EM DEBATE

Tudo que era sólido parece se desmanchar no ar e as perguntas preenchem o vácuo: qual a democracia que devemos adotar? Ela é um valor universal ou proletário? Como deve ser a organização de base do partido? Qual o espaço reservado aos filiados? Como articular a pluralidade de opiniões e a unidade de ação? Como deve ser a relação entre o partido e seus militantes nas administrações, no Parlamento e nos sindicatos?

O 1º Congresso do Partido dos Trabalhadores dará grande destaque à discussão das questões que dizem respeito à concepção e à prática de construção partidária. Teoria & Debate abre nesta edição suas páginas para o debate desse assunto, que deverá prosseguir no próximo número.

Começar de novo

Prisioneiros da legalidade?

Começar de novo

Maquiavel afirmava que era impossível entender uma situação atual e imaginar seus desdobramentos sem conhecer o passado. A origem do PT explica seus pontos positivos e negativos, o impasse que vivemos e a necessidade de deixar de olhar o próprio umbigo.

O partido veio "dos de baixo". As lutas por melhores salários dos operários do ABCD levaram rapidamente a outras reivindicações: direito de greve, anistia, liberdade sindical, adquirindo assim caráter antiditatorial, apontando e viabilizando a formação de um partido político. Prevaleciam discussões sobre táticas e políticas conjunturais. A fragilidade teórica e ideológica, a falta de tradição histórica de lutas, explicavam a ausência de propostas estratégicas, de soluções definitivas da organização da sociedade. Mas o combate justo e corajoso e os ideais amplos e generosos dos trabalhadores atraíam, mobilizavam, davam esperanças a muitos outros segmentos da sociedade, que passaram a apoiar o projeto do PT.

O partido veio também salvar as esquerdas, perdidas e fragmentadas após décadas de derrotas na luta contra a ditadura. Essa esquerda, porém, tinha o que faltava aos trabalhadores: a "ideologia científica", única que parecia disponível, com propostas estratégicas, de organização da sociedade, de fim da história, todas aparentemente casando com a força e os interesses da classe trabalhadora. Assim, no melhor estilo previsto por Lenin na obra Que fazer, a ideologia marxista passou a influenciar as definições petistas, respeitando inovações de ordem organizacional. Para se constatar isso, basta ler documentos da época. Ou então, observar nos últimos anos a origem dos líderes eleitos para a Câmara Federal, as teses enviadas a congressos, a admiração acrítica por Cuba.

Frise-se que a admiração pelo socialismo de origem marxista-leninista não era de todo injustificada. Além da tomada do poder, essa ideologia permitiu resolver problemas básicos da sociedade (habitação, emprego etc.) e enfrentar por décadas o sistema capitalista.

A admiração e respeito em nosso parido pelo Leste Europeu era inegável, sucedendo-se visitas, cursos, elogios. A tentativa de dizer que o PT nunca teve essa relação com o autoritarismo é uma fraude. Aliás, com Cuba temos até hoje. É outra fraude dizer que o regime cubano não é autoritário. Está sujeito ao mesmo desgaste político e econômico que ocorreu na Europa Oriental, devido aos pontos negativos do sistema: partido único, formação de burocracia, centralização, econômica, ausência de mecanismos de mercado ou que permitam acelerar o desenvolvimento econômico e tecnológico.

A adesão de membros da oposição democrática pequeno burguesa e de militantes católicos ligados a trabalhos de base não contribuiu para abrir o PT. Pelo contrário, a visão maniqueísta fez com que se acentuasse o sectarismo: dogmas autoritários, verdades absolutas, rituais de purificação impedem o entendimento da sociedade e do indivíduo em toda sua complexidade.

Pela própria evolução e por essas influências acentuou-se também o radicalismo sindical petista, explicável tanto pela exploração e pela forma com que sempre foram tratados os trabalhadores brasileiros pela burguesia, como pela situação conjuntural de ditadura. A tudo isso acrescente-se a juventude, inexperiência e falta de tradição de lutas dos operários do ABCD até então.

Predominavam nos primeiros anos do partido teses contra a legalidade ou a participação nos parlamentos burgueses - participar de eleições era apenas para "marcar posição" e eleger deputados significava aproveitar a "infra-estrutura". À viabilização de núcleos e diretórios atiraram-se todos, alguns para legalizar o partido democrático de massas, outros para conquistar poder e impor "posições corretas". O estreitamente da base social refletiu nas eleições de 1982: o resultado foi medíocre. Apareceu a tese da "farinha do mesmo saco", com a negação da política, do real, do complexo, pois não havia ninguém "limpo" para fazermos alianças, tirar programas mínimos. Se não se podia eleger petistas, melhor era "enxugar as mãos", o que vigora até hoje.

O principal desvio na adolescência foi o "voluntarismo", característica maior da esquerda armada da década anterior, pelo qual todos os resultados dependem mais da vontade e virtudes do militante. No manifesto dos 113 (que deu origem à tendência Articulação), esse vício está caracterizado em cada frase. O PT não ia bem devido a sua linha política estreita e afastada do real. O documento não continha nenhuma crítica à inércia tática, ao sectarismo político, às definições estratégicas. O voluntarismo se expressava no "agilizar a imprensa", "nuclear e filiar", "militar intensamente" etc., como se a fragilidade do partido se devesse à falta de dedicação da militância. Não havia propostas de alterações políticas na linha partidária. O objetivo era organizar um grupo mais amplo e menos sectário para conter os grupos organizados e, é claro, manter o poder no partido. Aos que denunciavam a falta de políticas que atendessem à complexidade social, sobravam chavões desonestos com o objetivo de desclassificá-los para o debate: "aqueles que não acreditam que a classe operária possa erguer seu próprio partido" ou que "querem diluir o PT numa frente liberal".

A democracia era ainda questão tática para muitos militantes. Aparecia sempre seguida de adjetivações: burguesa, socialista, operária. Dava-se livre trânsito a uma política de desvalorização da democracia representativa. Também estes são vícios que permanecem até hoje. Mas as maiores conquistas do PT ocorreram quase sempre quando se conseguiu passar propostas e políticas amplas. Em 1985 estavam entre os eixos principais, a luta pelas diretas, moratória, fim da Lei de Segurança Nacional, anistia, direito de greve e formação da CUT. Note-se que quase todas foram total ou parcialmente vitoriosas.

A decisão política mais acertada foi a participação na frente pelas "diretas já". O partido cresceu em toda a sociedade, adquiriu o respeito de vários segmentos sociais, ampliou a militância e jamais se "diluiu" ou perdeu "independência", Apesar disso, o partido não se definiu entre duas linhas possíveis. É verdade que foi reforçada a adesão à democracia, mas o lado atrasado também continuou se manifestando com força. E chegamos ao momento atual com esse impasse entre antigo e moderno, ortodoxia e heterodoxia, autoritarismo e democracia, isolamento e política de alianças.

Nas últimas eleições, em vários estados, as direções recusaram-se a fazer alianças. Isto ilustra a continuidade do estreitismo fundamentalista no partido. Nesse caso, não se pode dizer que não tenha havido influência da prática da direção nacional em épocas anteriores. Afinal, poucos anos antes, os que atualmente pregam a necessidade de alianças tinham ameaçado de expulsão petistas baianos e de vários estados que tinham feito alianças nas mesmas condições. Em São Paulo, houve o episódio do 22 turno. Fleury diferenciava-se de Maluf pela origem, pelo partido, pelas propostas, nos conflitos de interesses políticos com o governo federal etc. Mas aos olhos da direção de cúpula e das lideranças intermediárias todos eram "farinha do mesmo saco".

Na verdade, a miopia obedece a interesses corporativistas de algumas direções e à visão daqueles que têm medo de "diluir o PT em frentes liberais" e só sabem fazer política reduzindo-a a posições simplistas do sim ou não, bons ou maus, mesmo nas questões táticas mais elementares. A síntese é rápida mas suficiente. Foi isto que nos trouxe à situação atual: diretórios mais vazios e menos representativos do que no início; o partido todo aparelhado por grupos e tendências que não deixam espaço para quem a eles não pertence; conflitos entre direções e administrações de municípios; insuficiência da organização; partido de quadros e não de massas; autoritarismo e intolerância; envelhecimento das direções; afastamento e desconfianças em amplos segmentos da sociedade que poderiam ser nossos aliados.

Nossa organização e nossas táticas, nosso isolamento e burocratização podem ser constatados na palavra de líderes até há pouco ortodoxos: "a organização do partido está caduca"; "o PT precisa romper" definitivamente com a idéia de que pode governas sozinho" (deputado federal José Dirceu); "Precisamos evitar essas discussões intermináveis só de tendências", "precisamos mudar toda a organização", nunca se discutiu teoria profundamente" (deputado federal Luiz Gushiken). Isto tudo para não falar de outros muito mais avançados nas análises das deficiências, que fizeram verdadeiras e corajosas revoluções em suas concepções, como é o caso do deputado federal José Genoino e de Tarso Genro, vice-prefeito de Porto Alegre.

A constatação dos erros e vícios das táticas, organização e projetos, por parte de lideranças expressivas, é o que de mais positivo temos no momento atual. Refaz a esperança de encontrar o caminho certo, pois os ideais socialistas permanecem.

Ponto de inflexão

Para muitos, no início do PT, a democracia era instrumento tático para levar à "ditadura do proletariado". Não poucos defendem isto até hoje no partido que se diz democrático, mas convive com essas opiniões. Há quem diga que a ditadura do proletariado é a verdadeira democracia.

Lula, recentemente, no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, disse que o PT é muito democrático e, por isso, as reuniões "duram 4 horas" e declarou não querer "que ninguém saia" e que até o 1º Congresso é "proibido proibir", afirmando que a "maioria do PT é democrática". Pelas afirmações do líder máximo do partido, podemos analisar a questão-chave, o divisor de águas, que é a posição perante a democracia.

Não podem conviver eternamente no mesmo partido, setores democráticos e antidemocráticos, ainda que minoritários. A contradição paralisa, gera desunião, desconfianças na sociedade, inviabiliza alianças etc. Por isso, os antidemocráticos devem sair.

A democracia que queremos é a clássica e universal, decorrente das lutas sociais por direitos e liberdades que levaram à Revolução Francesa. O voto é direito de cada cidadão, seja ele operário, pequeno ou grande burguês, camponês etc. Ou seja, queremos a democracia sem adjetivos, sem subterfúgios, desacompanhada dos epítetos "burguesa", "proletária", "socialista". Ao contrário, queremos que ela seja radical e intocável. É a democracia, discurso e prática, para uso interno e nas relações com outros partidos e a sociedade, que deve servir de condição sine qua non para admitir ou manter alguém filiado ao partido. Na defesa da democracia, justifica-se muito mais um acordo com forças de centro e direita democráticas e modernas do que com outras de esquerda autoritárias.

As sucessivas derrotas em eleições majoritárias refletem as desconfianças e restrições da sociedade a um projeto de socialismo ultrapassado ou no mínimo mal-definido. A expressiva votação na legenda e nos candidatos a deputado expressam a confiança parcial desta mesma sociedade, para que continuemos ajustando nossos projetos até torná-los aceitáveis. É também o reconhecimento do PT como o único partido político digno desse nome, e do trabalho sério, honesto, digno de nossos parlamentares. Mas são nas eleições majoritárias que a sociedade opta por projetos políticos, e essas perdemos todas. Não é culpa do povo, do poder econômico ou dos meios de comunicação. Fosse assim, teríamos que desistir de fazer política, pois nenhum desses fatores vai mudar a curto prazo.

Ditadura de grupos

No plano interno o PT é uma verdadeira federação, já que a única democracia que existe é a dos grupos e tendências. Controlando um diretório aqui, outro acolá, organizam-se para eleger delegados, disputar poder, exercendo ditadura sobre independentes e a massa de simpatizantes e filiados que não tem mecanismos ou possibilidade de influenciar. Às vésperas de encontros, montagem de equipe administrativas ou grandes decisões, as disputas se aguçam.

Discursos ideológicos disfarçam interesses corporativistas, disputas de cargos e poder. Adesões de última hora são recebidas sem muito questionamento na indicação para cargos administrativos - quem nomeia, por decisão própria ou imposição do partido, leva em conta mais a divisão de poder pelos grupos e tendências, relegando a um plano secundário critérios como experiência ou competência.

A luta implacável entre alguns grupos decorre também da lógica do autoritarismo, que leva inevitavelmente ao dogmatismo, aos discursos fechados. Isso limita discussões, estimula intolerância, gera reuniões intermináveis e improdutivas, afastando militantes não-autoritários. Todos se dizem donos da luz sobre qualquer questão conjuntural, mas especialmente sobre o caminho que levará ao paraíso. A isso chamam "posições corretas" e no desespero de impô-las ao partido (e consequentemente à sociedade), ameaçado pelas posições incorretas ("liberal", "pequeno-burguesa", "aventureira", "oportunistas", "democratista"), entregam-se a uma luta de vida ou morte pelo poder. É a teoria da "farinha do mesmo saco" levada ao interior do partido.

Explicam-se então tentativas de manter a aparência de trabalhos inexistentes, representatividades fictícias, núcleos fantasmas, manutenção formal de diretórios só para eleger delegados. As cansativas discussões na luta pelo poder e a impossibilidade de influenciar levaram os que não são nem querem pertencer a grupos ou tendências a se afastarem e, desse modo, a estrutura de núcleos e diretórios se esvaziou.

O debate sobre a posição do partido no 2º turno, em São Paulo, levou muitos filiados, identificados com as "bases verdadeiras" (massas), a pugnar pelo voto em Fleury. A luta, porém, era desigual. Os grupos e tendências têm condições de fazer acordos, homogeneizar, mobilizar, divulgar e defender posições rapidamente. Os independentes tinham só o partido, ente abstrato nessa situação. O resultado foi que, enquanto a maioria dos grupos e tendências votavam em "nenhum dos dois" (nem Maluf, nem Fleury), os independentes se dividiam em "voto de protesto em Fleury", "voto em Fleury", "voto em Fleury com discussão de programa mínimo", "voto contra Maluf" etc. As eleições demonstraram que as direções e os diretórios realmente são instrumentos de grupos e tendências e não estão em sintonia com as bases que dizem representar e cujas determinações devem ser seguidas. O partido, que deveria ser democrático para as massas, virou democrático para quadros, grupos e tendências organizadas. A divisão de poder entre os grupos e tendências chegou a tal ponto que os encontros podem ser considerados formalidades dispensáveis.

É óbvio que o desenvolvimento de tendências é razoável e até necessário, mas só quando a reunião provisória de militantes que se identificam ocorre eventualmente, voltando-se para certas definições ou propostas de ação. Quando a tendência se define em todas as questões partidárias e age como se fosse permanente, passa a substituir o partido, pouco importando o nome que tenha ou objetivos que alega. É fundamental não só a exclusão dos grupos, mas o esforço constante para controlar e dissolver tendências que agem como se fossem permanentes. O único referencial deve ser o PT.

O centralismo democrático deve ir para o museu. Os filiados devem obedecer aos princípios básicos do partido e não devem contrariar reiteradamente as decisões. Há casos, porém, em que o partido não necessita - e nem pode submeter o militante, especialmente em conflitos eventuais (Fleury x Maluf, legalização do aborto etc.). Lula, em entrevista a Teoria & Debate nº 13, parece admitir o poder total do partido sobre todas as questões apreciadas e decididas. Isso nos parece autoritário. O cidadão, ao filiar-se a um partido, não se despoja totalmente de sua liberdade, opiniões e comportamentos. É perfeitamente possível que a prática política conviva com a esfera do privado e da individualidade. A submissão desejada é a voluntária e consciente.

Por fim, o poder dentro do PT deve pertencer ao que chamamos verdadeiras bases: militantes de movimentos sociais, filiados, simpatizantes, eleitores etc. É preciso encontrar fórmulas criativas para permitir a participação desse povo: plebiscito, pesquisa, aferição por amostragem, carta-resposta, seja lá o que for. Também os que recebem votação expressiva em eleições (eleitos ou não) devem ter poder. Se servem para representar os filiados em questões de importância constitucional, por que não dentro do partido? Como comparar a representatividade de um militante eleito por 10 ou 15 votos com outro que recebe 40 ou 50 mil? Os núcleos e diretórios seriam recuperados com essas alterações todas e manteriam uma parcela de poder correspondente à sua representatividade. Com essa nova estrutura, o PT iria à luta para conquistar não só a confiança de seus eleitores, mas a de toda a sociedade.

A divisão de poder entre os grupos e tendências chegou a tal ponto que os congressos podem ser considerados formalidades dispensáveis. É preciso encontrar fórmulas para que as verdadeiras bases tenham voz ativa.

Percival Maricato é advogado, fundador do PT e militante do Diretório Zonal de Pinheiros (São Paulo).

Prisioneiros da legalidade?

O PT está em crise. Reconhecer a existência dessa crise e discutir sobre sua natureza deveria ser um dos temas centrais da preparação do 1º Congresso. Seria fundamental, por exemplo, identificar se esta é ou não mais uma crise de crescimento e amadurecimento como pensam alguns otimistas incuráveis, ou se é uma grave crise política de identidade como nós afirmamos. Afinal, da profundidade e eficácia desse debate depende o futuro do mais importante partido de esquerda já construído no Brasil e no continente.

As mais sérias manifestações da crise aparecem na relação entre o partido e suas prefeituras. Estas atuam freqüentemente com orientações contraditórias com o programa do PT, inúmeras vezes fazem-no sem consulta, ou pior, rompendo resoluções de encontros. Há também muito desencontro entre o partido e os seus deputados. Talvez seja ainda mais grave a relação entre o partido e seus militantes na CUT e nos sindicatos. Inexiste hoje unidade política entre os petistas. Não há tática elaborada pela direção que seja aplicada.

Do movimento sindical surge um dos exemplos mais desastrosos para demonstrar esta situação. No segundo semestre de 1990, um setor importante de militantes petistas que conduz a CUT aceitou e orientou a Central a ir às reuniões do Pacto Social com o governo Collor e os empresários. Ao mesmo tempo, o Diretório Nacional aprovou uma resolução política explícita condenando o pacto e não reconhecendo aquele fórum como de interesse dos trabalhadores.

Em São Paulo, diante da maior greve da história do Sindicato dos Condutores, que pediam apenas o cumprimento do acordo assinado, ou seja, o reajuste pelo índice do Dieese, a prefeita foi à TV acusá-los de marajás e ameaçá-los com demissões em massa. Assim, Luiza Erundina não somente atropelou a tradição do PT (que a elegeu), como desperdiçou mais uma extraordinária oportunidade de apoiando-se na luta dos motoristas - denunciar a maioria reacionária da Câmara Municipal que vetou o Projeto de Tarifa Zero, e, ao mesmo tempo, responsabilizar o governo Collor pelo congelamento dos salários. Fez o contrário: usou contra os motoristas os mesmos argumentos que a Petrobrás usou contra os petroleiros. Uma vergonha!

Os exemplos demonstram que o partido não vem agindo como partido e acaba tendo muitas caras. Isto é o oposto do que até agora foi o PT perante a sociedade. O nosso partido surgiu como fenômeno político, consolidando-se com o perfil de partido coerente, onde entre a palavra e a ação, o discurso e a prática, primava a unidade. Nosso partido foi visto como algo diferente: novo, coerente, honesto e legítimo representante dos interesses e das esperanças de milhões de trabalhadores. Desgraçadamente, esta imagem está abalada.

Qual é, então, a crise do PT? Para nós, é uma crise de identidade que tem raiz na relação do partido com os aparelhos onde atua: prefeituras, Legislativo e, ainda que de uma forma diferente e contraditória, com os sindicatos. A gravidade da nossa crise faz com que a pressão desses aparelhos seja maior que o partido, maior que o seu programa, suas instâncias, suas resoluções e sua militância. Este fenômeno vem trazendo uma crescente adaptação do partido ao status quo da institucionalidade democrático-burguesa. Essa é a origem da defesa embriagada que muitos petistas fazem da democracia entendida como respeito ao sufrágio universal, modelo parlamentar, divisão dos três poderes - em resumo, do Estado burguês na sua forma atual: uma democracia formal.

Essa adaptação traz, inevitavelmente, a diluição do perfil partidário e, num partido com a origem e base social do nosso, fragmentação política. Características, aliás, comuns nos partidos que fazem sua atividade girar em torno das limitadíssimas regras do jogo das "democracias capitalistas".

Basta ver o destino trágico da social-democracia francesa e espanhola e do eurocomunismo italiano, que durante anos se adaptaram à legalidade. Incorporaram-se à defesa do regime de tal forma que, só para citar um exemplo recente, apoiaram vergonhosamente as decisões da ONU e de seus governos imperialistas na recente guerra do Golfo Pérsico.

Esta compreensão dos limites da democracia burguesa não é só, nem principalmente, nossa. Era a dos marxistas do início do século, como Rosa Luxemburgo, que dizia: "Igualdade de direitos políticos, democracia!, eis o que não cessavam de repetir durante dezenas de anos os grandes e os pequenos profetas da dominação de classe burguesa (...) Sim, mas trata-se precisamente de a realizar agora. Pois a palavra de ordem 'igualdade de direitos políticos' só se tornará realidade no momento em que a exploração econômica tiver sido extirpada radicalmente. E 'a democracia' - enquanto poder exercido pelo povo - só começará no dia em que o povo trabalhador tomar o poder. É preciso fazer a crítica prática, a crítica tomada ato histórico, das frases de que abusaram as classes burguesas durante um século e meio. É preciso que a 'liberdade, igualdade e fraternidade' que a burguesia proclamou na França em 1789 se tornem pela primeira vez realidade - pela abolição da dominação de classe da burguesia. O primeiro ato desta ação libertadora será declarar alto e forte perante o mundo inteiro e perante os séculos da história universal: o que passava até o presente por igualdade e democracia, isto é o Parlamento, a Assembléia nacional, o boletim de voto para todos, era uma mentira! Todo o poder, arma revolucionária da destruição do capitalismo, às massas trabalhadoras - essa é que é a única e verdadeira igualdade, essa é que é a única e verdadeira democracia!" (O Estado burguês e a revolução).

Em síntese: o nó da questão está em ceder ou não às enormes pressões que os aparelhos, onde nosso partido atua, exercem sobre nós. Isso se traduz em agir, raciocinar, nos limites da legalidade burguesa, respeitando a ordem e agindo "nos conformes" da institucionalidade.

Vale a pena delimitar um marco no tempo para entendermos a partir de quando esta pressão se faz mais forte. Até 88, tínhamos uma ação e uma relação quase exclusiva com os aparelhos sindicais. A própria origem e formação do PT está ligada à ação de milhares de companheiros no movimento sindical e popular, com sua tradição de luta, suas greves heróicas, sua vanguarda politizada violentamente antipatronal. Até então, sofríamos, é verdade, a pressão e as contradições do enorme aparelho sindical herdado do modelo getulista. Com a queda dos velhos pelegos e o surgimento da CUT, dezenas de milhares de petistas saíram da produção e se profissionalizaram em dirigir máquinas que movem milhões de cruzeiros diariamente, atrelados por vários mecanismos à estrutura do Estado e com muitos vícios. Até hoje, isto é uma fonte de enormes problemas, basta citar que há sindicatos dirigidos por petistas onde não existe proporcionalidade sequer para se eleger os delegados aos Congressos da CUT.

Mas, a partir de 88, passamos a viver uma realidade nova. A pressão do aparelho sindical, mesmo quando sobrevive a uma estrutura essencialmente burocrática no seu interior, é uma pressão de uma organização operária. As vitórias eleitorais colocaram enormes desafios e perigosos riscos. São hoje trinta prefeituras com suas inúmeras secretarias e cargos de confiança, são mil vereadores pelo país, 36 deputados federais e aproximadamente oitenta estaduais com os seus milhares de assessores. Estamos submetidos a uma tremenda pressão que é a das instituições do regime e do Estado burguês. Aqui está o problema! Reconheçamos que a esta situação, o partido vem respondendo mal.

As eleições de outubro de 90, com milhões e milhões de votos nulos, foram um sinal evidente de que as massas são e vão ser implacáveis com os que abandonam suas reivindicações, esperanças e anseios. E, tenhamos claro, sem este poderoso, generoso e selvagem movimento operário e popular, que luta encarniçadamente há mais de dez anos contra governos, planos e leis do regime, o nosso partido não será nada. Ou, no melhor dos casos, será uma sombra desse passado.

Volta às origens

Dentre as muitas concepções sobre o que deve ser feito para superar a crise, uma merece particular atenção: a tese de refundação do PT, que se daria a partir do 1º Congresso do partido.

Os autores dessa tese tiveram o mérito de perceber que existe uma contradição entre o que o PT foi e o que está sendo. O problema é que encontram uma solução, digamos, pela "negativa". Ou seja, tratam de desenvolver ideologicamente até o limite a adaptação à legalidade. Não por acaso hoje se apresentam e alcançam repercussão as idéias que deserdam do marxismo.

Este é um segundo mérito dos refundadores: não escondem que a defesa radical que fazem da política das prefeituras, sendo São Paulo o maior e talvez o pior exemplo, exige a ruptura com o marxismo.

É o que expressam as elaborações da tendência Nova Esquerda sobre a Reforma do Estado e as insistentes tentativas dos economistas e técnicos pragmáticos do partido para estabelecerem um programa de emergência, de saída, para a crise nos limites do atual sistema capitalista e suas leis. A recente tática parlamentar da bancada petista no Congresso Nacional, em busca de um acordo menos ruim para a lei salarial, foi um claro exemplo da "tentação pragmatista".

Tanto as elaborações sobre a Reforma do Estado quanto os programas de emergência são, na verdade, tentativas de estabelecer um programa mínimo para o partido, no melhor estilo da social-democracia do final do século XIX, quando o capitalismo estava no auge da sua etapa reformista (e as concessões ao proletariado eram possíveis e duradouras).

O problema é que esta etapa se encerrou ainda no primeiro quarto do século XX. Disto os nossos dias oferecem uma inequívoca demonstração. Basta observar as condições de vida da própria classe operária brasileira. Apesar de mais de uma década de intensas mobilizações, nunca como agora os trabalhadores estiveram tão mal no que diz respeito às suas condições de vida. Aumentaram brutalmente o número de desempregados, a mortalidade infantil e as perdas salariais. Voltam doenças que já haviam sido erradicadas há décadas, como revelam as epidemias de dengue e cólera. Ou seja, aumenta a decadência estrutural da economia e do sistema capitalista brasileiro como parte de um sistema econômico mundial que está fazendo a humanidade retroceder e nos conduzindo de fato para a barbárie social.

É o que descreve e interpreta o economista e dirigente marxista Ernest Mandel, em seu livro O significado da Segunda Grande Guerra Mundial: "O preço que a humanidade deve pagar pelo adiamento do socialismo mundial, pela sobrevivência do capitalismo em decadência, torna-se cada vez mais aterrorizante. A tendência de se transformarem forças produtivas em forças de destruição não se impõe apenas periodicamente em crises de superprodução e em guerras mundiais. Cada vez mais se impõe inexoravelmente nos campos da produção, do consumo, das relações sociais, da saúde (inclusive saúde mental), e sobretudo na ininterrupta sucessão de guerras locais. Esse preço global em sofrimento humano, em morte e em ameaças à sobrevivência mesmo da humanidade, é mais uma vez assombroso. Supera de longe tudo o que se viu na Primeira e na Segunda Guerra Mundial".

Para isto, não há programa mínimo que dê jeito. O que precisamos para esta etapa do capitalismo é de um programa que parta da consciência imediata da classe com suas reivindicações imediatas e as una às suas necessidades históricas. Um programa que construa uma "ponte" entre o imediato e o necessário para acabar com estes sofrimentos. Um programa anticapitalista que ajude a classe a concluir que só é possível superar a miséria e a degradação se ela tomar o poder político e começar a construir uma sociedade ordenada em outra relação de produção social, uma forma superior de civilização.

E aqui está o grande problema que os nossos refundadores, com suas reformas e propostas de emergência, não podem resolver: o problema do poder, que é essencialmente um problema político e não econômico, porque diz respeito a qual classe social vai ter que dirigir e controlar o Estado e o governo. E quais conflitos e rupturas entre as classes serão necessários para se chegar ao poder. Ou pelo menos, para se chegar a um governo que aplique o programa do 5º Encontro Nacional do PT (antimonopolista, antiimperialista, antilatifundiário). Na verdade o centro da tese dos refundadores e toda sua lógica conduzem a uma mudança no programa do partido, uma ruptura com o passado para levar a adaptação à legalidade burguesa até o fim.

