EM DEBATE

O Projeto Calha Norte, elaborado durante o governo Sarney, em 1985, apresentava como objetivo principal promover a segurança e o desenvolvimento de uma faixa territorial localizada na Amazônia, tendo como limites as fronteiras com a Colômbia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. O projeto, entre outras justificativas, foi criado pela necessidade de proteger esse extenso vazio demográfico da cobiça internacional, de defender as regiões fronteiriças, em função da instabilidade dos países vizinhos, e de conter o tráfico de drogas e a evasão de riquezas.

Para algumas organizações indígenas e de esquerda trata-se de um projeto de militarização da Amazônia, concebido sem nenhuma participação dos povos da região e baseado nas tradicionais características da doutrina de segurança nacional da ditadura militar. Sem dúvida, um dos maiores problemas é a questão da demarcação das terras indígenas.

Para debater esse assunto, T&D convidou o coronel Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, e Antônio Carlos Queiroz, editor do jornal Porantim, órgão do Conselho Indigenista Missionário, (ver também em T&D nº6, o artigo "A Geopolítica no projeto Calha Norte", de Luzia Rodrigues e Paulo B. Schilling).

Defesa com democracia e desenvolvimento

Direito das nações indígenas violado

Defesa com democracia e desenvolvimento

O início da presença militar na Amazônia coincide com a sua conquista, em 1615, quando foi erguido o Forte do Presépio - que deu origem a Belém do Pará. Mas a primeira colônia militar só viria a ser instalada, em 1840, na região do rio Araguari (Amapá) - seguindo-se a instalação de outras em São João do Araguaia, São Pedro de Alcântara, Óbidos, Oiapoque e Tabatinga. Por sua vez, elas viriam a ser substituídas pelos pelotões de fronteira no século seguinte, quando a preocupação com a segurança da Amazônia tornou-se tão necessária quanto imediata.

De certo modo, caberia à geopolítica tornar a Amazônia objeto de reflexão no âmbito das Forças Armadas. Coube a elas justificar a necessidade de articular a Amazônia ao pólo mais avançado da economia brasileira, como recurso para defendê-la da cobiça internacional - porque já estavam presentes, segundo o discurso geopolítico, as ameaças de sua internacionalização. Nesse discurso, ela era considerada reserva estratégica para o projeto da grande potência. Ou seja, sem a Amazônia o Brasil dificilmente ingressaria no rol das grandes potências do século XXI, ao lado dos Estados Unidos, Japão, Europa, Rússia e China. Assim, tal discurso alertava para a necessidade de desenvolvê-la com oportunidade, tendo em vista afastar qualquer controle internacional sobre ela e, sobretudo, não retardar o ingresso do Brasil no clube das grandes potências.

Com a introdução dos direitos humanos e do meio ambiente na agenda internacional, pareceu para os militares que o futuro da Amazônia estava ameaçado - já que o governo brasileiro conduzia com negligência a solução da questão indígena e se omitia em face da destruição crescente do ecossistema amazônico. Pela lógica militar, havia alguma conspiração contra o Brasil, com o objetivo de internacionalizar a Amazônia, porque seria a via mais curta para as grandes potências se beneficiarem das riquezas naturais existentes nela. E essa ameaça já seria suficiente para justificar não só a retomada do desenvolvimento, mas, também, o fortalecimento do dispositivo militar na região. Ou seja, a Amazônia era um problema que tinha sua dimensão militar, exigindo a presença militar em sua solução.

Com o Tratado de Cooperação Amazônica, em vigor desde o início da década de 80, o governo brasileiro visou à integração e ao desenvolvimento da Amazônia continental. Com tal instrumento ele pretendia afastar qualquer tentativa de controle internacional sobre a região. Regionalizando a solução da questão amazônica, os países signatários (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) estariam resguardando sua capacidade de decisão na Amazônia continental. Mas esse tratado não produziu resultados concretos no marco da cooperação regional. Assim, o Projeto Calha Norte surgiu como reação unilateral ao imobilismo voluntário dos demais signatários em executar o Tratado de Cooperação Amazônica.

