EM DEBATE

Para discutir o balanço do resultado eleitoral do ano passado e as perspectivas do PT para este ano, Teoria & Debate convidou quatro lideranças partidárias, representantes de correntes internas de expressão.

Enviamos a eles um roteiro com as seguintes questões:

- Qual sua análise do resultado das eleições municipais de 1986 e dos resultados obtidos pelo PT?

- Qual a sua avaliação sobre a derrota do PT em várias cidades onde administrava?

- As disputas internas influíram no resultado eleitoral?

- Como repercutiu no resultado a política de aliança do PT?

- Qual a sua opinião sobre a proposta, para 1998, de uma política de alianças de centro-esquerda?

- Quem deve ser o candidato à presidência da República do PT?

- Qual a situação global do PT hoje e suas perspectivas gerais?

E agora PT?

Mais radicalidade

A (des)união da esquerda

Por uma nova estratégia

E agora PT?

 

 

Uma avaliação predominante sobre as eleições municipais apontam para resultados marcados pelo pragmatismo do eleitor. Ou seja, ele teria optado por resultados, pelo reconhecimento de obras e iniciativas dos antigos prefeitos. Analisar o 3 de outubro por esta ótica é restringir-se ao senso comum, às aparências. E estas quase sempre escondem a realidade de um quadro mais complexo que age na formação da opinião e nos resultados eleitorais. Sem hierarquizar, porque as realidades locais são distintas, não há como negar fatores como o poder da mídia nos processos eleitorais, não só do ponto de vista econômico, configurando desigualdades brutais entre os partidos políticos, mas também o casuísmo antidemocrático na divisão dos espaços em rádio e televisão. O critério,adotado - número de deputados em Brasília - desconsidera a quantidade de votos e as diferenças regionais dos partidos, uniformiza o país pelo gabarito dos partidos inchados pelo fisiologismo ao poder. Vimos também o uso aberto de recursos estatais para promover candidatos situacionistas, onde despontam o Rio de Janeiro e São Paulo como exemplos dessa escandalosa utilização de estrutura e recursos públicos para garantir o sucesso.

Podemos refutar a tese do senso comum, ao menos quanto às candidaturas petistas aqui no Rio Grande do Sul. Combinamos, na propaganda eleitoral, as demandas sociais da comunidade com diagnósticos e propostas, prestando contas das obras e realizações de nossos governos, e fazendo oposição , ao projeto neoliberal do governo federal. Resistimos e enfrentamos o governo de FHC, buscamos confrontar seus aliados, derrotá-los e fortalecer, ao mesmo tempo, um projeto democrático-popular. A disputa em Porto Alegre foi marcada, também, pela polarização em torno do projeto nacional. O resultado eleitoral é fruto de um processo de amadurecimento, de unidade interna, de relação harmônica entre governo e partido, que deve ser olhado com mais cuidado e carinho por todo o PT nacional. O resultado eleitoral em 96 consolida o PT gaúcho e a Frente Popular como o grande pólo alternativo a Britto e FHC para 1998.

Tivemos um crescimento em escala nacional nestas eleições, ainda que desigual, com altos e baixos. Assim como em vários estados do país temos grandes vitórias a festejar, também temos motivos mais que de sobra para nos preocuparmos. A potencialidade para o PT chegar ao segundo turno em quase todas as capitais nesta eleição estava dada, desde que o partido estivesse sintonizado com as lutas populares: contra o desemprego, pela diminuição da desigualdade social, por salário, moradia, habitação decente, saúde universal pública como direitos da cidadania. Este é um dos elementos por que a população votou em nós em Porto Alegre. Somos um partido das classes populares da cidade e, por sermos isso, é que temos condições de disputar outros segmentos, mas sem,perder,o rumo. Nossa base são as classes populares, é o movimento comunitário organizado, são os sindicatos e os trabalhadores assalariados.

<--break->Em Porto Alegre, estamos iniciando a terceira administração consecutiva da Frente Popular com 55% da população da cidade votando no primeiro turno pela continuidade do nosso projeto. Temos dois compromissos básicos: o primeiro é fortalecer o Orçamento Participativo e consolidar os fóruns de democratização do município. O segundo é exercer na administração o que fizemos na campanha, isto é, que Porto Alegre seja na prática um contraponto político ao predomínio neoliberal no país.

