O início da presença militar na Amazônia coincide com a sua conquista, em 1615, quando foi erguido o Forte do Presépio - que deu origem a Belém do Pará. Mas a primeira colônia militar só viria a ser instalada, em 1840, na região do rio Araguari (Amapá) - seguindo-se a instalação de outras em São João do Araguaia, São Pedro de Alcântara, Óbidos, Oiapoque e Tabatinga. Por sua vez, elas viriam a ser substituídas pelos pelotões de fronteira no século seguinte, quando a preocupação com a segurança da Amazônia tornou-se tão necessária quanto imediata.
De certo modo, caberia à geopolítica tornar a Amazônia objeto de reflexão no âmbito das Forças Armadas. Coube a elas justificar a necessidade de articular a Amazônia ao pólo mais avançado da economia brasileira, como recurso para defendê-la da cobiça internacional - porque já estavam presentes, segundo o discurso geopolítico, as ameaças de sua internacionalização. Nesse discurso, ela era considerada reserva estratégica para o projeto da grande potência. Ou seja, sem a Amazônia o Brasil dificilmente ingressaria no rol das grandes potências do século XXI, ao lado dos Estados Unidos, Japão, Europa, Rússia e China. Assim, tal discurso alertava para a necessidade de desenvolvê-la com oportunidade, tendo em vista afastar qualquer controle internacional sobre ela e, sobretudo, não retardar o ingresso do Brasil no clube das grandes potências.
Com a introdução dos direitos humanos e do meio ambiente na agenda internacional, pareceu para os militares que o futuro da Amazônia estava ameaçado - já que o governo brasileiro conduzia com negligência a solução da questão indígena e se omitia em face da destruição crescente do ecossistema amazônico. Pela lógica militar, havia alguma conspiração contra o Brasil, com o objetivo de internacionalizar a Amazônia, porque seria a via mais curta para as grandes potências se beneficiarem das riquezas naturais existentes nela. E essa ameaça já seria suficiente para justificar não só a retomada do desenvolvimento, mas, também, o fortalecimento do dispositivo militar na região. Ou seja, a Amazônia era um problema que tinha sua dimensão militar, exigindo a presença militar em sua solução.
Com o Tratado de Cooperação Amazônica, em vigor desde o início da década de 80, o governo brasileiro visou à integração e ao desenvolvimento da Amazônia continental. Com tal instrumento ele pretendia afastar qualquer tentativa de controle internacional sobre a região. Regionalizando a solução da questão amazônica, os países signatários (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) estariam resguardando sua capacidade de decisão na Amazônia continental. Mas esse tratado não produziu resultados concretos no marco da cooperação regional. Assim, o Projeto Calha Norte surgiu como reação unilateral ao imobilismo voluntário dos demais signatários em executar o Tratado de Cooperação Amazônica.
O Projeto Calha Norte teve início em 1985, com ações efetivas já no ano seguinte. Foi elaborado como plano de ação governamental pelo Grupo de Trabalho Interministerial, criado para esse fim e coordenado pela Secretaria de Planejamento, que contou basicamente com a participação do Ministério das Relações Exteriores, da extinta Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, dos ministérios militares, do Ministério da Fazenda, do extinto Ministério do Interior e da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele visa intensificar a presença do Estado ao norte dos rios Solimões e Amazonas, abrangendo uma área praticamente inexplorada, que corresponde a 14% do território nacional, com mais de 6,5 mil quilômetros de fronteiras terrestres, que se estendem de Tabatinga à foz do Oiapoque.
Para justificar a necessidade do referido projeto, a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (autora da proposta) considerou os seguintes complicadores: extensa fronteira não-vivificada e grande vazio demográfico ao norte do Solimões-Amazonas; instabilidade interna nos países limítrofes; cobiça internacional dos recursos minerais existentes na região; degradação crescente do ecossistema amazônico, agravada pela ação do garimpo; crescente trânsito ilegal de estrangeiros, tráfico de drogas e evasão de riquezas; intensificação dos conflitos de terras; e pressões (internas e, sobretudo, externas) para criação de reservas indígenas em áreas ricas de minérios e na faixa de fronteira. De todos esses complicadores, o que mais interferiu na determinação militar de executar o Projeto Calha Norte foi a possibilidade de se criar um parque indígena binacional que poderia evoluir - segundo a visão militar - para um Estado indígena independente.
Em tese, a execução do Projeto Calha Norte visa:
• intensificar as relações bilaterais com os países vizinhos;
• aumentar a presença brasileira na área, com base na ação pioneira das Forças Armadas;
• proteger e dar assistência às populações indígenas ao norte dó Solimões-Amazonas;
• intensificar as campanhas demarcatórias das fronteiras pela restauração e pelo adensamento de marcos limítrofes;
• ampliar a capacidade de produção de energia local e da infra-estrutura viária; incrementar a colonização com base nas populações da área e ao conseqüente estímulo à interiorização de pólos de desenvolvimento econômico;
• aumentar a oferta de recursos sociais básicos;
• fortalecer os órgãos governamentais de justiça, Polícia Federal, Receita Federal e Previdência Social, como fatores inibidores de ilícitos.
