Maquiavel afirmava que era impossível entender uma situação atual e imaginar seus desdobramentos sem conhecer o passado. A origem do PT explica seus pontos positivos e negativos, o impasse que vivemos e a necessidade de deixar de olhar o próprio umbigo.
O partido veio "dos de baixo". As lutas por melhores salários dos operários do ABCD levaram rapidamente a outras reivindicações: direito de greve, anistia, liberdade sindical, adquirindo assim caráter antiditatorial, apontando e viabilizando a formação de um partido político. Prevaleciam discussões sobre táticas e políticas conjunturais. A fragilidade teórica e ideológica, a falta de tradição histórica de lutas, explicavam a ausência de propostas estratégicas, de soluções definitivas da organização da sociedade. Mas o combate justo e corajoso e os ideais amplos e generosos dos trabalhadores atraíam, mobilizavam, davam esperanças a muitos outros segmentos da sociedade, que passaram a apoiar o projeto do PT.
O partido veio também salvar as esquerdas, perdidas e fragmentadas após décadas de derrotas na luta contra a ditadura. Essa esquerda, porém, tinha o que faltava aos trabalhadores: a "ideologia científica", única que parecia disponível, com propostas estratégicas, de organização da sociedade, de fim da história, todas aparentemente casando com a força e os interesses da classe trabalhadora. Assim, no melhor estilo previsto por Lenin na obra Que fazer, a ideologia marxista passou a influenciar as definições petistas, respeitando inovações de ordem organizacional. Para se constatar isso, basta ler documentos da época. Ou então, observar nos últimos anos a origem dos líderes eleitos para a Câmara Federal, as teses enviadas a congressos, a admiração acrítica por Cuba.
Frise-se que a admiração pelo socialismo de origem marxista-leninista não era de todo injustificada. Além da tomada do poder, essa ideologia permitiu resolver problemas básicos da sociedade (habitação, emprego etc.) e enfrentar por décadas o sistema capitalista.
A admiração e respeito em nosso parido pelo Leste Europeu era inegável, sucedendo-se visitas, cursos, elogios. A tentativa de dizer que o PT nunca teve essa relação com o autoritarismo é uma fraude. Aliás, com Cuba temos até hoje. É outra fraude dizer que o regime cubano não é autoritário. Está sujeito ao mesmo desgaste político e econômico que ocorreu na Europa Oriental, devido aos pontos negativos do sistema: partido único, formação de burocracia, centralização, econômica, ausência de mecanismos de mercado ou que permitam acelerar o desenvolvimento econômico e tecnológico.
A adesão de membros da oposição democrática pequeno burguesa e de militantes católicos ligados a trabalhos de base não contribuiu para abrir o PT. Pelo contrário, a visão maniqueísta fez com que se acentuasse o sectarismo: dogmas autoritários, verdades absolutas, rituais de purificação impedem o entendimento da sociedade e do indivíduo em toda sua complexidade.
Pela própria evolução e por essas influências acentuou-se também o radicalismo sindical petista, explicável tanto pela exploração e pela forma com que sempre foram tratados os trabalhadores brasileiros pela burguesia, como pela situação conjuntural de ditadura. A tudo isso acrescente-se a juventude, inexperiência e falta de tradição de lutas dos operários do ABCD até então.
Predominavam nos primeiros anos do partido teses contra a legalidade ou a participação nos parlamentos burgueses - participar de eleições era apenas para "marcar posição" e eleger deputados significava aproveitar a "infra-estrutura". À viabilização de núcleos e diretórios atiraram-se todos, alguns para legalizar o partido democrático de massas, outros para conquistar poder e impor "posições corretas". O estreitamente da base social refletiu nas eleições de 1982: o resultado foi medíocre. Apareceu a tese da "farinha do mesmo saco", com a negação da política, do real, do complexo, pois não havia ninguém "limpo" para fazermos alianças, tirar programas mínimos. Se não se podia eleger petistas, melhor era "enxugar as mãos", o que vigora até hoje.