Este resultado favorável e este reconhecimento são frutos também de um processo de amadurecimento, de unidade interna, de relação harmônica entre administração, governo e partido. Como elemento que gerou esta coesão, sempre tivemos uma experiência partidária baseada no mais profundo respeito pelo princípio da proporcionalidade, pelo respeito às diferenças, pela tolerância entre os companheiros e companheiras do PT, que souberam construir uma direção legitimada, coesa, identificada com um programa comum.

Nas cidades em que éramos governo e tivemos problemas, eles foram decorrentes exatamente da ausência de maturidade da direção partidária, falta de coesão político-programática, personalismo e enfrentamentos que não podiam ocorrer entre governantes, candidaturas e direções de campanha. O grande problema que vivemos hoje no PT é que não estamos conseguindo fazer acompanhar o crescimento eleitoral e institucional pelo necessário avanço na coesão programática, pela manutenção da ética interna, pelo reforço da identidade ideológica, indispensáveis para garantir que um partido político como o nosso possa se desenvolver sem cisões e rupturas. Este talvez seja o maior desafio do PT.

Nossa política de alianças

A referência da capital gaúcha no interior do estado é crescente, pelo que demonstraram os resultados eleitorais em 1996. Elegemos prefeitos em 25 municípios, mais dezoito cidades onde o PT tem o vice em composições, fundamentalmente com o PDT e o PSB. São sempre coligações em que a postura de oposição a FHC e Britto é destacada. Este processo de bipolarização da política vai passar também por nossa relação com o PDT e o PSB, que devem ser buscados como parceiros para a construção de um campo político alternativo para o Rio Grande do Sul em 1998.

emos ouvido algumas teses que defendem a ampliação das alianças do nosso partido, envolvendo setores do PSDB e PMDB. Considero esta posição um equívoco. Expressa uma submissão, uma derrota político-ideológica frente à conjuntura. A vitória eleitoral para nós tem que ser obtida de outra forma, ou deixará de ser vitória, passará a ser abandono de projeto. No caso de São Paulo, por exemplo, nosso desafio é ganhar as pessoas que hoje estão iludidas com Pitta e com o projeto malufista. Entre os eleitores de Pitta, estão milhões de trabalhadores explorados, desempregados e marginalizados.

É este o enfrentamento que temos que fazer, sem cairmos na ilusão de que a solução é a ampliação do leque de alianças ao ponto de incorporarmos nossos inimigos. Isso descaracterizaria o partido e nosso projeto político-programático; e não conquistaríamos vitórias sólidas. Estaríamos abdicando de fazer aquilo que pode nos dar uma posição realmente segura: a conquista do movimento popular e sindical. O PT de São Paulo jamais poderia crescer ao se identificar com o partido da moderação, do sim, da ordem, que não conflita com Maluf e com o governo estadual do PSDB, que são afinal os responsáveis pela política de desemprego, de miséria, de perda da soberania nacional. Se há um reconhecimento do Maluf hoje, em São Paulo, é porque abdicamos de disputar na base social da cidade. Esta é a questão crucial. E não vale apenas para São Paulo. Há uma nítida identidade entre as derrotas eleitorais (com exceções onde perdemos para nossos erros brutais como em Diadema e Santos) e a perda de espaço, de referência do PT nos movimentos sociais, principalmente nos sindicatos, nos movimentos estudantis e de juventude.

Se deixarmos de ser referência de luta, de conquistas parciais, de contraponto político ideológico, e nos afundarmos na institucionalidade com práticas idênticas às dos nossos inimigos, por que as pessoas confiarão em nós?

<--break->Recentemente, ocorreram várias, manifestações de confusão política que, infelizmente, contribuem para diluir as diferenças entre o PT e os partidos burgueses. O então secretário-geral do PT, Cândido Vacarezza, foi comissionado no gabinete da Presidência da Câmara Municipal de São Paulo, do PPB. O deputado Paulo Delgado deu uma entrevista lamentável ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em que critica o PT por seu "isolamento", por sua "falta de alianças", pelo não-reconhecimento do caráter positivo e benéfico do governo FHC (sic). O governador do Espírito Santo, Vítor Buaiz, do PT, promoveu uma composição com o PSDB e com o PMDB para garantir a governabilidade, e vem pondo em prática uma política que em nada se diferencia da dos governadores do bloco de FHC. Não basta dizer que estes episódios recentes são casos isolados e destacados pela imprensa contrária ao nosso projeto. Os episódios são salientados porque acontecem e negam frontalmente nossa história e nossos propósitos; são exemplares da crise que vivemos.