Para fins de planejamento, a região foi dividida em três espaços diferenciados: a faixa de fronteira com 150 quilômetros de largura, de Tabatinga à foz do Oiapoque; a orla ribeirinha dos rios Solimões e Amazonas e de seus afluentes; os espaços interiores limitados pela faixa de fronteira e orla ribeirinha. A faixa de fronteira foi selecionada como prioritária, em virtude da insuficiência de meios para atender à extensão, territorial em toda a sua abrangência. Nela, foram priorizadas as seguintes áreas: Roraima, com pólo em Boa Vista e projetos em Bonfim, Normandia, Pacaraima (Marco BV8), Ericó, Auaris e Surucucu; Alto Rio Negro (a noroeste do Amazonas e fronteira com a Venezuela e Colômbia), com pólo em São Gabriel da Cachoeira e projetos em Maturacá, Cucuí, São Joaquim, Querari e Iauaretê; Alto Solimões (a oeste do Amazonas e fronteira com a Colômbia), com pólo em Tabatinga e projetos em Benjamin Constant e Ipiranga; Alto Traíra (a oeste do Amazonas e fronteira com a Colômbia), com pólo em Vila Bittencourt; norte do Pará e Amapá, com projetos em Tiriós, Clevelândia do Norte e Oiapoque.
A execução do Projeto Calha Norte no primeiro espaço diferenciado a faixa de fronteira de Tabatinga à foz do Oiapoque -, por meio de projetos especiais, visa:
• ampliar as relações bilaterais com os países vizinhos, tendo em vista fortalecer os mecanismos de cooperação e os fatores de produção, reforçar a rede consular e facilitar as trocas comerciais entre as populações fronteiriças;
• aumentar a presença militar na área, por meio dos pelotões de fronteira (Exército), da construção e melhoria de campos de pouso de apoio (Aeronáutica) e da intensificação das patrulhas fluviais e melhoria das condições de segurança de navegação (Marinha);
• intensificar as campanhas demarcatórias das fronteiras pela restauração e pelo adensamento de marcos limítrofes na fronteira com a Colômbia (1,643 mil quilômetros), Venezuela (2,199 mil quilômetros), Guiana (1,606 mil quilômetros), Suriname (593 quilômetros) e Guiana Francesa (730 quilômetros);
• executar uma política indigenista no Alto Solimões e Alto Rio Negro, em Roraima, no Amapá e na área do Tumucumaque (na fronteira com o Suriname).
Até agora, só os ministérios militares estão realizando sua parte no Projeto Calha Norte. Daí a acusação de que é um projeto militar, embora ele preveja a ação conjunta e coordenada de vários ministérios e órgãos governamentais em sua execução. No entanto, só as Forças Armadas, por já disporem de uma estrutura na área, responderam prontamente ao desafio imposto pelo projeto. Assim, foram criadas novas organizações militares e ampliadas e melhoradas outras já existentes, principalmente os pelotões de fronteira.
Na área militar, o projeto instalou uma brigada de infantaria de selva, com sede em Boa Vista; um comando de fronteira, com sede em São Gabriel da Cachoeira; e cinco pelotões de fronteira, em lauaretê (AM), Querari (AM), São Joaquim (AM), Maturacá (AM) e Surucucu (RR). Mas ainda faltam a ser instalados outros cinco pelotões - em Pari-Cachoeira (AM), Tunuí (AM), Auaris (RR), Ericó (RR) e Tiriós (PA). Além disso, foram transformados três batalhões especiais de fronteira em batalhões de infantaria de selva. Já existiam na região três comandos de fronteira com sede em Tabatinga, Boa Vista e Macapá, uma companhia de fronteira em Clevelândia do Norte e cinco pelotões de fronteira em lpiranga, Vila Bittencourt, Marco BV8, Bonfim e Normandia.
Embora o Projeto Calha Norte seja questionável quanto à eficácia das atividades civis, na perspectiva do respeito aos direitos indígenas e da preservação do meio ambiente, ele está concorrendo para o fortalecimento do dispositivo militar na Amazônia. É claro que as organizações militares instaladas (com exceção da brigada de infantaria de selva e de seus batalhões), e as que faltam a ser instaladas, não são aptas a combates prolongados, mas apenas às atividades de vigilância e de controle na fronteira. No entanto, as demais organizações que têm tal aptidão não possuem um nível de prontidão e operacionalidade que atenda a uma necessidade de defesa imediata. Se esse nível for alcançado, o dispositivo atual poderá ter uma capacidade de pronta resposta satisfatória na defesa da Amazônia. De qualquer modo, os pelotões previstos para serem instalados pelo Projeto Calha Norte serão importantes no contexto dessa defesa.
A Amazônia é hoje uma das áreas estratégicas mais sensíveis do território nacional e está precariamente defendida. Mas essa defesa não se reduz à sua dimensão militar, materializada pelo dispositivo do Comando Militar da Amazônia. Ela abrange, também, a defesa do meio ambiente e das comunidades indígenas, assim como a interceptação do tráfico de drogas e do contrabando de minérios e madeiras. Para isso, o Projeto Calha Norte é insuficiente, mesmo que sejam iniciadas as atividades civis previstas nele. Aliás, ele já faz parte de um programa mais abrangente e de maior alcance, o Sistema de Proteção da Amazônia - cuja primeira etapa está para ser iniciada- o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam).
Intenções, fatos, exageros e denúncias conformam o atual debate sobre o futuro da Amazônia. Mas não há, na realidade, nenhuma conspiração contra o Brasil, com o objetivo de internacionalizá-la. No entanto, a desqualificação dessa ameaça não justifica a negligência da defesa militar neste possível teatro de operações. Do mesmo modo, não se deve pensar a Amazônia sob critérios de defesa militar, sem nenhum compromisso com a preservação do meio ambiente e sobrevivência das comunidades indígenas, na perspectiva de solucionar um problema militar que é inexistente. Embora sua defesa não seja necessariamente militar, aceita-se como válida a construção de um eficiente dispositivo militar, que tenha a capacidade de negar ou dificultar a qualquer agressor a ocupação e o controle efetivo do espaço amazônico. E, nessa perspectiva, o Projeto Calha Norte é necessário - nas suas dimensões militar e civil. Mas para concluí-lo até o final de 1997, como está previsto, serão necessários cerca de US$ 138 milhões.
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho é diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp.