EM DEBATE

Lula lidera hoje todas as pesquisas de opinião sobre as eleições presidenciais do próximo ano. Ao mesmo tempo, os setores conservadores ainda não conseguiram, até o momento, um nome "confiável", que os represente e seja capaz de empolgar o eleitorado nacional nessa disputa, que será necessariamente - pelo que tudo indica - polarizada, de um lado, por um representante dos interesses dos trabalhadores e da maioria do povo e, de outro, por um candidato das forças conservadoras e da reação.

Esse quadro está traçado desde o segundo turno das eleições de 1989. E a crise política que culminou com o afastamento de Collor e a posse de seu vice, aliada à profunda crise econômica, apenas reforçou a tendência já esboçada há quatro anos.

Mais do que nunca, portanto, caberá ao PT ter clareza sobre o programa de governo que apresentará ao conjunto da sociedade durante a campanha, e também de como e com quais setores ampliar suas alianças. Somente assim seremos capazes de atingir dois objetivos: primeiro, ganhar as eleições presidenciais do próximo ano; segundo, governar o país e imprimir mudanças políticas e sociais que sejam base para transformações em direção à democracia e ao socialismo.

Preocupada em contribuir para a consecução desses objetivos, Teoria & Debate, em sua edição anterior, trouxe a discussão sobre alguns dos mais importantes temas colocados pela questão. Daquela vez apresentamos as opiniões de Rui Falcão, Ozeas Duarte e Markus Sokol. Agora, as contribuições são de César Benjamin e Cristovam Buarque. Os dois textos que apresentamos a seguir foram editados por T&D, a partir de entrevistas concedidas por Benjamim e Buarque a Antonio Martins e Antonio Carlos Queiroz, respectivamente.

Ambas as entrevistas foram feitas a partir de uma mesma pauta, e a seleção das respostas e sua edição definitiva são de nossa inteira responsabilidade, não tendo sido submetidas aos entrevistados.

O caráter da polarização

Por um novo e longo ciclo

O caráter da polarização

A sucessão de Itamar Franco pode ser polarizada de duas formas diferentes porque existem dois tipos de esquerda. Uma é a esquerda que se preocupa com a redistribuição entre capital e trabalho, entre lucro e salário. Com essa, se houver polarização, não será muita, porque uma grande quantidade de empresários já percebe que, hoje, uma maneira de ter lucro é com uma redistribuição dentro do sistema, entre lucro e salário.

E há uma outra esquerda, que pensa em fazer uma revolução nas prioridades nacionais. Essa sabe que a solução dos problemas das grandes massas brasileiras não virá, nem apenas, nem sobretudo, pelo aumento de salários. Porque aí só cabem 20 milhões dos 70 milhões de trabalhadores, ou pessoas em idade de trabalhar, do Brasil. A distribuição real não é de renda, é de benefícios, é distribuição do acesso à modernidade. Luto para que a polarização seja não apenas entre capital e trabalho, salário e lucro, mas também entre concepções de país.

A retomada do desenvolvimento não levará o Brasil a um bom caminho, se não soubermos de que tipo deve ser. Desenvolvimento o país já teve durante os vinte anos de governo militar, teve até um milagre. 0 que está em jogo é qual o desenvolvimento e não como desenvolver. Os tecnocratas querem retomá-lo. Nós queremos redefinir o tipo de desenvolvimento. O PT não é o partido para retomar o desenvolvimento, o PT reorientar o desenvolvimento brasileiro. Hoje, a pergunta a ser feita no Brasil não é como crescer, mas sim para onde crescer.

Devemos trabalhar com a idéia da revolução nas prioridades, a partir de uma concepção que, na falta de outro nome, podemos chamar de modernidade ética, em contraposição à modernidade técnica, à qual ainda estava preso o programa dos 13 pontos de 1989.<--break->

Seis pontos definiriam uma sociedade eticamente moderna: democracia, fim do apartheid social, equilíbrio ecológico, eficiência econômica - até mesmo para produzir o supérfluo -, descentralização das atividades sociais no país e caminhar para uma abertura em relação ao exterior, sobretudo no plano cultural.

Um desses seis pontos, o fim do apartheid social, eu divido em seis objetivos que deveríamos cumprir, garantindo a todos os 150 milhões de brasileiros acesso a alimentação, educação básica, saúde-básica, transporte urbano compatível com o nível de salário e renda, uma justiça igual e a direito a ter um lugar onde construir sua casa sem dele ser expulso. E esse lugar deve ser limpo, o que significa saneamento, água potável e coleta de lixo.

Nosso plano deve ter cinco capítulos: "os próximos 20 anos", "os próximos 10 anos", "as nossas metas para 5 anos", "os primeiros 100 dias no governo", "as primeiras 100 horas no governo" e as primeiras medidas que o governo do PT tomará. Mas aí alguém fala que se dissermos tudo o que vamos fazer, perderemos a eleição. E no caso eu afirmo que é melhor perder. É melhor porque isso significa que o povo não quer as medidas que propomos; ou então pode até querer, mas está sendo manipulado, o que significa que não teremos força suficiente para implantá-las. O país pode esperar mais alguns anos para o PT chegar ao poder, mas não esperar que o PT chegue ao poder e não faça o que deve ser feito.

Temo que a elaboração do programa do Lula fique entre dois grupos, a meu ver perigosos. Um querendo saber apenas como desenvolver - caindo na tecnocracia, sem conseguir dar uma resposta melhor do que Delfim Neto daria. Outro grupo fica apenas com a idéia de que o PT vai executar velhas bandeiras: distribuir a renda - e não reorientar o produto -, melhorar o nível de vida dos trabalhadores e não de todo o povo.

A estabilidade monetária não pode se constituir na razão de ser do PT. Para isto não precisamos de Lula. Basta um ministro como aquele da Bolívia, que deixou muita gente morrer de fome e aí acabou a inflação. Trata-se de formular um projeto nacional onde uma das variáveis, um dos objetivos, seja a estabilidade monetária. E tecnicamente, para falar como economista, esta estabilidade não vai se fazer dentro do universo da moeda.

A inflação brasileira não é causada pela moeda, mas pela desestruturação social. Quando afirmarmos que a terra deve ser usada para alimentar, e subordinarmos a propriedade da terra a um projeto de Nação, no qual não haja fome, a inflação diminuirá porque haverá redução dos preços dos alimentos. Quando tivermos uma política econômica que não use tanto petróleo, importaremos menos e conseguiremos controlar os preços. Quando tivermos uma política que faça com que os juros não sejam apenas instrumento de enriquecimento dos bancos, mas sim de eficiência no consumo atual ou no consumo futuro, aí começa a diminuir a inflação. Quando o Estado brasileiro não gastar mais do que pode - e muitos grupos de esquerda não percebem este limite-, começaremos a controlar a inflação, que tem que ser vista como parte de um projeto global do destino nacional e não como um problema técnico da moeda.

Hoje as elites estão divididas porque não têm um projeto de Nação, hegemônico, que as unifique. Prestigiar os banqueiros ou os industriais? Que tipo de industriais? Os latifundiários ou os produtores agrícolas? Os produtores para o mercado interno ou externo? Eles estão perplexos. Nossas elites defendem ou não o apartheid social? Os brancos da África do Sul viveram uma situação parecida antes de 1950. Não sabiam o que fazer com os negros, até optarem pelo apartheid. A partir daí se uniram. As diferenças eram detalhes, estavam concentrados e unidos em relação ao apartheid. Hoje, os brancos da África do Sul estão novamente divididos, porque não sabem se defendem ou não o fim do apartheid. Prevalece até agora a parcela que parece mais lúcida do nosso ponto de vista, mas não sei se a mais lúcida do ponto de vista dos interesses dos brancos.

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No Brasil, as elites vão continuar divididas porque se esgotou o seu projeto de modernidade para o país. Então, acredito que não preocupa como nos comportamos diante delas. Devemos nos preocupar, isto sim, em como nos comportar diante do povo brasileiro, com o futuro da Nação brasileira. Quando definirmos isto, não tenho dúvida de que alguns que estão na direita vão estar mais próximos de nós do que alguns dos mais próximos aliados que temos hoje, que não têm consciência do sacrifício que vão ter que fazer para construir um Brasil novo.

Aliás, o grande pacto deste país não passa por alianças de siglas, mas por alianças de projetos. Hoje há no Brasil três grupos. Um grupo que vamos chamar de elite empresarial: latifundiários, banqueiros, grandes empresários. Um outro grupo constituído pelos trabalhadores do setor moderno: metalúrgicos, professores universitários, médicos, funcionários de estatais. E um terceiro grupo, o dos excluídos.

O que percebemos no debate interno do PT, entre esquerda e direita, é que um grupo, preocupado com a governabilidade, quer uma aliança com um setor empresarial. Outro grupo, a chamada esquerda, quer avançar as conquistas dos trabalhadores do setor moderno. Proponho que pensemos de outro modo: O PT deve se transformar numa ponte entre os trabalhadores do setor moderno e os excluídos desse país (isso é mais do que uma aliança), convivendo, em conseqüência disso, com alguns setores empresariais. Não precisamos de uma aliança com eles. Com eles convivemos.

Por exemplo, uma ponte entre os trabalhadores do setor moderno e os excluídos é um programa de educação que garanta uma boa escola para todas as crianças deste país. Isso interessa aos trabalhadores do setor moderno, que não estão podendo pagar escola, e quando conseguem pagá-la, ela é de má-qualidade; e interessa aos excluídos, que nem escola têm. Se fizermos esta aliança, vamos conviver bem com alguns setores empresariais. Por exemplo, os produtores de videocassete e os de móveis vão ter interesse em vendê-los para as escolas. Então, uma série de setores empresariais não se alinham, convivem.