Só a falta de coesão e identidade programática, a profunda submissão à institucionalidade e a ausência de critérios éticos e ideológicos é que permitem que esses fatos ocorram. O maior risco que corremos é de nos afastarmos dos movimentos populares, de suas lutas e reivindicações. Demarcarmos claramente com as práticas clientelistas, fisiológicas, não vacilarmos em disputas como a questão da reeleição e de outras contra-reformas que o governo FHC quer patrocinar não nos isolam, ao contrário, nos aproximam da esmagadora maioria da população que é vítima dessa política.

Não é com conciliação, nem com alianças subordinadas que realizamos em vários estados com o PMDB e o PSDB nas eleições municipais, que iremos polarizar na disputa política nacional. Há uma crescente orfandade em milhões de brasileiros que um dia acreditaram no caráter democrático da frente emedebista ou nas promessas social-democratas dos tucanos. Há, ainda, em maior número, milhões que nunca acreditaram nem assumiram projetos partidários. Aí deve residir nosso público-alvo por excelência e a eles chegamos por intermédio dos sindicatos, do movimento comunitário, pelas lutas dos sem-terra e dos sem-teto, pelos movimentos capazes de sensibilizar uma juventude desorganizada e sem perspectivas, pelos movimentos culturais, esportivos, religiosos. E se queremos atingi-los diretamente pelo partido, precisamos fazê-lo com ética e moral exemplares, com coesão política e ideológica que reacenda nas pessoas a vontade de lutar, de ter esperança.<--break->

Perspectivas

Portanto, nosso grande desafio no PT hoje é manter o crescimento do partido reforçando nossa coesão programática, a ética interna, a identidade ideológica. O partido não pode mais coexistir com a intolerância, com a falta de quadros políticos que compreendam como se constrói a unidade, como se respeita a democracia interna, como as várias correntes e tendências devem coexistir. Temos que ter uma direção política que enfrente esta situação, que conduza este processo, que faça valer uma unidade programática sob pena de, a médio prazo, se isso não for alterado, vivermos um processo de desagregação. Se queremos que o PT continue tendo a referência de suas origens, de seu projeto alternativo ao capitalismo, ele tem que se constituir enquanto tal, não só como uma referência política de massas, mas por uma política de construção partidária coerente com isso. Se o partido não consolidar sua estrutura orgânica e material, se não tiver uma preocupação com a formação de quadros, se for um partido frouxo, no qual a autonomia dos centros de poder, dos prefeitos e dos deputados tende a ser crescente, teremos cada vez mais uma colcha de retalhos dependente dos eleitos.

Se queremos construir outra sociedade e outro Estado temos, mesmo dentro da institucionalidade parlamentar da atualidade, que criticar o Legislativo nos moldes representativos em que está constituído. Isto deixou de ser uma preocupação, um elemento de conflito com os outros partidos em nossa atuação parlamentar, o que mostra o avanço da submissão à ordem, às regras estabelecidas e o abandono de concepções para nós estratégicas. Em geral, os eleitos no Brasil são senhores feudais de seus mandatos, não prestam contas a ninguém. E isto nada tem a ver com a forma parlamentar superior que queremos construir: ação direta e democracia participativa, sistema eleitoral proporcional idêntico para todo o país, Câmara legislativa única e Senado com funções apenas federativas, controle e revogabilidade dos mandatos.

As formas de democracia participativa que chamamos em Porto Alegre de Orçamento Participativo são desenvolvidas exatamente nesta direção. O cidadão que dele participa se apropria dos dados, desmistifica o Estado e toma para si a política. Começa a ter uma visão crítica em relação à democracia parlamentar, à democracia representativa. Ele percebe que essa democracia - evidentemente melhor que uma ditadura - não é exatamente a democracia que queremos, que é aquela que torna o cidadão, o trabalhador, mais próximo de ser também o legislador. O cidadão deve ter o controle do processo legislativo e do orçamento público da forma mais direta possível. Essa experiência o conduz a um nível de consciência superior sobre a sociedade de classes que queremos superar.