Para dar vida e fundamentação teórica para suas posições os refundadores elaboram conceitos reducionistas esquisitos, como o da modernidade. Esta modernidade nada mais é do que respeito às leis, à institucionalidade e ao regime democrático constituído. Fascinados ainda pela Revolução Francesa e sua máxima, de que "Todos os homens são iguais perante a lei", nossos companheiros se esquecem que o capitalismo jamais garantiu isto em lugar nenhum em tempo algum. Os próprios franceses foram os primeiros a se dar conta disso quando em 1848 (60 anos após a Revolução Francesa) saíram às ruas reclamando direitos já então totalmente usurpados pela burguesia. Os 14 milhões de cidadãos que vivem hoje no estágio de pobreza absoluta nos Estados Unidos da América devem ter muito a nos dizer a respeito da igualdade dos homens perante a lei. No Brasil, basta dizer que enquanto militantes e lutadores como Romildo, Boni e os companheiros sem-terra do sul estão na cadeia, gente como Naji Nahas e Castor de Andrade - que são gângsters e não subproduto da miséria capitalista – gozam em plena liberdade dos seus privilégios e da sua "igualdade dos homens perante a lei".

Nós, da Convergência Socialista (CS), queremos muito mais do que a simples igualdade perante a lei. Nós reivindicamos o direito de, em nome da legitimidade das reivindicações da maioria, desafiaras muitas leis da minoria. Acreditamos que as maiorias trabalhadoras e oprimidas, com seus direitos históricos, são superiores aos limites das leis. A história ensina que as leis são efêmeras, conjunturais, que nada mais são do que uma expressão jurídica de uma correlação de forças entre as classes sociais. Ao contrário dos nossos reformistas que querem aprisionar o PT à institucionalidade com a teoria da refundação, nós achamos que as palavras liberdade e igualdade não rimam com capitalismo. Para nós, na essência, a luta pela liberdade é a luta contra a propriedade.

O problema a que teremos que responder é, portanto, o seguinte: queremos um partido que obedeça e se adapte aos limites da institucionalidade burguesa, ou queremos um partido que privilegie a ação direta das massas populares, que saiba atuar na legalidade sem se render aos seus limites, buscando ir sempre mais além com uma estratégia clara de levar os trabalhadores ao poder político? Sem resolver este dilema, não vamos superar a crise de identidade política que está paralisando o PT.

A crise do partido é, então, fruto das enormes e estranhas pressões que sofremos dos aparelhos em que atuamos. É, portanto, uma crise regressiva. Porém, este fenômeno é contraditório, pois ao mesmo tempo em que somos atingidos por esta crise, a esquerda marxista revolucionária cresce. Isto é uma demonstração de que o PT é um grande partido, que tem energias inesgotáveis. A esquerda cresce porque em primeiro lugar representa a continuidade histórica da luta contra o stalinismo e a social-democracia.

Na nossa opinião, isto se dá pela simples razão de que milhares e milhares de militantes querem um novo equilíbrio no partido. Sabiamente já perceberam que o partido está cedendo, se descaracterizando, se dispersando politicamente devido às pressões da sociedade burguesa e suas instituições. A Articulação não é mais capaz de dirigir sozinha o PT. A corrente majoritária se esgotou e é parte fundamental da crise de identidade do PT. A rigor esta crise está instalada no interior dessa corrente petista.

Nesse sentido, o crescimento da CS e da esquerda petista é parte de um movimento que vai no rumo de uma nova direção para tirar o partido da crise.

O PT precisa de uma nova direção que resista às pressões da institucionalidade, que seja capaz de intervir na legalidade sem se adaptar a esta. Para que o PT seja capaz de evitar os erros simétricos da esquerda brasileira, que nos anos 50 seguiu o PCB e sua política de adaptação aos partidos burgueses e ao regime, e que nos anos 60 pegou em armas desprezando a necessidade de lutar pela consciência de milhões de trabalhadores. Para que o PT seja capaz de se preparar para as grandes lutas que virão, as decisivas.

O partido necessita de uma nova direção que saiba intervir na legalidade tratando ao mesmo tempo de burlar os seus limites. Não queremos que o PT seja um apêndice, um satélite dos aparelhos. Hoje a realidade está sendo esta: dependemos da ação dos prefeitos para ganhar (ou perder) eleições, dependemos dos sindicatos para intervir na luta de classes e dependemos dos parlamentares para garantir a sustentação financeira do partido. Isto nos leva à impotência, à perda de iniciativa política, à dispersão. Este é o caminho da nossa ruína. Mudemos antes que seja tarde demais!

Valério Arcary é membro do Diretório Nacional do PT.

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