Por isso, acho mais correto definirmos a pauta que vai permitir a ponte entre os excluídos e os incluídos. Depois, quais são as convivências para isso. Há convivências impossíveis. Não vejo como conviver com latifundiário improdutivo, com banqueiros. Mas com os outros setores dá para ter uma ampla convivência. Quais são os partidos? Eles virão.

A discussão é se o discurso, as propostas, a pauta do PT devem ou não caminhar para algumas coisas que pessoas do PSDB, do PDT, do PCdoB, do PPS, do PCB, do PV e até do PMDB, PFL, têm a dizer. Devem ou não? Detemos a verdade? A verdade é apenas a defesa do salário? Ou a verdade é a defesa do projeto utópico? Então vamos ver o que os outros estão dizendo que possa nos interessar. Se, de fato, chegarmos à conclusão de que algumas coisas que eles dizem têm a ver com os interesses do povo, da Nação brasileira, tentaremos nos aproximar.

Do nosso ponto de vista, a questão é saber quais os pontos comuns - por exemplo - entre os projetos de Lula e Brizola. Se há pontos comuns, não vejo por que não brigarmos para que eles estejam juntos. É claro que política não se faz só com lógica, existe uma empatia (ou não) entre as pessoas que fazem política, especialmente entre os líderes, os candidatos. Pode estar tudo de acordo, e eles não se gostarem, terem mágoas do passado, e nenhum dos dois conseguir superar isto, daí não podemos esperar dez anos de psicanálise para cada um deles.

No caso do Brizola, não tenho a menor dúvida de que temos que aprender algumas coisas com ele. Ele tem uma tradição de dar prioridade ao social, ainda que de maneira equivocada e, às vezes, manipulada. O Brizola tem comprado brigas das quais o PT tem fugido, como a briga em relação ao monopólio da televisão no Brasil. Tem um discurso muito claro, o que não vemos em muitos dos nossos. Sobre a idéia de Nação, por exemplo, Brizola fala mais nisso do que muitos petistas. Às vezes, o discurso de muitos militantes do partido é o de integrar o país ao Primeiro Mundo. Se for isso, não vai dar para todos.

O Brasil não tem que se integrar ou não lá fora, de início. Primeiro, tem que integrar a sua população. Mas para integrar sua população nas condições mínimas de vida e de liberdade, devemos ou não nos integrar ao Primeiro Mundo? Eu diria que não. Hoje, a preocupação de integração com o Primeiro Mundo, para não perder a chamada terceira revolução científica e tecnológica, exigirá a exclusão de 70% da população.<--break->

O Primeiro Mundo não aceitará nem 30% dos brasileiros no seu nível de consumo, pois ultrapassada essa quota, aumentará o preço do petróleo, a sujeira dos mares, o buraco na camada de ozônio.

Isto significa que o Brasil ficará excluído do planeta? Não. Quando o Brasil descobrir como é que integra a sua população, dará uma lição à civilização atual, sobre como integrar os excluídos em nível planetário. E se o Brasil conseguir formular uma proposta de integração da sua população, não poderá ser cortando suas relações com o exterior.

Essas relações internacionais, no entanto, têm que estar subordinadas a objetivos nacionais, como acabar com a fome, garantir escolas a todas as crianças, saneamento, saúde sem que o doente tenha que enfrentar fila etc.

Temos que nos preocupar com a integração dos brasileiros com os brasileiros, e não em como integrar metade dos brasileiros com os europeus. É um equívoco essa preocupação de uma parte do PT, de se perderemos ou não a terceira revolução científica e tecnológica. Devemos querer saber se perderemos ou não a luta contra a fome, a luta por ter todas as crianças na escola, se perderemos ou não a luta contra o apartheid, dos países ricos contra os habitantes pobres dos países pobres, e o apartheid dentro da África do Sul e dentro do Brasil.

Vamos ter que proteger nacionalmente, do mesmo jeito que os Estados Unidos protegem. Eu nunca vi um norte-americano falar em privatizar a Nasa, em vendê-la aos japoneses. O sujeito que, no Congresso americano, propusesse vender a Nasa ao capital internacional, seria preso, iria para a cadeira elétrica. Mas, no Brasil, temos deputados que propõem privatizar a Telebrás.

Nenhum país do mundo se desenvolveu importando tecnologia livremente. A Coréia, que é o exemplo contemporâneo, citado pelos incompetentes ou mentirosos defensores da abertura, é um país fechado, que criou uma base tecnológica própria, em que nenhum carro chama-se Volkswagen, Ford, ou Chevrolet.

O fato de o Brasil ter saldo na balança comercial é um dado positivo e mostra uma dinâmica. O erro é que usa esse saldo para pagar a dívida, e não para importar algumas coisas de que precisamos, para investir e aumentar a capacidade dos centros de pesquisa brasileiros.

O que não podemos imaginar é que o futuro do país seja a exportação. O futuro do Brasil está dentro do Brasil. Mas não um Brasil fechado, que olha para dentro, sem deixar de flertar com o exterior. O problema do país é que ao invés de flertar com o exterior fazendo amor consigo próprio, faz um amor subordinado ao exterior. E nem ao menos flerta para dentro. É isso que está faltando: ter uma proposta para dentro, sem romper com o exterior.

