EM DEBATE

O crescimento da candidatura Lula coloca na Ordem do dia para o PT as definições referentes ao Programa de governo, alianças e relação com o empresariado. Teoria & Debate abre a discussão com as opiniões de Rui Falcão, Ozeas Duarte e Markus Sokol.

Alianças e hegemonia

Pior cego é o que não quer ver

Sem fantasias doutrinárias

Alianças e hegemonia

Nosso programa de governo deve ter caráter democrático e popular. Deve conter medidas voltadas para a retomada do crescimento econômico com distribuição de renda, combate ao apartheid social, uma atitude soberana no cenário mundial, democratização econômica, política, social e cultural do país.

Um programa deste tipo expressa os interesses da maioria da população brasileira: os trabalhadores assalariados do campo e da cidade, os pequenos produtores, os setores médios inclusive pequenos e médios empresários - e os milhões de marginalizados.

Do ponto de vista político, um programa democrático e popular contém as reformas estruturais que os progressistas, os defensores de uma real soberania nacional, os verdadeiros democratas, os socialistas, apresentam como solução para a crise brasileira.

Naturalmente, ele não deve ser concebido como um programa de governo tradicional, que estabelece apenas as metas político-administrativas projetadas para o período do mandato.

Ele deve, também, indicar com clareza o objetivo estratégico de nosso governo: governar para as maiorias, acumulando forças para a construção de um Brasil radicalmente diferente do atual, socialista e democrático.

É por isso que não devemos esperar nenhum tipo de "trégua" por parte das forças políticas e sociais vinculadas ao latifúndio, aos monopólios, ao imperialismo e, de uma maneira geral, ao capitalismo. Estas forças, interessadas na preservação do atual modelo econômico e social e comprometidas com a manutenção do capitalismo, combaterão duramente nosso governo, em todos os terrenos.

Não tenhamos dúvidas: as elites atacarão nosso governo não tanto pelas medidas concretas que adotaremos mas, sobretudo, por nossos objetivos estratégicos. A minoria privilegiada não faz as diferenciações teóricas que certa esquerda aprecia: para as elites, reforma agrária, distribuição de renda, garantia de direitos sociais, democratização dos meios de comunicação, combate ao apartheid social, é tudo a mesma coisa: "socialismo".

Nós sabemos que socialismo não "é" isso. Sabemos que em outros países e em outras épocas históricas, medidas semelhantes foram adotadas por governos ligados à própria burguesia. Mas, nas condições históricas do Brasil, só um governo hegemonizado por um partido socialista pode levar a cabo as reformas estruturais de cunho democrático e popular. E, do mesmo modo, a luta pelas reformas estruturais abre caminho para a construção do socialismo.

Assim, se por "medidas socialistas" entende-se estatização dos meios de produção e desapropriação da grande burguesia, só poderíamos responder que "nosso programa não contém tais medidas". Da mesma forma, se por trás da inclusão de "medidas socialistas" no programa sugere-se que nosso governo deva dar início à construção do socialismo no Brasil, não é essa a nossa proposta. Contudo, se superarmos estas concepções ultrapassadas de socialismo, se rejeitarmos a divisão arbitrária, a-histórica, etapista, entre a nossa alternativa estratégica democrática e popular e a luta pelo socialismo, poderemos dizer que o programa contém as medidas que os socialistas propõem para superar a crise brasileira.

A prioridade política e social de nosso governo é manter e ampliar o apoio dos trabalhadores e dos milhões de marginalizados; fazer isso ganhando o suporte dos setores médios, inclusive pequenos e médios empresários; e neutralizar e derrotar os grupos hegemônicos no empresariado, ou seja, seu setor monopolista e financeiro.

De acordo com esta orientação, se eleito presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva deverá se pautar por uma relação transparente com o empresariado: para que a maioria dos brasileiros possa viver dignamente, os grandes empresários devem perder riqueza e poder.

No governo Lula, os capitalistas continuarão existindo e lucrando. Porém, a prioridade do governo não será o lucro da minoria, mas a elevação das condições de trabalho e de vida da maioria. Por isso, os exportadores, o capital financeiro, os monopólios e as empreiteiras cederão espaço, nas políticas de governo, para o incentivo à produção de bens de consumo, para o combate à fome, ao desemprego e à falta de habitação.

Na prática, nosso governo deverá privilegiar o apoio aos pequenos e médios empresários, aos pequenos produtores rurais, e aos setores do empresariado vinculados àquelas metas, lutando contra a especulação financeira, privilegiando os investimentos produtivos e combatendo a supremacia dos monopólios.

Os demais setores do empresariado merecerão tratamento correto, transparente e pautado pelas leis do mercado.

Mais importante do que discutir "com quem" faremos alianças, é definir em torno de que objetivos elas serão feitas. Nossa posição é clara: propomos alianças em torno do programa democrático e popular.

Também é importante esclarecer que não limitamos nossa política de alianças aos partidos. É imprescindível ir além, englobando no bloco democrático e popular, de maneira formal ou informal, o movimento sindical, as entidades estudantis, os movimentos pela saúde, educação, habitação, terra, direitos humanos, democratização da comunicação etc.

Para os partidos vale o mesmo critério: no primeiro turno, as alianças se darão em torno do programa.

Compreendemos que só com unidade e luta se constrói uma política de alianças efetiva. Por isso devemos estabelecer um diálogo crítico com nossos potenciais aliados, particularmente com aqueles partidos que nos apoiaram no primeiro turno das eleições de 89, com o PPS, com o PV, com os setores progressistas do PSDB e, inclusive, com parcelas do PMDB e do PDT.

Hegemonizado pelo pensamento neoliberal, aproximando-se do fisiologismo e servindo de cobertura, em vários estados, para os setores conservadores, o PSDB vem tentando se constituir em chefe da "terceira via". Uma aliança com os tucanos supõe, portanto, uma radical mudança na sua conduta atual.

Aliás, a maior parte de nossos potenciais aliados - com exceção do PC e do PSTU - integram o governo Itamar, ao qual nos opomos. Por isso, o PT deve fazer gestões para que o PC do B, o PPS, o PSB e o PSDB rompam com o governo.

No caso do PDT, o controle imposto por Leonel Brizola e suas pretensões presidenciais praticamente inviabilizam uma aliança no primeiro turno. Entretanto, no segundo turno, deve-se ter em mente a necessidade de atrair este partido, como ocorreu em 1989.

As eleições de 1994 serão casadas: presidente, governadores, deputados e senadores. Por isso, a política de alianças no primeiro turno deverá ser obrigatoriamente nacional. Ou seja: definiremos nacionalmente quem o PT considera seus aliados. Isso não quer dizer que, nos estados, o PT deva obrigatoriamente aliar-se com aqueles que, nacionalmente, são considerados aliados. Isso dependerá das negociações, das condições, dos candidatos postos etc.

O PT nacional deve acompanhar as negociações desenvolvidas nos estados, a quem caberá a decisão, garantindo que prevaleçam os interesses nacionais do partido. É bom lembrar que construir alianças é um dos nossos objetivos, mas não o único.

Agindo assim, evitaremos vários erros como, por exemplo, o de realizar alianças estaduais com partidos que estão fora de nosso arco de aliados (como ocorreu em vários municípios de Goiás, onde o PT local fez alianças com o PFL). Ou o de recusar, de pronto, por sectarismo, alianças estaduais com partidos que fazem parte de nosso leque de alianças.

Em qualquer hipótese, contudo, o que deve prevalecer é a democracia. Quando os estados adotarem políticas que estejam em choque com os interesses nacionais do PT, caberá à direção nacional convencer a militância local, através do debate político, a mudar de posição. No PT não cabem atitudes autoritárias, burocráticas, centralistas. Até porque é a militância que carrega nossas bandeiras e nossa estrela.

Rui Falcão é deputado estadual PT/SP e membro da Executiva Nacional.

Pior cego é o que não quer ver

Antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista. Desde o 5° Encontro Nacional este tripé define o Programa Democrático e Popular que o PT apresenta para governar o Brasil. Designa um conjunto de medidas e reformas para distribuir renda e propriedade, ampliar o mercado interno e elevar as condições de vida da população, direitos sociais e políticos. Implica garantir um processo de aumento do salário mínimo até o patamar proposto pelo Dieese, romper os acordos com o FMI e suspender o pagamento da dívida externa a fim de criar um fundo público de investimentos, invertendo o desmantelamento privatizante de estatais e do serviço público, e ainda realizar uma reforma agrária acompanhada das necessárias medidas de suporte. Em conseqüência, seriam reorganizados o comércio exterior e o sistema financeiro, bem como a educação e a saúde no país, para ficar no básico.

Por que se debate tanto esse programa? Infelizmente não é para completá-lo e corrigir as ambigüidades e insuficiências, notadamente na clarificação da inserção do novo governo na economia e na política mundial, assim como na questão-chave de sua relação com a auto-organização popular.

A tônica do debate é outra. Ganharam terreno teorias que não apenas tornam o governo democrático-popular uma larga etapa, como também, mais recentemente, tendem a vê-lo como o nosso próprio horizonte histórico, em virtude da dissolução da luta de classes, do fim das supostas retaguardas estratégicas (Leste Europeu) etc. Já se fala que o próximo governo Lula não seria um governo de esquerda (democrático-popular), mas apenas um "primeiro governo Lula", de centro-esquerda, preparatório de um futuro governo "Lula 2", este sim de esquerda e democrático-popular. Talvez uma espécie de revolução em três etapas, ou melhor, em três mandatos...

Em detrimento da franqueza no debate, estas posições não se apresentaram de forma transparente nas pré-teses inscritas no 8° Encontro Nacional do PT. O que é um elemento da degradação das relações internas.

O PT não pode negar que sua presença em um governo tem como objetivo o socialismo. O problema é como alcançá-lo. Não é nossa intenção distribuir receitas. Mas, no quadro atual, há conclusões que se impõem. A primeira é que um governo Lula seria um governo nos marcos do capitalismo, dada a conjuntura nacional e internacional. A segunda é que a realização de metade das reformas mais pacatas do programa democrático-popular entraria em choque aberto com a ordem, que é capitalista. Por exemplo, a realização de uma reforma agrária, ainda que fora das propriedades "produtivas", abalaria a estrutura da propriedade - portanto do poder na sociedade e no Estado, computadas as transformações associadas em termos de financiamento da produção, distribuição e padrão exportador - a um ponto que os grandes grupos (bancários, agroindustriais e exportadores) nem pensam aceitar. É por isso que nunca se fez uma reforma agrária.

Aí está o profundo sentido revolucionário de uma reforma antiimperialista, antilatifundiária e antimonopolista. Ela só pode se completar e estabilizar como parte de um processo maior de transição ao socialismo. O regime da predominância da propriedade social dos grandes meios de produção pode absorver a pequena propriedade no campo (cooperativizada ou não), enquanto a realidade do capitalismo, hoje, não só no Brasil, é de estrangular os pequenos proprietários e marginalizar os sem-terra.

Saber até onde o governo Lula pode ir numa transição desse tipo depende da correlação de forças. Não é certo que seu sucesso será determinado pela velocidade: esta seria uma expectativa imberbe. Mas é certo que ele se desmoralizaria se hesitasse, senilmente, diante dos conflitos que serão provocados pelos interesses que vai tocar.

Depender da correlação de forças é depender também da capacidade do partido e do próprio governo, de estender e centralizar o processo de auto-organização de massas, com o surgimento de novas instituições de poder comprometidas com o conteúdo do programa democrático-popular, como são os conselhos populares.

Não se trata de um estreito "governo dos trabalhadores" fórmula que combatemos desde a fundação do PT, diga-se de passagem - nem tampouco da nova nebulosa do "governo de centro-esquerda". O programa do governo Lula - antiimperialista - deverá expressar uma aliança tendo como eixo os trabalhadores da cidade e do campo, abarcando setores médios, excluídos e marginalizados, criando as condições da transição ao socialismo.

Os próprios empresários certamente responderão com maior clareza.

Pode-se prever que haverá acordos episódicos ou setoriais com o empresariado, delimitados por sua reação às medidas e reformas patrocinadas pelo novo governo, de um lado, e por seu comportamento diante das previsíveis pressões do grande capital internacional através de suas instituições (FMI, Banco Mundial, G-7 etc), de outro lado. A venalidade, covardia e avidez mesquinha da burguesia brasileira - por décadas montada num dos mais baixos salários mínimos do Ocidente - não nos permite ser otimistas. Mas não se pode descartar, por simples prevenção, uma cooperação maior, ao menos por um tempo, de setores minoritários especialmente de porte médio, hoje esmagados pelos bancos e multinacionais. Sem dúvida, nesta delicada questão da relação com o empresariado, o pior cego é o que não quer ver.

Nenhuma impressão de "credibilidade", até com tinturas de "estadista", com a qual alguns companheiros querem impregnar a imagem de liderança classista que Lula tem nos foros internacionais, vai anestesiar a dura realidade. Aquela realidade rascante dos interesses da Nova Ordem Mundial, que o subsecretário do Tesouro americano, Lawrence Summers, invocou arrogantemente a Lula numa entrevista recente: "Que o Brasil faça como a Argentina, o Chile e o México". E isso nem podemos cogitar.

Em um mundo onde duzentos grupos econômicos controlam a terça parte da produção, onde apenas 1% do movimento financeiro diário corresponde ao comércio de mercadorias, o resto registrando as diversas formas - de especulação que fazem a fortuna das empresas, o que se pode esperar do empresariado?

Não temos o direito de ser ingênuos esperando um entendimento com o empresariado - é mais realista esperar conflitos. Ou de desorientar os milhões que depositam sua esperança no PT, buscando enganosas parcerias capital/trabalho, como as que o FMI e a social-democracia querem nos fazer engolir. Na realidade, o tipo de investimento que o grande empresariado se dispõe a fazer é aquele cuja rentabilidade supere os ganhos especulativos, o que significa um tipo de superexploração da força de trabalho contrária às reformas que almejamos.

É isso que quer e pratica em suas empresas, por exemplo, o senhor Emerson Kapaz, do PNBE e muy amigo do PT, que em entrevista ao boletim Linha Direta, nos propõe "não acabar com os bancos, mas transformá-los em parceiros do desenvolvimento da produção". Uma utopia nunca vista, reacionária nesse caso.

Uma política de alianças serve para construir uma maioria social e realizar um programa. Nenhum arranjo político-institucional pode substituir essa maioria social. Apenas ela, mobilizada, pode garantir a governabilidade de Lula.

É falsa a idéia de que quanto maior o arco-de-alianças, maior a governabilidade. Nossa história recente, para não falar de outros países, está repleta de governos de amplíssima coalizão e incapazes de dar um passo - paralisados pela discrepância de interesses conflitantes -, isso quando sua passividade não os leva a ser derrubados pela força.

Nossa governabilidade pede novas instituições, tensionamento e, no limite, superação da atual institucionalidade excludente e antidemocrática, para que a maioria social possa se exprimir plenamente.

É desastrosa a idéia enunciada por um tresloucado polemista (Aldo Fornazieri) de que não sendo "politicamente o PT essa maioria - mesmo que Lula seja eleito presidente - e (nem) socialmente", precisaríamos de "alianças amplas que incluam, politicamente, a cúpula do PSDB e, socialmente, setores empresariais".

Examinemos melhor a questão. O cenário, hoje, certamente não é igual ao de 1989: um conhecido oportunismo levou de volta ao governo federal, onde estavam com Sarney, o PSB, o PPS, e de certo modo o PC do B. Mas, o que é mais importante, partidos como o PSDB e PDT estão mais comprometidos - e tencionados internamente por causa disso com as políticas dos governos pró-FMI de Collor e Itamar, as privatizações e todo o resto. É mais evidente a natureza desses partidos hoje do que há quatro anos. O PSDB tem agora o principal ministério do governo Itamar com Fernando Henrique Cardoso na Fazenda. Em nível estadual, também está no governo Paulo Maluf, com Getúlio Hanashiro encarregado de privatizar a CMTC. O PDT não se recuperou do abraço collorido.

Nossa política de alianças no plano das coligações eleitorais deve buscar explodir a relação dos partidos da antiga Frente Brasil Popular - PSB, PCdoB - mais o PPS, com o atual governo Itamar. E atrair para nossa alternativa os setores democrático-populares que existem no PSDB e PDT e, ao que parece, também no PMDB.

A crise do governo Itamar, que se inicia, trabalha a nosso favor. E o "longo" período de mandato que, em tese, ainda tem vai desgastar e trincar o PSDB e o PDT, cuja cúpula está enfiada até o pescoço na governabilidade e no Ministério de Itamar. Desenvolvendo uma ativa oposição a Itamar, combatendo as privatizações e a corrupção, defendendo o reajuste mensal, as verbas para os serviços públicos e os funcionários, a ruptura dos acordos com o FMI, o PT pode construir, desde já, as alianças reais para a disputa presidencial, atraindo para a candidatura Lula setores sindicais, populares e democráticos que não se identificam com o PT, mas com as legendas mencionadas.

É necessário atrair esses setores não apenas por exigência eleitoral, mas sobretudo para formar a maioria social que garantirá a governabilidade de Lula. O Brasil é um país bastante diferenciado. Em muitos municípios, e talvez em alguns estados, a força da alternativa Lula por si já questiona a política das cúpulas nacionais do PSDB e PDT - que não querem compor conosco e vão compor alguma "terceira via" - desnudando seu caráter conservador.

Devemos procurar, para uma composição desde o 1º turno, forças e setores desses partidos que se identificam com as medidas democrático-populares, que conhecemos nas lutas do dia-a-dia e na ação institucional. A questão não é, como dizem alguns companheiros, se disputamos o PSDB ou se o entregamos para a direita, mas o que é o PSDB - um partido heterogêneo mas hegemonizado por uma cúpula ligada aos interesses do grande capital - e o que há realmente para ser disputado: setores democráticos ou populares em contradição com os planos do FMI. O saldo pode ser eleitores e militantes, dirigentes e quem sabe diretórios, mas não o conjunto do PSDB.

Nessas condições, sinalizar a busca de uma aliança de governo com a cúpula do PSDB, antes de trazer qualquer improvável acordo com os empresários, trará a desconfiança na nossa base social e a confusão naqueles setores que realmente queremos disputar: enquanto eles se chocam com a cúpula, parece que queremos namorá-la. Isso também contribuirá para alimentar a impressão de "geléia geral" da política brasileira, à qual o povo responde, parcialmente, com abstenção, votos nulos e brancos. Não temos interesse em alimentar frustrações desse tipo.

É possível, além de necessário, começar a desbancar as cúpulas do PSDB e PDT desde o 1º turno. Este é o caminho mais curto para que elas apóiem Lula no 2º turno. Afinal, há diferenças entre uma aliança no 1º turno, que é feita para governar - e cujo critério é o programa -, daqueles apoios que se pode emprestar ou receber num eventual 2º turno, e que não implicam co-governo. Essa é a dinâmica própria de eleições em dois turnos.

Por isso, o programa, que se materializa na candidatura Lula deve ser um critério para as alianças nas eleições para governador, deputados e senadores. E, coerente com o tipo de partido de massas que estamos construindo, são os encontros estaduais que decidem as alianças e acordos no plano estadual, respeitados os parâmetros da campanha presidencial. Um centralismo verticalista, que imponha acordos de cima para baixo aos estados, pode servir para o PC do B mas não faria bem ao PT em seu atual estágio de construção.

É com espanto que ouvimos e lemos a condenação ao messianismo que estaria embutido na expectativa da vitória de Lula, que alguns petistas chegaram a comparar à expectativa em um novo Antônio Conselheiro.

É bem verdade que esses pregadores - temerosos da subversão de Canudos, e adeptos da salvação administrativa das almas que sobem aos céus - baixaram a voz depois que a manobra parlamentarista não passou. Sua igreja, maniqueísta como sempre, que antes nos dizia "ou o parlamentarismo ou o desastre", agora adaptou o discurso - "a centro-esquerda ou o desastre".

Nós estamos entre aqueles que não tinham "medo de ser feliz" em 1989. Nem passamos a ter medo depois que se conseguiu ver claramente o que existia atrás do Muro de Berlim. Não porque confiássemos em algum Messias. Acreditamos no movimento que construiu o PT e Lula como alternativa de governo no Brasil.

Markus Sokol é membro da Executiva Nacional do PT.

Sem fantasias doutrinárias

Antes de se fazer uma reflexão sobre o caráter do programa de governo para a candidatura Lula em 94, se deveria indagar: programa de quem? Do PT ou de uma frente política da esquerda e da centro-esquerda? Se a opção for por uma candidatura só do PT, quando muito reeditando a Frente Brasil Popular de 89, a questão programática será posta de uma maneira; se, ao contrário, a opção for por uma aliança mais ampla, outros serão os termos do problema.

Alguns companheiros do partido têm se manifestado a favor das alianças desde que o programa seja o do PT. Isto significa exigir que os outros partidos abdiquem de suas posições e adiram ao ideário petista. É dizer não, em particular, a partidos como o PSDB e a setores do PMDB que, em estados como Pernambuco e Rio Grande do Sul, tenderiam a se alinhar com a centro-esquerda na eventualidade de prevalência do quercismo em 94. Sabemos que os partidos de centro-esquerda são mais exigentes em matéria programática, em relação ao PT, do que os partidos de esquerda.

É evidente que o PT não pode buscar um acordo a qualquer custo, precisa negociar baseado em seu programa. Mas querer que o programa da campanha seja o nosso é não querer frente nenhuma ou, na melhor das hipóteses, trabalhar por uma frente estreita. O próprio conceito de negociação pressupõe a existência de pontos programáticos dos quais se pode ou não abrir mão, na tentativa de construção de um programa único para a disputa eleitoral e, na eventualidade de vitória, para o exercício do governo junto com outros parceiros políticos.

Por apostar em alianças amplas, entendo que a questão neste momento consiste em definirmos no PT não o "programa para as eleições", mas o programa que levaremos à negociação com os partidos e com outros sujeitos sociais. Em sabermos, antes, o que propor para a superação da crise nacional, para que tenhamos claro até onde ir na relação com as outras formações partidárias.

Para a ultra-esquerda do PT, a proposta de aliança com a centro-esquerda significa "um rebaixamento para agradar à burguesia liberal na vã esperança de que ela sustente a governabilidade num futuro governo Lula". Mais uma vez esta corrente pensa a conquista do governo em função da "ruptura". Para onde, não sabe, nem se indaga. Aqui, o dogma ideológico substitui o raciocínio, o que inviabiliza a discussão.

Já o setor menos doutrinário da chamada esquerda no partido posiciona-se de forma favorável ao alargamento do leque de alianças. Contudo, argumenta, o compromisso da candidatura Lula com "reformas profundas" inviabilizará automaticamente a unidade com partidos como o PSDB. No papel, este setor fala em ampliação, mas conta com a radicalização do programa para que ela não aconteça. Aparentemente, os companheiros que integram esta corrente ainda não refletiram seriamente a respeito das possibilidades reais de um governo Lula no quadro crítico que o país atravessa.

Desconheço este tipo de reflexão no PT. Num debate ideologizado, as fantasias doutrinárias, ou a pura vontade, estão ainda muito presentes. A pergunta é a seguinte: um governo Lula teria condições para realizar mudanças profundas no país nos limites de um mandato de cinco anos, considerando-se a gravidade da crise nacional e a correlação de forças nos planos interno e internacional? Qual a "missão", a tarefa de um primeiro governo liderado pela esquerda nas condições atuais do Brasil e do mundo? Na falta de uma resposta minimamente razoável para estas indagações, predominam, ainda, o desejo irrefletido e a simplificação.

Um programa de governo tem que responder às exigências da realidade do ponto de vista das finalidades de quem o propõe. Quais são as finalidades do PT? A este respeito o que temos são idéias muito genéricas, embora importantes, sobre o socialismo democrático. Não dispomos de uma imagem clara do país que desejamos na perspectiva de um horizonte de longo prazo. A rigor, nossas reflexões sobre o futuro referem-se mais à formulação de um "modelo" universal de sociedade do que à concepção de uma boa idéia de Brasil e do processo com vistas a realizá-la. Quais as grandes linhas, o sentido geral, das transformações que pretendemos implementar no país? Não há sobre esta questão fundamental uma definição partidária minimamente articulada.

Assim, o pensamento a respeito do imediato, de um governo Lula, por exemplo, fica destituído de conexão estratégica. Se não equacionarmos idealmente o processo geral da mudança não há como conceber o timing do momento particular. A propósito deste não teremos nada de significativo a dizer, algo que transcenda ao empírico e fragmentário, quando não ao meramente fantasioso. É visível em certas posições internas ao PT até mesmo o descaso por um diagnóstico consistente da crise nacional. E isto basta para inviabilizar qualquer reflexão efetiva sobre um possível governo Lula.

A crise brasileira apresenta uma combinação complexa de grandes problemas. Do ponto de vista social, com os 30 milhões de marginalizados, temos uma típica realidade do século XVIII; mas, face à revolução técnico-científica em curso no mundo, temos também, no atraso educacional e na defasagem tecnológica, um típico problema do século XXI; temos o esgotamento do "modelo" de desenvolvimento a indicar o caráter estrutural do impasse na economia; temos, ainda na economia, uma perversa e já prolongada combinação de inflação alta com recessão profunda; temos um grave problema de desarticulação do país com o mundo; temos o colapso financeiro do Estado, tão bem retratado nas dívidas interna e externa, no sucateamento da infra-estrutura econômica e na desorganização geral dos serviços públicos; e temos a falência do sistema político, testemunhada pela incapacidade dos agentes públicos e privados de criar alternativas globais de superação da crise minimamente consensuais.

Tudo isto aponta para a necessidade de reformas profundas. Não há como democratizar a sociedade brasileira e viabilizar o país no século XXI sem mudanças estruturais. A rigor, a pauta de reformas da década de 50 se recoloca em novas condições, articulada a outras mudanças postas pela crise da modernidade.

Mas, qual o ritmo das mudanças? O que priorizar num primeiro momento? Qual o papel de um governo Lula a partir de 95? Sim, porque ninguém que reflita seriamente sobre a situação deixará de reconhecer que a realização do conjunto de transformações exigidas não estará ao alcance de um único governo, por melhor que seja seu desempenho. É tarefa de longo prazo. E não apenas para governos, pois demandará a ação articulada de Estado e sociedade. Há que se pensar em um processo, com um encadeamento de momentos, distintos pela natureza dos problemas e das políticas, pelo grau de consistência da hegemonia de esquerda, pelo tipo de alianças que possibilitará e, decorrência lógica, pela profundidade das transformações que serão implementadas. Nessa perspectiva, um governo Lula no próximo mandato presidencial seria apenas um desses momentos singulares.

Precisamos, assim, não só trabalhar com a idéia de alguns governos liderados pela esquerda nas próximas décadas, na linha de uma ampla intervenção em todos os níveis dos poderes Executivo e Legislativo, como também aprofundar a noção de mudança a partir da sociedade, mesmo sob governos de direita. Optar pela via democrática significará aceitar como normal a rotatividade de correntes políticas no poder. A sociedade precisa organizar-se e agir melhor, desmarginalizar a sua segunda metade, ser menos fragmentada pelos interesses corporativos; e as mudanças que implementarmos, a partir do governo ou de onde quer que seja, precisarão ter a solidez e a marca da irreversibilidade.

Entre as nossas definições, mais vontade do que projeto refletido, destaca-se a idéia da radicalização da democracia nos planos político-institucional, econômico e social. A rigor, está aí a síntese dos nossos desejos, sinônimo de socialismo no vocabulário petista. Se podemos afirmar algo a respeito de um governo Lula, em termos gerais, é que ele será um governo de enfrentamento das questões democráticas na sociedade brasileira. Traduzida para o terreno concreto, esta será uma dimensão importante do programa, seu núcleo fundamental. Mas o fato é que, até agora, por onde começar, onde acentuar as iniciativas da luta pela democracia a partir do governo, isto não sabemos. E, na falta de definições a respeito, a vontade é assumida pelo esquerdismo partidário como critério político, inclusive para efeito das definições de política de alianças.

O que será um eventual governo Lula dependerá muito do que será o restante do governo Itamar, agora com Fernando Henrique Cardoso à frente. Mas, como é improvável que o processo de ajuste econômico seja concluído, pode-se antecipar que os vitoriosos em 94 ainda terão que se ocupar, prioritariamente, por um bom tempo, com os velhos problemas da inflação e da retomada do crescimento.

O ajuste econômico impõe ele mesmo uma prioridade para determinadas reformas. Por exemplo, a reforma (financeira. patrimonial e administrativa) do Estado e medidas no sentido da reversão do modelo exportador. É o bastante para se ter uma idéia do tamanho dos adversários e das dificuldades.

O que pretendo acentuar é a pouca probabilidade de que um governo Lula, a partir de 95, tenha condições de se caracterizar já como um governo ofensivo em relação ao conjunto das reformas estruturais que preconizamos. A reforma agrária, por exemplo, terá de ser abordada já a partir da posse, evidentemente, mas de modo limitado, quem sabe através de medidas tópicas em áreas de conflito e do desencadeamento lento de um programa de mais longo prazo. Encampá-la plenamente e com radicalidade seria arranjar inimigos demais ao mesmo tempo, expondo-nos perigosamente à derrota. Até mesmo porque uma reforma agrária ampla, associada a uma política agrícola, demandará recursos públicos de monta, inexistentes sem uma previa recuperação do Estado.

Não esqueçamos que um eventual governo Lula terá que iniciar, tão logo assuma, a recuperação dos serviços públicos e do investimento na infra-estrutura econômica. Empreendimentos custosos do ponto de vista financeiro, ainda que viáveis em parceria com a iniciativa privada e com estados e municípios. Os problemas serão de tal ordem, em contraste com a limitação dos meios e com a delicadeza das condições políticas, que será necessária uma seleção precisa, e sustentada com mão firme, dos alvos a atacar. De sorte que haverá um equívoco grave se a noção de "reformas profundas" significar uma linha de confrontação imediata mais ou menos generalizada, pretensamente sustentada no movimento popular.

Este conjunto de considerações nos alerta para a principal ameaça a um eventual governo Lula. Falo da expectativa do povo quanto ao atendimento de suas reivindicações pela nova administração. Numa realidade de tão grandes carências sociais, depois de uma campanha eleitoral polarizada, Lula presidente será, para milhões, certeza de redenção a curto prazo. Seria irrealista contar desde logo com a predominância de uma consciência política madura, configuradora de uma sólida hegemonia da esquerda. São limitadas as possibilidades de que uma hegemonia desse tipo possa se formar a curto prazo numa sociedade como a nossa, tão marcada pela marginalidade social e pelo autoritarismo.

Assim, em lugar de "apoio ativo das massas" a um processo de "reformas profundas", seria mais razoável supormos uma situação de apoio mas também de "cobrança ativa das massas" face a um governo dotado de limitada capacidade para atender à demanda social.

Será difícil evitar que o próprio discurso de campanha alimente expectativas irreais. Se isto tem se mostrado impossível em eleições municipais, imaginemos uma campanha presidencial em meio a uma situação ainda mais dramática, em termos sociais e de frustrações acumuladas, do que aquela de 89. Ainda assim, a necessidade de uma campanha politizada, que aprofunde na sociedade a consciência pelas reformas a partir de uma ótica menos contaminada por apelos irracionais, precisa incorporar-se às nossas preocupações.

Mas tudo isso tem um outro lado, justamente aquele que os esquerdistas se esforçam por anular. A própria gravidade da crise, implicando a necessidade de condensação dos objetivos programáticos, possibilita a ampliação do leque de alianças que, se efetivadas, compensarão as adversidades conjunturais que enumeramos. Não é verdade que a base social passível de apoiar um governo Lula se restrinja aos trabalhadores e a setores da classe média. Não só é desejável como possível um acordo nacional - com a participação de segmentos do empresariado e da centro-esquerda no plano político - em torno de um governo de reformas cuja tarefa seja superar a crise econômica de um ponto de vista democrático, iniciar o combate ao apartheid social, promovendo a cidadania, e apontar para um novo modelo de desenvolvimento.

Nessa perspectiva, deixar que a política de alianças fique a critério dos estados seria antecipar a derrota. Acabaria prevalecendo a completa fragmentação da política do partido, à mercê das dinâmicas e dos interesses locais. Estas serão eleições praticamente gerais, e a viabilidade de uma negociação em torno da candidatura a presidente exige que os outros cargos majoritários em disputa, pelo menos nos estados mais importantes, sejam também colocados à mesa de negociação.

O PT fez uma opção clara pela democracia, como fim e como meio. A alternativa das alianças decorre dessa opção. Não é uma questão que responda tão somente ao apelo que a política sempre faz à eficácia, segundo a lógica de uma razão instrumental. Democracia é pluralidade, a busca de soluções para os problemas da sociedade através da ação de uma multiplicidade de sujeitos, na simultaneidade dos conflitos e das confluências de posições e de interesses. E democracia como meio, como via de solução dos problemas da sociedade, implica a aceitação da noção de processo, como forma da mudança, em oposição à ruptura escatológica. Mas nessa luta, quem não media nem compõe, seguindo o velho esquema do "partido dirigente", não só tem muito pouco a dizer sobre a democratização da sociedade como está condenado ao isolamento e à esterilidade política.

Ozeas Duarte é membro do Diretório Nacional do PT e integra a Comissão de Programa de Governo para 94.

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