agir e ser, para os cidadãos. Atinge a cidadania dos países. Roosevelt afirmava: “Com nossos filmes vão nossos produtos e a imagem da América”. A imagem, melhor dizendo, a filosofia política, o pensamento, as idéias. Portanto, o audiovisual é algo estratégico do ponto de vista não apenas cultural, mas sobretudo ideológico.

Essa é a razão pela qual as nações têm procurado fazer políticas defensivas, como a forte legislação francesa, e mesmo os próprios EUA, regulando as relações entre as empresas de produção e difusão do audiovisual. É um jogo geopolítico duro, pesado. Lida com relações de poder sobre a população dos países. Nesse sentido, a idéia de um órgão regulador, assim como de ações de fomento para a produção e difusão das imagens, é algo fundamental para o desenvolvimento de uma nação. O Brasil, que deseja se afirmar definitivamente no novo milênio, não o conseguirá se não investir e regulamentar o audiovisual. Daí a importância de um projeto como o da Ancinav, recentemente proposto pelo Ministério da Cultura (Minc).

O iluminista David Hume pensava que a história repetiria o que ocorrera até então: ciclos de barbárie e aprimoramento. Das visões por etapas do iluminismo, a filosofia partiu para o idealismo alemão, chegando a seu ápice na dialética hegeliana, com a concepção da mudança em direção ao absoluto. Virando de cabeça para baixo essa filosofia, Marx criou o materialismo histórico, ou a dialética da luta de classes, mas no qual impera o mesmo espírito: da concepção finalista e totalista, o futuro a ser criado de um mundo perfeito, completo, definitivo, o comunismo. Apesar das sucessivas experiências mostrando que a luta pela criação dessa “Cidade Perfeita”, como no poema de Carlos Drummond de Andrade, gerava, através de seus “fins que justificam os meios”, regimes políticos fechados, concentrações de poder e totalitarismos, o pensamento da esquerda não consegue abandonar esse sonho romântico, na raiz “idealista” e em seu caminho, em sua ação tática, de projetos absolutistas.

Por que ir tão longe para discutir esse projeto do Minc sobre a Ancinav? Porque, ao contrário dos processos políticos baseados na consulta e no debate amplo das bases, nas assembléias, em um pragmatismo que visa uma militância de resultados, como tem demonstrado o governo Lula como um todo (área econômica, educacional, social e mesmo na ação política), e com nosso presidente num ímpeto até se declarando “não ser de esquerda”, o projeto foi elaborado de forma fechada e tem uma visão “finalista e totalizadora, completamente abrangentee” da questão do audiovisual no país. Apesar de argumentar que as partes envolvidas foram ouvidas e que se trata de uma demanda histórica do setor, os fatos não estão bem equacionados.

A chamada “demanda histórica” nasceu no Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), órgão que depois se colocou literalmente contra a permanência da Ancine por um tempo na Casa Civil (algo decidido publicamente em seminário na Biblioteca Nacional organizado pelo PT, em novembro de 2002, com a presença de membros do comitê cultural do partido) e posteriormente contra a ida da Ancine para o Minc. Se formos levar em conta as tais “demandas históricas” do CBC, elas estão poluídas de contradições, incongruências e indefinições. Por outro lado, se houve consultas, é preciso formalizar.

Nosso órgão, o Sindicato da Indústria Cinematográfica e Audiovisual do Rio de Janeiro, que congrega os laboratórios, a infra-estrutura técnica, as empresas de publicidade e cerca de 80% das empresas produtoras responsáveis pelos 22% de ocupação do filme brasileiro no mercado de salas em 2003, jamais foi consultado oficialmente. Como presidente, fui convocado a Brasília em fevereiro de 2004. Após rápida explanação do representante do Minc sobre as linhas gerais do projeto – que taxava exibidores, distribuidores, televisão, e através de um artifício jurídico praticamente eliminava o artigo 3° das leis de incentivo, principal mecanismo usado pelas distribuidoras estrangeiras para financiar os atuais blockbusters nacionais –, comentei com André Sturm, presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica de São Paulo: “Já enfrentamos muitas brigas boas contra um ou dois adversários, mas contra tantos ao mesmo tempo será a primeira vez”.

Desse encontro nasceram mudanças reais no projeto apresentado posteriormente, mas as “consultas” se encerraram. Os técnicos do ministério elaboraram o projeto, que tinha inicialmente como agenda duas ou três reuniões do Conselho Superior do Audiovisual e seria apresentado pelo presidente Lula no mais recente Festival de Gramado, para ser enviado ao Congresso. O texto não era do conhecimento nem do comitê cultural do PT. O projeto então “vazou”, e as reações contrárias explodiram na mídia, esquentadas por manifestações de apoio. Criou-se o contencioso, e só meses depois começam as negociações com os setores afetados.

O encaminhamento inicial, que já provocou sinceras autocríticas, faz a Ancinav correr o risco de soçobrar no Congresso Nacional, onde estão solidificados os lobbies midiáticos, principais afetados pela idéia. Possibilitou manipulações político-partidárias, tendo sido até utilizado nas eleições pela oposição ao governo. O cinema serve agora de escudo do projeto contra as TVs e de escudo das TVs contra o Minc. Podemos perder uma grande e histórica oportunidade de implantar um órgão transformador, fundador de novas políticas públicas, tão necessárias para ampliar e democratizar a atividade. E acabar, pela necessidade urgente de negociações de última hora, gerando apenas uma nova Ancine ampliada, e não realmente algo inovador. Isso não só pela centralizadora condução da proposta, fora das linhas de ação clássicas da tradição política, mas principalmente por falhas estruturais no projeto, que se remetem às minhas reflexões filosóficas do início: totalismo, intervenção exagerada de fraca base e argumentação técnica, excessiva ideologização e a filosofia de querer resolver tudo ao mesmo tempo.

Lutamos para manter a Ancine na Casa Civil, em dezembro de 2002 (o que resultou até em dois decretos, o segundo corrigindo o primeiro), e depois agimos de forma permanente, decisiva, contra grandes maiorias radicais que não queriam a Ancine, o cinema, no Minc. Fomos vitoriosos (cineastas e produtores) com sua ida para o Minc, pois seria insanidade uma área cultural estratégica no Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior, voltado para a exportação, no qual o audiovisual se transformaria logo em “moeda de troca” nas negociações comerciais internacionais.

Portanto, agora se trata de negociar com paciência, o que vem declarando o ministro Gil e fazendo o secretário-executivo Juca Ferreira, que desejam o consenso, até porque não teriam aval do governo para enviar ao Congresso um projeto que nasça desse pandemônio que virou a política na atividade, levando a conflitos aparentemente insolúveis, a contenciosos adiados para a “batalha no Congresso”. As negociações, principalmente com a TV, que não passam somente pelas decisões do Conselho Superior do Audiovisual, terão de ser profundas, definitivas, sinceras, e não apenas conversas de cúpula aparentemente cordiais. Temos de torcer e ajudar para que tudo dê certo, corrigindo as distorções iniciais. E colaborar para que a Ancinav venha a corresponder às necessidades internacionais que a impõem, o contexto global que apontei.

Uma relação siamesa foi criada nos últimos anos entre produtores, a televisão hegemônica e as grandes corporações. É um fato irreversível. Não se trata mais de destruir, ou acabar com interesses estabelecidos. Trata-se de aprimorá-los, aperfeiçoá-los, dar uma feição legal e avançada à novidade que tem alavancado nosso cinema nos últimos anos, quebrando a espinha das tradicionais rejeições da classe média aos filmes brasileiros, na defesa dos conteúdos nacionais. Nesse sentido, o fortalecimento de grandes empresas de distribuição brasileiras é essencial, atinge a estrutura do sistema.

Mas o país surpreende, é inesperado e criativo, contradiz raciocínios rançosos: o casamento da produção cinematográfica com as chamadas majors (Fox, Warner, Columbia etc.) tem sido bastante positivo e eficaz, como já foi na música popular brasileira (Sony, EMI-Odeon etc.). É necessário avançar por etapas, acordos e confluência de propostas, algumas entre os atores da sociedade civil, mesmo sem a participação do Estado. Conciliação em terreno firme e concreto, o mundo real dos tempos em que vivemos, sem idealismos totalizantes ou movimentos sebastianistas e românticos.

Paulo Thiago é cineasta, presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica e Audiovisual (Sicav) do Rio de Janeiro, diretor de Jorge, um Brasileiro, Policarpo Quaresma, O Vestido.

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