O principal desvio na adolescência foi o "voluntarismo", característica maior da esquerda armada da década anterior, pelo qual todos os resultados dependem mais da vontade e virtudes do militante. No manifesto dos 113 (que deu origem à tendência Articulação), esse vício está caracterizado em cada frase. O PT não ia bem devido a sua linha política estreita e afastada do real. O documento não continha nenhuma crítica à inércia tática, ao sectarismo político, às definições estratégicas. O voluntarismo se expressava no "agilizar a imprensa", "nuclear e filiar", "militar intensamente" etc., como se a fragilidade do partido se devesse à falta de dedicação da militância. Não havia propostas de alterações políticas na linha partidária. O objetivo era organizar um grupo mais amplo e menos sectário para conter os grupos organizados e, é claro, manter o poder no partido. Aos que denunciavam a falta de políticas que atendessem à complexidade social, sobravam chavões desonestos com o objetivo de desclassificá-los para o debate: "aqueles que não acreditam que a classe operária possa erguer seu próprio partido" ou que "querem diluir o PT numa frente liberal".
A democracia era ainda questão tática para muitos militantes. Aparecia sempre seguida de adjetivações: burguesa, socialista, operária. Dava-se livre trânsito a uma política de desvalorização da democracia representativa. Também estes são vícios que permanecem até hoje. Mas as maiores conquistas do PT ocorreram quase sempre quando se conseguiu passar propostas e políticas amplas. Em 1985 estavam entre os eixos principais, a luta pelas diretas, moratória, fim da Lei de Segurança Nacional, anistia, direito de greve e formação da CUT. Note-se que quase todas foram total ou parcialmente vitoriosas.
A decisão política mais acertada foi a participação na frente pelas "diretas já". O partido cresceu em toda a sociedade, adquiriu o respeito de vários segmentos sociais, ampliou a militância e jamais se "diluiu" ou perdeu "independência", Apesar disso, o partido não se definiu entre duas linhas possíveis. É verdade que foi reforçada a adesão à democracia, mas o lado atrasado também continuou se manifestando com força. E chegamos ao momento atual com esse impasse entre antigo e moderno, ortodoxia e heterodoxia, autoritarismo e democracia, isolamento e política de alianças.
Nas últimas eleições, em vários estados, as direções recusaram-se a fazer alianças. Isto ilustra a continuidade do estreitismo fundamentalista no partido. Nesse caso, não se pode dizer que não tenha havido influência da prática da direção nacional em épocas anteriores. Afinal, poucos anos antes, os que atualmente pregam a necessidade de alianças tinham ameaçado de expulsão petistas baianos e de vários estados que tinham feito alianças nas mesmas condições. Em São Paulo, houve o episódio do 22 turno. Fleury diferenciava-se de Maluf pela origem, pelo partido, pelas propostas, nos conflitos de interesses políticos com o governo federal etc. Mas aos olhos da direção de cúpula e das lideranças intermediárias todos eram "farinha do mesmo saco".
Na verdade, a miopia obedece a interesses corporativistas de algumas direções e à visão daqueles que têm medo de "diluir o PT em frentes liberais" e só sabem fazer política reduzindo-a a posições simplistas do sim ou não, bons ou maus, mesmo nas questões táticas mais elementares. A síntese é rápida mas suficiente. Foi isto que nos trouxe à situação atual: diretórios mais vazios e menos representativos do que no início; o partido todo aparelhado por grupos e tendências que não deixam espaço para quem a eles não pertence; conflitos entre direções e administrações de municípios; insuficiência da organização; partido de quadros e não de massas; autoritarismo e intolerância; envelhecimento das direções; afastamento e desconfianças em amplos segmentos da sociedade que poderiam ser nossos aliados.
Nossa organização e nossas táticas, nosso isolamento e burocratização podem ser constatados na palavra de líderes até há pouco ortodoxos: "a organização do partido está caduca"; "o PT precisa romper" definitivamente com a idéia de que pode governas sozinho" (deputado federal José Dirceu); "Precisamos evitar essas discussões intermináveis só de tendências", "precisamos mudar toda a organização", nunca se discutiu teoria profundamente" (deputado federal Luiz Gushiken). Isto tudo para não falar de outros muito mais avançados nas análises das deficiências, que fizeram verdadeiras e corajosas revoluções em suas concepções, como é o caso do deputado federal José Genoino e de Tarso Genro, vice-prefeito de Porto Alegre.