Não podemos ter um projeto só dos excluídos, contra os trabalhadores do setor moderno, como até certo ponto foi o movimento negro na África do Sul, que não incorporou os trabalhadores brancos, nem tinha por quê. Por outro lado, incorporar só os trabalhadores do setor moderno, sem o povo, não está correto. Nosso problema é definir uma pauta de unidade entre os trabalhadores do setor moderno e as massas excluídas.

No Brasil, há contradições entre os interesses do setor moderno, sindicalizado, e as massas excluídas. Por exemplo: para manter o privilégio que eu tenho como professor universitário de me aposentar aos trinta anos de serviço, alguém tem que pagar. Em geral, quem paga são os excluídos, que deixam de receber recursos públicos para suas necessidades.

Às vezes, eu até gosto de dizer que os trabalhadores do setor moderno ficam encabulados com grande parte de suas lutas. Porque eles sabem que não são, como eram durante a ditadura, lutas a favor de todo o povo. Fazemos greve de ônibus, o povo sofre; fazemos greve de médico, o povo sofre; greve de diversos setores, o povo sofre. O papel do partido de esquerda é descobrir como unir essas duas categorias do povo brasileiro: os excluídos e os trabalhadores do setor moderno.

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A ameaça de um golpe, como o desfechado no Chile há vinte anos, só pode ser afastada na medida que o PT tiver um projeto que consiga um grau razoável de hegemonia, como dizem os sociólogos, junto à população brasileira. Mas é muito medíocre um governo, numa crise como a brasileira, que se limite a evitar o golpe. Ele tem que ir mais longe, tem que fazer com que o governo que sucedê-lo continue comprometido com os mesmos princípios. Se Lula conseguir ter um projeto que se sintonize com a maioria da população, a direita não só não vai dar o golpe, como - aí vou dizer uma coisa que pode criar muita polêmica - vai comprar esse projeto.

E o momento é favorável para isto. Há pouco tempo, duas coisas impediam que um projeto das esquerdas tivesse algum grau de hegemonia junto à maioria da população. Primeiro, porque ele era imitativo do exterior, especialmente da visão, do socialismo do Leste Europeu, e isso acabou. Logo, podemos compor o nosso socialismo, a nossa proposta, a nossa visão de mundo, que não pode ser materialista, como defendíamos antes. Eu posso ser materialista, mas não o partido, numa população de religiosos, de umbandistas, de espiritualistas e católicos, como é a população brasileira.

Segundo, o mundo não está mais preocupado com a Guerra Fria. Até pouco tempo, fazer uma reforma agrária neste país ameaçava a segurança norte-americana, porque os americanos diziam: "reforma agrária é coisa de comunista" e "comunista é coisa de foguete com ogiva nuclear olhando para Washington". Ninguém está mais preocupado com isto. Não descarto que os norte-americanos sejam os próximos defensores da reforma agrária no Brasil.

A crise do atual modelo é tão forte que quase todos neste país estão querendo um novo Brasil. Exceto aqueles que tomam um avião na sexta-feira, ficam o fim-de-semana em Miami e voltam na segunda. Estes não têm que se preocupar com o Brasil. Agem mais ou menos como a elite da Velha República, cujos interesses estavam na Europa. Exceto estes, eu acho que todo mundo neste país está atrás de um projeto hegemônico. E possível termos um projeto hegemônico que incorpore as grandes massas no mínimo aos benefícios essenciais da modernidade, e que mantenha algum grau de privilégio de consumo aos trabalhadores do setor moderno e das elites.

O momento é favorável para redefinirmos o próprio conceito de igualdade, embora estejamos presos à idéia de igualdade como sendo igualdade de consumo: todo mundo ter acesso aos bens de consumo suntuosos. Assim, não vai dar para todo mundo. Se temos um compromisso com a democracia e com a liberdade, dá para tolerarmos a desigualdade de consumo dos bens supérfluos, em troca de que todo brasileiro tenha acesso ao mínimo básico.

Se socialismo é a desapropriação das fábricas pelos trabalhadores, no Brasil, quero que saibam, eu não sou socialista, porque seria um socialismo reacionário, de brancos, de ricos, de privilegiados. Distribuir as fábricas para os trabalhadores significa distribuí-las apenas para 20 milhões deles, excluindo os outros 50 milhões, que nem trabalhadores conseguem ser, ou nem conseguem trabalhar em fábricas ou no setor moderno.

Então, é preciso redefinir os objetivos. É possível até que a palavra socialismo se mantenha. Mas é possível que surja outra. Por que devemos nos manter presos a uma palavra comprometida com a civilização industrial? O socialismo é filho da revolução e da civilização industrial, que não dá valor à ecologia, que não é apenas exploradora, como também excludente.

O socialismo surgiu em nações que não eram excludentes, o socialismo não surgiu na África do Sul. Observamos um detalhe interessante: hoje ganha a opinião pública nos países árabes, não o socialismo, o fundamentalismo. Se eu fosse árabe, penso que não seria socialista, seria fundamentalista. Então, acho que devemos ter um fundamentalismo brasileiro: uma filosofia, uma ideologia, brasileira. Mas não xenofobia brasileira porque o Brasil é uma retrato da civilização do final do século.

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Recentemente, li um artigo de um intelectual e militante egípcio, onde ele dizia que quando falava de Marx, em Marx, sobre Marx, era entendido por 1% da população. Então ele passou a falar num poeta do século VII, e todos os árabes e egípcios passaram a entendê-lo. E ele não descaracterizou seus ideais. Passou a falar a linguagem do povo. Isto, eu acho que, em parte, falta hoje ao PT; falar a linguagem do povo.

O PT não pode transigir com seus objetivos. São eles: compromisso radical com a democracia, compromisso radical com a incorporação de todos os brasileiros no mínimo essencial, para que não tenha fome, tenha escola, saúde, onde morar, uma justiça igualitária, para que possa pagar o transporte de sua casa ao trabalho. Se conseguirmos isso, o nome dessa nova utopia vai surgir. Como Nierere formulou uma para a Tanzânia, como Nasser formulou uma para o Egito, como Lenin formulou uma para a Rússia do seu tempo, nós formularemos a nossa.

Cristovam Buarque foi reitor da UNB, é pré-candidato ao governo do Distrito Federal e integra a Comissão de Programa de Governo.

Por um novo e longo ciclo

O programa de governo do PT deve partir da constatação da especificidade da crise brasileira. Por situação de crise todos os países passam, o Brasil já passou por várias. Existem crises que ocorrem em um dado modelo de sociedade, de acumulação, de arranjo institucional, e que pertencem à evolução desse próprio arranjo. Mas existem crises que sinalizam o esgotamento de um modelo e a necessidade da sociedade buscar um novo arranjo de conjunto. E a crise brasileira que se abre nos anos 80 é deste último tipo. Não se trata de uma crise interior a um modelo que ainda tenha uma longa vigência histórica pela frente.

Os anos 80 sinalizaram o fim de um longo ciclo, talvez de cinqüenta anos, aberto em 1930, fortemente marcado por um crescimento industrial muito rápido e por todos arranjos sociais e políticos que isso envolveu. O esgotamento desse grande período só dará lugar a um novo e longo ciclo na medida em que surjam forças políticas no Brasil, capazes de produzir a mutação de conjunto que a sociedade precisa.

Um eventual governo do PT deve ser um marco de abertura de um novo e longo cicio. O marco de um profundo rearranjo na forma como os grupos sociais se articulam e na forma como o Estado se relaciona com a sociedade. Se não tivermos a coragem política necessária para enfrentar esse desafio, não estaremos à altura do desafio que a história está colocando para o Brasil. O governo Lula, se não tiver essa estatura, acabará engolido pela lógica de administração da crise. Não porque alguns quadros desejem isto, não por esta ser uma estratégia implícita ou camuflada de a ou de b, mas porque se não tivermos um grande projeto alternativo, a atuação de governo imporá uma lógica de administração da crise. Então, a questão do programa está ligada a um projeto alternativo, que deve ser política, econômica e socialmente ambicioso e que defina para nós uma tarefa histórica.

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É preciso retirar o grau de autonomia com que opera a política econômica, menos do que discutir quais são as reformas sociais que cabem no bojo de uma política econômica realista. Acredito que devemos discutir qual é a política econômica que aprofunda e ajuda às reformas sociais que o país necessita. Ou seja: a política econômica não é um fim em sim mesma. Ela é um meio para atingir determinadas metas, que não são econômicas em si mesmas. Observando a sociedade brasileira, devemos definir algumas metas nacionais, com grande potencial de universalização, profundamente ligadas à vida do povo e alguns impasses que estão dados por esta sociedade. A partir dessas metas, então, definir uma política econômica. E não o contrário a partir da situação atual, definir qual política é realista. Sinto uma distância muito grande entre um certo realismo pessimista dos intelectuais - extremamente racionalista e cauteloso, que é importante de ser levado em conta - e um grande voluntarismo na base do partido -, o que indica um grande desejo de mudança que também precisa ser levado em conta. Acho que a tarefa da direção é estabelecer um diálogo que não seja de surdos.

Alguns companheiros, que estão na academia e que são - vamos dizer - mais "realistas", subestimam a capacidade de mudança que está depositada na ação do povo brasileiro. O que é realista na conjuntura atual pode ser muito atrasado na conjuntura do fim da campanha Lula e, muito mais atrasado ainda, no contexto de seu governo. Eles não pensam o programa de um ponto de vista político, e acabam num realismo medíocre, acomodado a uma dada situação. E isto, quando, na verdade, o desafio do partido não é se acomodar a uma dada configuração política, mas modificar a situação política e a partir daí tomar realistas outras possibilidades.

Por outro lado, é preciso que a base e a esquerda do partido sejam dotadas de projetos que acoplem sua utopia a um grau de viabilidade. Acho que essa é a grande tarefa da direção e dos intelectuais orgânicos do partido: formular um programa que seja suficientemente utópico para operar num campo de possibilidades modificado, que não é o atual. Ou seja, que nesse sentido rompa os limites da situação atual, mas que ao mesmo tempo guarde elementos de viabilidade e de consistência técnica.

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Se não tivermos cuidado, vamos nos transformar numa subsocialdemocracia. Criticamos muito a trajetória dos partidos social-democratas europeus, porque eles abriram mão - ou foram levados a abrir mão - da luta pelo socialismo, da transformação das bases da sociedade capitalista. E temos razão. Mas é preciso reconhecer que esses partidos fizeram isto num contexto em que suas sociedades viviam um período de grande crescimento econômico com distribuição de renda. Ou seja: a adaptação da social-democracia ao capitalismo não foi gratuita, não foi completamente subserviente. Houve um longo processo de negociação, que reverteu em frutos bastante claros para os trabalhadores de seus países. Temo que no Brasil venhamos a sofrer um processo de cooptação semelhante, sem conseguir sequer esse piso que a social-democracia conseguiu. Quer dizer: que o PT seja um partido cada vez mais integrado a uma ordem que não se democratiza.

Se pegarmos todos os indicadores sociais e econômicos, e compararmos com os de dez anos atrás, veremos que chegamos a uma situação nitidamente pior. A renda se concentrou, o povo empobreceu, o salário mínimo é menor, o desemprego é maior etc. E o que aconteceu nesse período? O sistema abriu maiores alternativas de cooptação da esquerda. Em grupo e até individualmente. A diferença é que hoje o PT tem mais de mil vereadores, tem uma forte bancada federal e estadual, sonha com a Presidência da República, alguns dos seus quadros participam de administrações. Nesse contexto, qualquer pessoa dotada de um mínimo de talento pode ter a expectativa de uma carreira política. Isso corresponde também a um processo de integração à ordem. O que está ocorrendo é que essa integração não vem se dando como na social-democracia: uma integração programática e um projeto ligado à distribuição de renda e certas reformas sociais importantes. A integração à ordem, no caso do PT, está se dando largamente ligada à idéia de carreiras políticas individuais ou de pequenos grupos e, ao mesmo tempo, num contexto em que a classe dominante não faz nenhuma concessão ao povo. Essa trajetória nós vamos ter que interromper, sob pena de fazermos aqui uma caricatura da social-democracia, que não apenas abre mão da luta pelo socialismo como também - em nome de um certo realismo - abre mão de lutas completamente elementares, como a eliminação da pobreza, da miséria, do analfabetismo.

Devemos nos preocupar mais em construir um programa mínimo para o Brasil, que se situe claramente diante do país, e a partir daí, da dinâmica da luta política, construir as alianças, do que em inverter a ordem das coisas. Sou contra a idéia de que uma ampliação horizontal das alianças em direção a outras siglas partidárias signifique, em si mesma, o fortalecimento da campanha do Lula. As últimas experiências eleitorais do Brasil mostram que há um grande divórcio entre o que é a elite política brasileira e como o povo está votando.

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Existem mecanismos de formação da opinião pública no Brasil que passam ao largo da elite política. Um primeiro exemplo é a eleição de 89, em que foram ao segundo turno dois candidatos que não representavam o pensamento médio das forças políticas mais implantadas. Um segundo exemplo é o plebiscito: a depender da elite política brasileira e da elite política do PT, o eleitorado brasileiro e a base petista deveriam ser parlamentaristas. E mais uma vez surge um sinal de rebeldia da base. O Brasil é um país urbano, a opinião é formada largamente pelos meios de comunicação, por alguns efeitos simbólicos. A população descrê dos políticos. Assim, a estratégia de nos paralisar, nos fazer abrir mão do nosso programa em busca de uma ampliação horizontal de alianças é, antes de tudo, uma estratégia eleitoralmente burra. Acredito que vamos ter que fazer todas as alianças possíveis, em torno de um programa claro, em torno de um partido forte que tenha um candidato forte. Então, hoje, a preocupação central deve ser fortalecer o PT, fortalecer a candidatura do Lula e ter um programa mínimo. Tendo isso, com o tempo, construiremos as alianças possíveis, necessárias e viáveis. Para tanto, o PT tem que ser firme em suas posições, e, ao mesmo tempo, tem que ter generosidade, grandeza, sem buscar nenhum atrito secundário com essas forças, sem fazer nem aceitar provocações, sem se deslocar da sua posição de partido mais forte, mais viável, que tem a melhor alternativa para o país. Se não assumirmos esta posição e ficarmos mendigando apoios, nos enfraqueceremos. Deixaremos de ser um parceiro.

É o caso do Brizola. Possivelmente ele ainda vai hostilizar o PT. Mas sua base social, tanto no Rio de Janeiro quanto no Rio Grande do Sul, é de esquerda, que na eventualidade de um segundo turno, com Lula polarizando com um candidato da direita, tende a nos apoiar. Desde que o PT não tenha atitudes infantis, que hostilizem, magoem símbolos importantes dessa base social, conseguirá atraí-la. O que influencia inclusive as lideranças do PDT. No caso do PSDB também - ainda que dificilmente acontecerão alianças no primeiro turno. O mesmo vale para Arraes. O nosso problema central, nesse momento, é ter força própria - para sermos respeitados e ouvidos. Ter grandeza.

E ter um programa claro. O Lula em campanha deve dizer exatamente o que vai fazer, para que, se vencer, tome posse com legitimidade para cumprir seu programa. Então, quem for contra a reforma agrária, quem for contra a moratória, que não vote no Lula. Agora, se ele se eleger, vamos ter um mandato popular para realizar um dado programa. Dizer o que vai fazer e, depois de assumir, fazer o que disse é fundamental.

Nós devemos ter uma posição bastante crítica em relação a uma burocracia sindical de esquerda que vem se formando nos últimos anos e que, em alguns casos, assume contornos preocupantes. Geralmente criticamos parlamentares e políticos, mas é preciso reconhecer que, quando se fala em abertura de espaços dentro da ordem, isso também tem a ver com a burocracia sindical.

Além disto, é preciso deixar claro que nosso partido e nosso governo não podem vir a ser prisioneiros de nenhuma corporação, ou de nenhuma visão corporativa. Acredito até que, sendo governo, vamos brigar com todo mundo. E precisaremos de muita clareza para, brigando com todo mundo, afirmar um projeto nacional que transcenda todas as reivindicações setoriais e corporativas.

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Por fim, é preciso afirmar que o povo brasileiro vem demonstrando uma capacidade de mobilização especificamente política, em momentos chaves, que transcendem em muito a mobilização corporativa e sindical. Todos os grandes movimentos de massa que aconteceram no Brasil nos últimos anos foram essencialmente políticos. Desde os 100 Mil no Rio, em 1968, depois a Anistia, Diretas-Já, campanha do Lula, impeachment... o povo tem demonstrado uma capacidade de mobilização política que surpreende aqueles que imaginam que se deva começar pelo salário para chegar ao socialismo. Na verdade, há um dinamismo na luta social muito maior do que esse pseudoleninismo medíocre que freqüentemente é transportado para a luta sindical. A transformação do Brasil vem pela política.

Temos muita dificuldade de fugir dos limites de uma proposta de matriz desenvolvimentista: criticamos o neoliberalismo e terminamos apelando para o Estado. Isso tem um motivo: para sairmos da recessão, algum agente tem que sair na frente, investindo, gastando. E a iniciativa privada não vai investir, não vai gastar. Daí, pensa-se no Estado. O Estado brasileiro está paralisado, cheio de problemas etc.

Venho pensando se não há outro caminho para reativar a economia brasileira que não dependa exclusivamente do Estado, e começo a achar que há. Esse caminho é o do aumento da massa salarial, no Brasil, que pode ter um papel semelhante ao de um investimento estatal, no sentido de aumentar a demanda. Isto, em termos da base da pirâmide salarial: o salário mínimo. O que significa começar a crer que é possível construir uma política com coerência macroeconômica que tenha como um de seus pontos de articulação o aumento gradual, coerente, seguro, do salário mínimo.

Resulta daí o estabelecimento de uma ponte com os trabalhadores, na medida em que o aumento salarial deixa de ser uma reivindicação corporativa e passa a integrar a retomada de um novo ciclo de desenvolvimento da economia, o que universaliza uma demanda dos trabalhadores. Não se trata mais apenas de defender o trabalhador pobre. Trata-se de defender também a economia nacional, reativando-a, via a reativação da base da pirâmide salarial. Isto permitiria uma relação de novo tipo entre o nosso governo e o movimento sindical. Em vez de tratar do movimento do funcionalismo ou daqueles setores mais organizados e bem remunerados da elite bem remunerada do operariado do ABC paulista -, acredito ser possível pensar um projeto para o país que seja próprio do nosso governo, e que tenha como base a reativação do poder de compra dos pobres, que em geral são os setores mais frágeis sindicalmente, os menos organizados, com menos poder de barganha, garantindo desse modo uma importante abertura nossa para setores que hoje não são a vanguarda da CUT, mas a maioria dos trabalhadores brasileiros.

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A retórica de integração internacional que vem sendo desenvolvida pela direita, nos últimos quinze ou vinte anos, só produz o isolamento do Brasil, porque é uma integração cujo pressuposto é a destruição do país. Destrói-se sua base produtiva, desemprega seus trabalhadores, empobrece seu povo, destrói o seu mercado interno, destrói o seu Estado... para integrar. E qual o resultado disto? No momento em que se quer integrar, já não se é mais parceiro de ninguém. Porque ninguém quer ser parceiro de um país que não tem mercado interno, cujo povo não tem um patamar mínimo de educação e de produtividade que interesse, cujo Estado não define nenhuma política de longo prazo. Então, toda a retórica da integração que a direita vem desenvolvendo produz o isolamento internacional do Brasil. Hoje, nenhum fluxo financeiro ou tecnológico internacional minimamente importante passa pelo Brasil.

Temos que afirmar claramente: quem vai produzir a integração internacional do Brasil somos nós. Agora, vamos produzir como? Fazendo crescer o nosso mercado interno, fazendo crescer a nossa mão-de-obra, dotando nosso Estado Nacional de capacidade de fazer políticas e, nesse sentido, até de estabelecer acordos. Em uma palavra: tornando-nos parceiros.

Quando se olha para o mundo, o capital internacional quer se integrar com a China. Não quer se integrar com o Brasil. Embora os governantes do Brasil sejam da elite, e os governantes chineses usem a foice e o martelo e passem os tanques por cima dos estudantes, há um fato objetivo muito claro: a China é um mercado interno em ascensão, de 1,2 bilhão de pessoas, com uma economia organizada, estável, e com um Estado que tem políticas de longo prazo. Isso significa business, para qualquer empresa multinacional, negócios para qualquer governo, importância estratégica desse país para qualquer bloco.

Agora olhemos para o Brasil: é exatamente o contrário. As multinacionais sempre vieram para cá por causa de seu mercado interno. O país nunca foi pensado como plataforma de exportação. E como plataforma de exportação, ele é um país incompetente. Coréia, Singapura e Formosa são melhores. Mas eles não têm 140 milhões de pessoas. Eles não têm um território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Eles não tem uma base produtiva tão diversificada. Essas são as vantagens que nós temos que aproveitar.

Ao afirmar, hoje, que a grande fronteira de crescimento do Brasil é a da expansão do seu mercado interno; que para realizar isso é preciso um novo arranjo social, que inclui reformas importantes; que o país é dotado de uma base tecnológica que permite realizar este movimento; que não vivemos um impasse de natureza tecnológica; não estaremos nos conduzindo para nenhuma xenofobia, para nenhum isolamento, porque é deste processo de valorização da base produtiva, de retomada do crescimento, de expansão do mercado interno, que vai resultar inclusive uma nova inserção internacional do Brasil, em moldes muito mais favoráveis do que a direita tem conseguido produzir nos últimos quinze anos.

O que define a transição para o socialismo não é o programa que se apresenta. Se analisarmos friamente o programa de todas as revoluções que houve no mundo, nenhum deles era revolucionário em si. A começar pela Revolução Russa, que dizia pão, paz e terra. Isso não é revolucionário em si, mas no contexto da conjuntura russa de 1917, esse programa articulava um bloco de classes, dotava-o de um programa universal, no sentido de muito amplo, dava-lhe iniciativa política e desarticulava os adversários. É esse movimento que conduz à superação do capitalismo, não o programa em si.

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Não vamos repetir no Brasil a trajetória da Revolução Russa, de jeito nenhum. Mas não se mede a radicalidade de uma ação política pelo que está contido no seu programa, estrito senso. Não há nenhuma reivindicação que seja em si mesma socialista, nem o armamento geral do povo. Essa foi uma reivindicação que em 1927, em Xangai, por exemplo, foi utilizada contra uma insurreição operária. Armou-se o povo contra uma insurreição operária. Na Suíça as pessoas têm armas em casa. Então, o contexto histórico é que define o sentido que vai tomar cada palavra de ordem, cada ação.

O que devemos querer hoje? Um programa que nos leve a conquistar uma maioria eleitoral, viabilize um governo que inicie reformas profundas na sociedade, com o apoio da maioria do povo. E que, ao fazer isto, se choque com a lógica do grande capital, da forma mais favorável possível à esquerda, legitimando-a enquanto alternativa nacional.

Não sabemos como isso vai se desdobrar na conjuntura futura, qual o grau de compromisso e de ruptura que deverá haver. Mas o processo de transformação deverá combinar elementos processuais - que durante muito tempo serão dominantes -, com momentos de ruptura. Há momentos em que a luta política dá um salto. Não adianta tentar prever isso. Adianta sim, dotarmo-nos de um programa que coloque em movimento esse processo, que crie um novo cenário estratégico para que a luta política prossiga.

A luta política não acaba nesse programa. Ele é a alavanca de um processo que é mais dinâmico do que ele mesmo, que o transcende. Isto implica pensarmos quase que um programa mínimo de governo, que nos permita constituir um bloco social amplo, combinando elementos de viabilidade com elementos de utopia e que possa nesse processo nos legitimar como uma força hegemônica na reconstrução nacional, apontando para valores que transcendam o capitalismo. Um programa desses não é incompatível com uma transição para o socialismo.

César Benjamin é editor da revista T&D, membro do Diretório Nacional do PT e integra a comissão de Programa de Governo.

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