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O Projeto Calha Norte teve início em 1985, com ações efetivas já no ano seguinte. Foi elaborado como plano de ação governamental pelo Grupo de Trabalho Interministerial, criado para esse fim e coordenado pela Secretaria de Planejamento, que contou basicamente com a participação do Ministério das Relações Exteriores, da extinta Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, dos ministérios militares, do Ministério da Fazenda, do extinto Ministério do Interior e da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele visa intensificar a presença do Estado ao norte dos rios Solimões e Amazonas, abrangendo uma área praticamente inexplorada, que corresponde a 14% do território nacional, com mais de 6,5 mil quilômetros de fronteiras terrestres, que se estendem de Tabatinga à foz do Oiapoque.

Para justificar a necessidade do referido projeto, a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (autora da proposta) considerou os seguintes complicadores: extensa fronteira não-vivificada e grande vazio demográfico ao norte do Solimões-Amazonas; instabilidade interna nos países limítrofes; cobiça internacional dos recursos minerais existentes na região; degradação crescente do ecossistema amazônico, agravada pela ação do garimpo; crescente trânsito ilegal de estrangeiros, tráfico de drogas e evasão de riquezas; intensificação dos conflitos de terras; e pressões (internas e, sobretudo, externas) para criação de reservas indígenas em áreas ricas de minérios e na faixa de fronteira. De todos esses complicadores, o que mais interferiu na determinação militar de executar o Projeto Calha Norte foi a possibilidade de se criar um parque indígena binacional que poderia evoluir - segundo a visão militar - para um Estado indígena independente.

Em tese, a execução do Projeto Calha Norte visa:

• intensificar as relações bilaterais com os países vizinhos;

• aumentar a presença brasileira na área, com base na ação pioneira das Forças Armadas;

• proteger e dar assistência às populações indígenas ao norte dó Solimões-Amazonas;

• intensificar as campanhas demarcatórias das fronteiras pela restauração e pelo adensamento de marcos limítrofes;

• ampliar a capacidade de produção de energia local e da infra-estrutura viária; incrementar a colonização com base nas populações da área e ao conseqüente estímulo à interiorização de pólos de desenvolvimento econômico;

• aumentar a oferta de recursos sociais básicos;

• fortalecer os órgãos governamentais de justiça, Polícia Federal, Receita Federal e Previdência Social, como fatores inibidores de ilícitos.

Para fins de planejamento, a região foi dividida em três espaços diferenciados: a faixa de fronteira com 150 quilômetros de largura, de Tabatinga à foz do Oiapoque; a orla ribeirinha dos rios Solimões e Amazonas e de seus afluentes; os espaços interiores limitados pela faixa de fronteira e orla ribeirinha. A faixa de fronteira foi selecionada como prioritária, em virtude da insuficiência de meios para atender à extensão, territorial em toda a sua abrangência. Nela, foram priorizadas as seguintes áreas: Roraima, com pólo em Boa Vista e projetos em Bonfim, Normandia, Pacaraima (Marco BV8), Ericó, Auaris e Surucucu; Alto Rio Negro (a noroeste do Amazonas e fronteira com a Venezuela e Colômbia), com pólo em São Gabriel da Cachoeira e projetos em Maturacá, Cucuí, São Joaquim, Querari e Iauaretê; Alto Solimões (a oeste do Amazonas e fronteira com a Colômbia), com pólo em Tabatinga e projetos em Benjamin Constant e Ipiranga; Alto Traíra (a oeste do Amazonas e fronteira com a Colômbia), com pólo em Vila Bittencourt; norte do Pará e Amapá, com projetos em Tiriós, Clevelândia do Norte e Oiapoque.

A execução do Projeto Calha Norte no primeiro espaço diferenciado a faixa de fronteira de Tabatinga à foz do Oiapoque -, por meio de projetos especiais, visa:

• ampliar as relações bilaterais com os países vizinhos, tendo em vista fortalecer os mecanismos de cooperação e os fatores de produção, reforçar a rede consular e facilitar as trocas comerciais entre as populações fronteiriças;

• aumentar a presença militar na área, por meio dos pelotões de fronteira (Exército), da construção e melhoria de campos de pouso de apoio (Aeronáutica) e da intensificação das patrulhas fluviais e melhoria das condições de segurança de navegação (Marinha);

• intensificar as campanhas demarcatórias das fronteiras pela restauração e pelo adensamento de marcos limítrofes na fronteira com a Colômbia (1,643 mil quilômetros), Venezuela (2,199 mil quilômetros), Guiana (1,606 mil quilômetros), Suriname (593 quilômetros) e Guiana Francesa (730 quilômetros);

• executar uma política indigenista no Alto Solimões e Alto Rio Negro, em Roraima, no Amapá e na área do Tumucumaque (na fronteira com o Suriname).