A constatação dos erros e vícios das táticas, organização e projetos, por parte de lideranças expressivas, é o que de mais positivo temos no momento atual. Refaz a esperança de encontrar o caminho certo, pois os ideais socialistas permanecem.
Ponto de inflexão
Para muitos, no início do PT, a democracia era instrumento tático para levar à "ditadura do proletariado". Não poucos defendem isto até hoje no partido que se diz democrático, mas convive com essas opiniões. Há quem diga que a ditadura do proletariado é a verdadeira democracia.
Lula, recentemente, no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, disse que o PT é muito democrático e, por isso, as reuniões "duram 4 horas" e declarou não querer "que ninguém saia" e que até o 1º Congresso é "proibido proibir", afirmando que a "maioria do PT é democrática". Pelas afirmações do líder máximo do partido, podemos analisar a questão-chave, o divisor de águas, que é a posição perante a democracia.
Não podem conviver eternamente no mesmo partido, setores democráticos e antidemocráticos, ainda que minoritários. A contradição paralisa, gera desunião, desconfianças na sociedade, inviabiliza alianças etc. Por isso, os antidemocráticos devem sair.
A democracia que queremos é a clássica e universal, decorrente das lutas sociais por direitos e liberdades que levaram à Revolução Francesa. O voto é direito de cada cidadão, seja ele operário, pequeno ou grande burguês, camponês etc. Ou seja, queremos a democracia sem adjetivos, sem subterfúgios, desacompanhada dos epítetos "burguesa", "proletária", "socialista". Ao contrário, queremos que ela seja radical e intocável. É a democracia, discurso e prática, para uso interno e nas relações com outros partidos e a sociedade, que deve servir de condição sine qua non para admitir ou manter alguém filiado ao partido. Na defesa da democracia, justifica-se muito mais um acordo com forças de centro e direita democráticas e modernas do que com outras de esquerda autoritárias.
As sucessivas derrotas em eleições majoritárias refletem as desconfianças e restrições da sociedade a um projeto de socialismo ultrapassado ou no mínimo mal-definido. A expressiva votação na legenda e nos candidatos a deputado expressam a confiança parcial desta mesma sociedade, para que continuemos ajustando nossos projetos até torná-los aceitáveis. É também o reconhecimento do PT como o único partido político digno desse nome, e do trabalho sério, honesto, digno de nossos parlamentares. Mas são nas eleições majoritárias que a sociedade opta por projetos políticos, e essas perdemos todas. Não é culpa do povo, do poder econômico ou dos meios de comunicação. Fosse assim, teríamos que desistir de fazer política, pois nenhum desses fatores vai mudar a curto prazo.
Ditadura de grupos
No plano interno o PT é uma verdadeira federação, já que a única democracia que existe é a dos grupos e tendências. Controlando um diretório aqui, outro acolá, organizam-se para eleger delegados, disputar poder, exercendo ditadura sobre independentes e a massa de simpatizantes e filiados que não tem mecanismos ou possibilidade de influenciar. Às vésperas de encontros, montagem de equipe administrativas ou grandes decisões, as disputas se aguçam.
Discursos ideológicos disfarçam interesses corporativistas, disputas de cargos e poder. Adesões de última hora são recebidas sem muito questionamento na indicação para cargos administrativos - quem nomeia, por decisão própria ou imposição do partido, leva em conta mais a divisão de poder pelos grupos e tendências, relegando a um plano secundário critérios como experiência ou competência.
A luta implacável entre alguns grupos decorre também da lógica do autoritarismo, que leva inevitavelmente ao dogmatismo, aos discursos fechados. Isso limita discussões, estimula intolerância, gera reuniões intermináveis e improdutivas, afastando militantes não-autoritários. Todos se dizem donos da luz sobre qualquer questão conjuntural, mas especialmente sobre o caminho que levará ao paraíso. A isso chamam "posições corretas" e no desespero de impô-las ao partido (e consequentemente à sociedade), ameaçado pelas posições incorretas ("liberal", "pequeno-burguesa", "aventureira", "oportunistas", "democratista"), entregam-se a uma luta de vida ou morte pelo poder. É a teoria da "farinha do mesmo saco" levada ao interior do partido.
Explicam-se então tentativas de manter a aparência de trabalhos inexistentes, representatividades fictícias, núcleos fantasmas, manutenção formal de diretórios só para eleger delegados. As cansativas discussões na luta pelo poder e a impossibilidade de influenciar levaram os que não são nem querem pertencer a grupos ou tendências a se afastarem e, desse modo, a estrutura de núcleos e diretórios se esvaziou.
O debate sobre a posição do partido no 2º turno, em São Paulo, levou muitos filiados, identificados com as "bases verdadeiras" (massas), a pugnar pelo voto em Fleury. A luta, porém, era desigual. Os grupos e tendências têm condições de fazer acordos, homogeneizar, mobilizar, divulgar e defender posições rapidamente. Os independentes tinham só o partido, ente abstrato nessa situação. O resultado foi que, enquanto a maioria dos grupos e tendências votavam em "nenhum dos dois" (nem Maluf, nem Fleury), os independentes se dividiam em "voto de protesto em Fleury", "voto em Fleury", "voto em Fleury com discussão de programa mínimo", "voto contra Maluf" etc. As eleições demonstraram que as direções e os diretórios realmente são instrumentos de grupos e tendências e não estão em sintonia com as bases que dizem representar e cujas determinações devem ser seguidas. O partido, que deveria ser democrático para as massas, virou democrático para quadros, grupos e tendências organizadas. A divisão de poder entre os grupos e tendências chegou a tal ponto que os encontros podem ser considerados formalidades dispensáveis.
É óbvio que o desenvolvimento de tendências é razoável e até necessário, mas só quando a reunião provisória de militantes que se identificam ocorre eventualmente, voltando-se para certas definições ou propostas de ação. Quando a tendência se define em todas as questões partidárias e age como se fosse permanente, passa a substituir o partido, pouco importando o nome que tenha ou objetivos que alega. É fundamental não só a exclusão dos grupos, mas o esforço constante para controlar e dissolver tendências que agem como se fossem permanentes. O único referencial deve ser o PT.
O centralismo democrático deve ir para o museu. Os filiados devem obedecer aos princípios básicos do partido e não devem contrariar reiteradamente as decisões. Há casos, porém, em que o partido não necessita - e nem pode submeter o militante, especialmente em conflitos eventuais (Fleury x Maluf, legalização do aborto etc.). Lula, em entrevista a Teoria & Debate nº 13, parece admitir o poder total do partido sobre todas as questões apreciadas e decididas. Isso nos parece autoritário. O cidadão, ao filiar-se a um partido, não se despoja totalmente de sua liberdade, opiniões e comportamentos. É perfeitamente possível que a prática política conviva com a esfera do privado e da individualidade. A submissão desejada é a voluntária e consciente.
Por fim, o poder dentro do PT deve pertencer ao que chamamos verdadeiras bases: militantes de movimentos sociais, filiados, simpatizantes, eleitores etc. É preciso encontrar fórmulas criativas para permitir a participação desse povo: plebiscito, pesquisa, aferição por amostragem, carta-resposta, seja lá o que for. Também os que recebem votação expressiva em eleições (eleitos ou não) devem ter poder. Se servem para representar os filiados em questões de importância constitucional, por que não dentro do partido? Como comparar a representatividade de um militante eleito por 10 ou 15 votos com outro que recebe 40 ou 50 mil? Os núcleos e diretórios seriam recuperados com essas alterações todas e manteriam uma parcela de poder correspondente à sua representatividade. Com essa nova estrutura, o PT iria à luta para conquistar não só a confiança de seus eleitores, mas a de toda a sociedade.
A divisão de poder entre os grupos e tendências chegou a tal ponto que os congressos podem ser considerados formalidades dispensáveis. É preciso encontrar fórmulas para que as verdadeiras bases tenham voz ativa.
Percival Maricato é advogado, fundador do PT e militante do Diretório Zonal de Pinheiros (São Paulo).