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Até agora, só os ministérios militares estão realizando sua parte no Projeto Calha Norte. Daí a acusação de que é um projeto militar, embora ele preveja a ação conjunta e coordenada de vários ministérios e órgãos governamentais em sua execução. No entanto, só as Forças Armadas, por já disporem de uma estrutura na área, responderam prontamente ao desafio imposto pelo projeto. Assim, foram criadas novas organizações militares e ampliadas e melhoradas outras já existentes, principalmente os pelotões de fronteira.

Na área militar, o projeto instalou uma brigada de infantaria de selva, com sede em Boa Vista; um comando de fronteira, com sede em São Gabriel da Cachoeira; e cinco pelotões de fronteira, em lauaretê (AM), Querari (AM), São Joaquim (AM), Maturacá (AM) e Surucucu (RR). Mas ainda faltam a ser instalados outros cinco pelotões - em Pari-Cachoeira (AM), Tunuí (AM), Auaris (RR), Ericó (RR) e Tiriós (PA). Além disso, foram transformados três batalhões especiais de fronteira em batalhões de infantaria de selva. Já existiam na região três comandos de fronteira com sede em Tabatinga, Boa Vista e Macapá, uma companhia de fronteira em Clevelândia do Norte e cinco pelotões de fronteira em lpiranga, Vila Bittencourt, Marco BV8, Bonfim e Normandia.

Embora o Projeto Calha Norte seja questionável quanto à eficácia das atividades civis, na perspectiva do respeito aos direitos indígenas e da preservação do meio ambiente, ele está concorrendo para o fortalecimento do dispositivo militar na Amazônia. É claro que as organizações militares instaladas (com exceção da brigada de infantaria de selva e de seus batalhões), e as que faltam a ser instaladas, não são aptas a combates prolongados, mas apenas às atividades de vigilância e de controle na fronteira. No entanto, as demais organizações que têm tal aptidão não possuem um nível de prontidão e operacionalidade que atenda a uma necessidade de defesa imediata. Se esse nível for alcançado, o dispositivo atual poderá ter uma capacidade de pronta resposta satisfatória na defesa da Amazônia. De qualquer modo, os pelotões previstos para serem instalados pelo Projeto Calha Norte serão importantes no contexto dessa defesa.

A Amazônia é hoje uma das áreas estratégicas mais sensíveis do território nacional e está precariamente defendida. Mas essa defesa não se reduz à sua dimensão militar, materializada pelo dispositivo do Comando Militar da Amazônia. Ela abrange, também, a defesa do meio ambiente e das comunidades indígenas, assim como a interceptação do tráfico de drogas e do contrabando de minérios e madeiras. Para isso, o Projeto Calha Norte é insuficiente, mesmo que sejam iniciadas as atividades civis previstas nele. Aliás, ele já faz parte de um programa mais abrangente e de maior alcance, o Sistema de Proteção da Amazônia - cuja primeira etapa está para ser iniciada- o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam).

Intenções, fatos, exageros e denúncias conformam o atual debate sobre o futuro da Amazônia. Mas não há, na realidade, nenhuma conspiração contra o Brasil, com o objetivo de internacionalizá-la. No entanto, a desqualificação dessa ameaça não justifica a negligência da defesa militar neste possível teatro de operações. Do mesmo modo, não se deve pensar a Amazônia sob critérios de defesa militar, sem nenhum compromisso com a preservação do meio ambiente e sobrevivência das comunidades indígenas, na perspectiva de solucionar um problema militar que é inexistente. Embora sua defesa não seja necessariamente militar, aceita-se como válida a construção de um eficiente dispositivo militar, que tenha a capacidade de negar ou dificultar a qualquer agressor a ocupação e o controle efetivo do espaço amazônico. E, nessa perspectiva, o Projeto Calha Norte é necessário - nas suas dimensões militar e civil. Mas para concluí-lo até o final de 1997, como está previsto, serão necessários cerca de US$ 138 milhões.

Geraldo Lesbat Cavagnari Filho é diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp.

Direito das nações indígenas violado

"Uma coisa é um país, outra um regimento. "

Affonso Romano de Sant'Anna

A Comissão Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores fez bem em modificar a primeira versão do capítulo do projeto para discussão do Programa de Governo do PT - 94 relativo a "Defesa e as Forças Armadas". A nova versão, aprovada pela unanimidade dos membros da Comissão, enfatizou que "a política de defesa deve ser formulada de forma subordinada aos objetivos do desenvolvimento e da democracia no país"; e que o reaparelhamento das Forças Armadas e as iniciativa para criar o Ministério da Defesa e do serviço militar voluntário deverão respeitar "as prioridades sociais do Governo Democrático e Popular". Além disso, a nova versão suprimiu uma proposta de revisão do Projeto Calha Norte, que, tinha a preocupação é de "compatibilizá-lo com a política de respeito aos direitos das populações indígenas e de exploração da Amazônia, nos marcos de uma indispensável proteção ambiental, com a defesa da soberania desta parte do território nacional".

A redação da proposta vencida continha uma grave constatação, já sabida e denunciada há quase oito anos pelas organizações indígenas da Amazônia e seus aliados: o Projeto Calha Norte não é compatível "com a política de respeito aos direitos das populações indígenas e de exploração da Amazônia, nos marcos de uma indispensável proteção ambiental ...".

Apenas esta constatação já bastaria - como de fato bastou, pelo menos provisoriamente - para condenar a previsão de revitalização do projeto numa proposta de defesa militar de cunho democrático e popular. Vale a pena, no entanto, recordar a essência do projeto para demonstrar que é também incompatível com a proposta de Programa de Governo do PT, segundo o qual "a base para a redefinição e capacitação das Forças Armadas é a convicção de que a democracia supõe o fim de qualquer tutela militar sobre a sociedade e sobre o Estado".

O Projeto Calha Norte ("Desenvolvimento e Segurança na Região ao Norte das Calhas dos Rios Solimões e Amazonas"), parte integrante do 1 Plano de Desenvolvimento da Amazônia do governo Sarney, foi concebido pelo então general-de-brigada Rubens Denys, ministro-chefe do Gabinete Militar da Presidência da República e secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional.

Baseado na tradicional "doutrina de segurança nacional" da ditadura militar, foi elaborado sigilosamente, tendo sido apresentado ao presidente José Sarney através de uma exposição de motivos em junho de 1985. Sarney aprovou a proposta e mandou constituir um grupo de trabalho interministerial, integrado pelos ministérios do Interior (Funai), Relações Exteriores, Secretaria do Planejamento e Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, que elaborou o projeto em detalhes, em outubro de 85. A opinião pública só tomou conhecimento dele um ano depois, em outubro de 1986, através de denúncias na imprensa do Conselho Indigenista Missionário, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação, da Comissão para a Criação do Parque Ianomâmi e outras entidades.

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Como indica sua denominação mais geral, o projeto tinha a pretensão de promover a "segurança" e o "desenvolvimento" numa faixa de 150 quilômetros de largura ao longo de 6,5 mil quilômetros- das fronteiras do Brasil com a Colômbia, Venezuela, Guiaria, Suriname e Guiana Francesa, numa área correspondente a 14% do território nacional e a 24% da Amazônia Legal.

Fruto ainda do contexto da Guerra Fria e da concepção de que as fronteiras do mundo eram mais ideológicas do que geográficas, o projeto preocupava-se com o fato de as fronteiras do país na Amazônia ("imenso vazio demográfico") serem "praticamente habitadas por indígenas", considerados pelos militares como não-cidadãos ou cidadãos pouco leais à Nação brasileira. Conforme constava da Exposição de Motivos de junho de 1985, preocupava também o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional "a conhecida possibilidade de conflitos fronteiriços entre alguns países vizinhos (que), aliada à presente conjuntura do Caribe, podem tornar possível a projeção do antagonismo Leste/Oeste na parte Norte da América do Sul". Neste aspecto, o general Bayma Denys indicava, ainda, como um dos fatores que "torna vulnerável a soberania nacional", a "suscetibilidade da Guiana e do Suriname à influência ideológica marxista".

A Exposição de Motivos listava oito prioridades para o projeto:

  •  incremento das relações bilaterais; aumento da presença militar;
  •  intensificação das campanhas de recuperação dos marcos limítrofes; definição de uma política indigenista apropriada para a região, tendo em vista principalmente a faixa de fronteira;
  •  ampliação da infra-estrutura viária; aceleração da produção de energia hidrelétrica;
  • interiorização de pólos de desenvolvimento econômico;
  • ampliação da oferta de recursos sociais básicos.

Não posso, no momento, fazer um balanço geral do projeto. Sei que ele está paralisado há muito tempo. E certo que seus benefícios para as populações ribeirinhas da Amazônia foram desprezíveis. Embora mais soldados tenham sido enviados para postos na fronteira, não encontraram os supostos guerrilheiros dos países vizinhos e o narcotráfico continua funcionando a todo vapor. Entretanto, eu gostaria de destacar que a ênfase dada pelo Projeto Calha Norte à concepção do "vazio demográfico amazônico", aliada a um desprezo militante aos povos indígenas, provocou efeitos catastróficos.

Já na Exposição de Motivos nº 770, em que o grupo de trabalho interministerial encaminhava o detalhamento do projeto, quatro áreas densamente habitadas por indígenas são declaradas prioritárias para suas ações: o território ocupado pelo povo Ianomâmi, no noroeste de Roraima e norte do Amazonas, na fronteira com a Venezuela; o Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas, fronteira com a Venezuela e a Colômbia (habitado pelos povos Tukano, Baré, Desana, Maku etc.); o norte e leste de Roraima, na fronteira com a Venezuela e a Guiana (habitados pelos povos Makuxi, Wapixana, Ingarikó etc.); e o Alto Solimões e Alto Traíra, fronteira oeste do Amazonas com a Colômbia (áreas de habitação do povo Tikuna).

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Desde aquela época, os militares vinculados à Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (depois transformada na Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional - Saden) veicularam a versão de que as ações de solidariedade nacionais e internacionais em favor da demarcação das terras dos ianomâmis tinham o propósito de erigir um "Estado Ianoniâmi", separado do Brasil. Esta versão paranóica foi posteriormente aproveitada num conjunto de documentos forjados por um funcionário do Grupo Paranapanema (com o assessoramento de elementos da Secretaria Geral do Conselho Nacional de Segurança, segundo denunciou na época o ex-senador Severo Gomes), contendo caluniosas acusações contra o Conselho Indigenista Missionário e a Conferência " Nacional dos Bispos do Brasil. De acordo com elas, esses organismos estariam a serviço de interesses de mineradoras estrangeiras. Isto é, a defesa que faziam da demarcação das terras indígenas seria apenas um pretexto com o objetivo de constituir "reservas minerais" para exploração futura de potências estrangeiras. Essas acusações - talvez as mais sórdidas já divulgadas pela imprensa brasileira depois do Plano Cohen, em 1937 - foram publicadas durante uma semana inteira de agosto de 1987 pelo jornal O Estado de S. Paulo. O propósito era claro: a curto prazo, tumultuar e confundir os constituintes que redigiam a nova Constituição federal; a médio e longo prazos, servir de suporte político-ideológico para reduzir os territórios indígenas na Amazônia.

O novo texto constitucional rompeu com as antigas concepções da política indigenista oficial, segundo as quais os índios deveriam ser "incorporados à comunhão nacional", de que existiriam duas categorias de índios - os "aculturados" e os "não-aculturados"-, e determinou a demarcação de suas terras num prazo de cinco anos, a partir de outubro de 1988. Mesmo assim, o governo federal, por imposição dos interesses militares expressos no Projeto Calha Norte e dos interesses econômicos das elites locais, tem deixando de demarcar as terras indígenas na região amazônica.

O projeto era explícito no sentido de vedar a demarcação de terras indígenas consideradas muito extensas ou que se localizassem na faixa de fronteira, orientação seguida até hoje pelos escalões das Forças Armadas. O fato é que durante o governo Sarney, algumas dessas terras foram drasticamente reduzidas. A terra dos Tikuna, no Alto Solimões, foi reduzida em 41%. No Alto Rio Negro, as terras indígenas sofreram redução de 59,5%. Como se não bastasse, o governo federal criou ali duas florestas nacionais, passíveis de exploração econômica por terceiros, em oposição ao dispositivo constitucional que confere ao índio o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes em suas terras. A esses foram reservadas algumas "colônias indígenas", uma figura jurídica não prevista pela nova Constituição, destinada a "índios aculturados", isto é, que mantêm mais contato com a sociedade envolvente. Coerentemente com estes conceitos, os soldados do 5º Batalhão de Fronteiras de São Gabriel da Cachoeira, localizado naquela região, comportam-se até hoje como se integrassem um Exército de ocupação, por exemplo, estuprando as mulheres indígenas, que raramente os denunciam por medo de represálias.

O mais grave, porém, ocorreu com os Ianomâmi. Suas terras foram reduzidas em 76,4% fatiadas em nove "ilhas" separadas sobre um parque claro, assim, que um dos objetivos centrais do Projeto Calha Norte era o de extinguir os povos daquela região, retirando-lhes os seus territórios e liberando-os para a exploração econômica.

Desde 1985, portanto desde que o projeto estava sendo concebido nos porões do Conselho de Segurança Nacional, o território Ianomâmi vinha sendo invadido maciçamente por garimpeiros. Como o acesso àquela área é feita por avião, os garimpeiros chegavam ali descendo em pistas clandestinas ou utilizando a pista de pouso do Exército localizada na região do Surucucus, restaurada pelo projeto. A invasão foi abertamente incentivada depois pelos homens do Calha Norte, sob o argumento de que iriam "vivificar" as fronteiras do Brasil, como dizia o comandante militar da Amazônia, general Antenor de Santa Cruz, ajudando a projetar ali o "poder nacional". Por esta visão, os garimpeiros "brancos" seriam cidadãos mais confiáveis que os índios, que, aliás, nem falam o português. Ontem, como hoje, os militares, com exceções, não admitem que o Brasil seja um país multi-étnico e pluricultural.

As conseqüências daquele movimento só podem ser classificadas de genocídio, ou seja, tinha o propósito deliberado de exterminar um povo: os Ianomâmi contraíram inúmeras doenças transmitidas pelos garimpeiros; foram vítimas de agressões; impedidos de caçar, por causa do barulho das máquinas da garimpagem que, além do mais, poluíam seus rios com lama e mercúrio; doentes, os índios deixaram de cultivar suas roças, sendo levados à inanição... Mais de 2 mil índios, segundo cálculos do Conselho Indigenista Missionário, morreram vítimas da malária espalhada na região pelos garimpeiros, sem que o Exército tomasse qualquer providência para impedir o desastre.

No final do governo Sarney, a Justiça Federal determinou que a Funai, auxiliada pela Polícia Federal e pelo Exército, retirasse os invasores da terra Ianomâmi. Sarney enrolou o quanto pôde e não cumpriu a determinação. Seu sucessor, Collor de Mello, preferiu a via do espalhafato publicitário. Dinamitou algumas pistas de pouso clandestinas, mas não os retirou definitivamente de lá. Ao contrário, eles reconstruíram as pistas para a chegada de novas multidões. Por pressão de entidades brasileiras, indígenas e indigenistas, que lutavam pela demarcação daquele território há mais de vinte anos, e também por pressão de entidades e autoridades governamentais estrangeiras, às vésperas da Conferência Nacional das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (ECO-92), realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, o presidente Collor extinguiu as "ilhas" criadas por Sarney e determinou a demarcação das terras ianomâmis. Até hoje, os militares - e, por que não dizer, setores nacionalistas e de esquerda, aturdidos com o fim da bipolaridade Estados Unidos X União Soviética e temerosos da "internacionalização" da Amazônia - recusam-se a aceitar a demarcação, como se ela tivesse sido determinada por interesses imperialistas. O dado central, insofismável, é que a demarcação foi um ato de soberania do Brasil, determinado pela Constituição Federal, garantindo o domínio da União sobre uma grande área de fronteira do território nacional. Sempre é bom repetir, para afastar os argumentos de má-fé: as terras indígenas, de acordo com o inciso XI do artigo 20 da Constituição, constituem bens da União. Os militares certamente não chiariam se, ao invés da demarcação, aquelas terras tivessem sido entregues à exploração de empresas capitalistas, ainda que de capital estrangeiro. Neste caso, de acordo com essa visão tacanha, a "soberania" nacional não estaria sendo ferida... Aliás, os que hoje defendem o Calha Norte são explícitos no sentido de não terem muitas restrições ao capital estrangeiro.

O Projeto Calha Norte é fruto de urna época já morta na história do Brasil. Foi concebido, como já disse, no contexto em que ainda vigorava a Guerra Fria. Naquela época, os militares enfrentavam uma crise de identidade, afastados que tinham sido da ribalta política com o fim negociado da ditadura militar. O Calha Norte constituiu um pretexto para a sua revalorização política.

O projeto foi baseado em antigas concepções de Segurança Nacional, a exemplo da "fronteiras vivas", que já haviam sido aplicadas com sucesso, por exemplo, na divisa com o Paraguai. Naquele caso, o Brasil simplesmente invadiu amplos territórios do país vizinho. Calcula-se que desde o início da década de 70, mais de 800 mil pessoas passaram a viver no Paraguai. A conseqüência é a existência, hoje, de pelo menos 500 mil brasiguaios, lavradores sem terra e sem Pátria. Aos garimpeiros que invadiram as terras ianomâmis, o Calha Norte reservou o mesmo papel das "fronteiras vivas" brasiguaias - mas a tática, felizmente, acabou falhando.

Este projeto foi concebido em segredo. A sociedade - mais concretamente, as populações ribeirinhas e indígenas dos estados da Amazônia, os principais alvos do projeto - não foi consultada. O Congresso Nacional também não foi consultado, recebeu um prato feito. A opinião pública tomou conhecimento dele em forma de denúncia. Os militares da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional acharam que cabia a eles, mais uma vez, encamar os projetos da Nação brasileira. Arvoraram-se, de novo, em pais e salvadores da Pátria, a despeito da Pátria tê-los afastados dessa condição, após 21 anos de ditadura militar.

A guerra já disse alguém, é uma coisa muito séria para ser tratada apenas pelos generais. O Projeto Calha Norte é um projeto de guerra falido, que precisa ser enterrado. Como afirmou recentemente o procurador geral da República, Aristides Junqueira, a segurança de uma Nação é, antes de qualquer coisa, a segurança de seus cidadãos. Na Amazônia, queiram ou não os militares, a cidadania é constituída pelos povos indígenas e as populações ribeirinhas.

É evidente para nós que a Amazônia tem que ser defendida dos interesses imperialistas*. Não questionamos a necessidade de formular uma política de defesa específica para a região. Mas tal política terá que ser formulada com a participação ativa e informada de seus habitantes e de todos os demais cidadãos brasileiros interessados nesta questão. O caminho apontado pela Comissão Executiva Nacional do PT, de formular uma política de defesa democrática e popular, é, certamente, o mais indicado.

Antônio Carlos Queiroz é editor do Porantim, órgão do Conselho Indigenista Missionário

Nota

Sem qualquer propósito revanchista, é bom lembrar que os militares têm uma parcela enorme de responsabilidade na entrega da Amazônia a esses interesses. A esse respeito, o insuspeito general da reserva Antônio Carlos de Andrada Serpa, no prefácio do livro Entreguismo dos minérios - a quinta coluna do setor mineral, de Roberto Gania e Silva, Tchê!, Porto Alegre, 1988, pág. 8, afirma: "Se há responsabilidade da qual as Forças Armadas jamais poderão se eximir, durante os governos militares, é de neles haver ocorrido a entrega maciça do solo e do subsolo a poderosos grupos econômicos nacionais e estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas."

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