Em suma, se coesionarmos as lutas em defesa dos interesses comuns das classes trabalhadoras e dos pequenos produtores: por salário, terra, emprego, previdência e saúde, com uma profunda crítica das instituições do Estado capitalista, que no Brasil continua fisiológico, autoritário e patrimonialista, mesmo sob a batuta do ilustrado FHC, temos suficientes elementos constitutivos de um projeto democrático-popular. Se isto não responde a todas as questões, já nos liberta das lamúrias de que estamos sem perspectivas para o final do milênio e das vacilações e equívocos sobre nossa política de alianças. Não devemos ter dúvidas de que a luta e a defesa dessas bandeiras nos colocarão ao lado da grande maioria da população brasileira.

Raul Pont é prefeito de Porto Alegre, membro dos Diretórios Nacional e Estadual do PT-RS.

Mais radicalidade

O Partido dos Trabalhadores foi vitorioso, principalmente no 1º turno, apesar de ter perdido em municípios tradicionais, ou mesmo em centros urbanos. Isto se deve ao fato de que o PT interiorizou-se, quer dizer, avançou em pequenas e médias cidades do interior do país, resultando num grande crescimento eleitoral. No segundo turno, fomos vítimas da articulação da direita, que reunia-se toda contra o PT, exceto em alguns lugares isolados.

O PT não tem dificuldades em se manter nas cidades onde já administra, mas não podemos esquecer que uma administração petista fere interesses, principalmente privilégios. E isto resulta naturalmente que, mesmo tendo feito governos de profundas mudanças, com inversão de prioridades, há sempre tendência à união dos outros partidos para se contrapor ao PT. As nossas administrações, na sua maioria, são aprovadas pelas pesquisas de opinião antes das eleições. No período eleitoral, acabamos perdendo espaço em função desses elementos que abordei anteriormente.

As perdas eleitorais em municípios administrados pelo PT podem ter diversas causas.

A primeira é o processo de escolha dos nossos candidatos. Este é um grande problema a resolver, que influencia e acaba intensificando a disputa interna e, conseqüentemente, traz resultados nas eleições. Há algum tempo, havia urna postura partidária favorável à realização de prévias e isso engrandecia o processo democrático interno, mas hoje as prévias acabam trazendo antecipadamente a disputa eleitoral para dentro do PT. Uma disputa que muitas vezes acaba resultando em questões que não se resolvem após o resultado das prévias.

O mais salutar para o PT é definir as candidaturas a partir das instâncias maiores em cada município, que são o diretório e o encontro municipais, e não prévias. É necessário porém se regulamentar melhor o processo dos encontros, sem filiações de última hora com o objetivo de garantir votos ou delegados para esse ou aquele candidato. A disputa interna no PT prejudicou o partido em várias cidades, levando-nos inclusive a muitas derrotas que começam com as prévias, levando para a campanha eleitoral problemas não-resolvidos. Na campanha, o PT apresenta duas caras: uma faz a campanha do candidato que ganhou as prévias; a outra não faz a campanha. É preciso modificar o sistema de indicação e escolha dos candidatos às disputas municipais, que se diferencia de uma disputa de candidatura ao governo do estado, a cargos de deputados e senador. Este é um processo mais amplo, de plenárias regionais e estadual, em que os delegados e as lideranças do partido acabam decidindo pelos nomes a serem lançados como candidatos.<--break->

No município, não podemos delegar a uma simples deliberação de um filiado de última hora a decisão de indicação do candidato. É preciso haver respeito às instâncias que se elegem dois, três anos antes do calor das eleições.

O segundo ponto que é necessário considerarmos é a política de alianças. O PT avançou e continua avançando no processo de alianças. Esta política tem sido responsável pelo grande sucesso eleitoral em favor das forças de esquerda. No caso de Chapecó, a nossa política de alianças foi correta, pois conseguimos juntar na nossa coligação PT, PPS, PCdoB, PSB e PMN, que conformam a identidade política dos projetos democrático-populares nesses últimos anos.

Um dos problemas enfrentados pelo partido nestas alianças se refere a situações em que somos governo, já que o PT tem dificuldades em apoiar candidatos de outros partidos da frente para encabeçar as disputas. Isto se deve ao fato de o PT ser o maior partido, com maior apoio popular, mas também a uma cultura petista de que somos bons para receber apoio, mas temos dificuldades para apoiar a continuidade de um projeto que não seja encabeçado por nós.

Sou favorável a que o PT construa uma política de alianças contemplando a esquerda e setores que militam no campo democrático-popular, que fazem política com ética, mesmo não sendo de partidos de esquerda. Por isso, devemos fazer uma disputa,divisora de águas.. Infelizmente, os partidos no Brasil não expressam politicamente suas propostas. Muitas vezes, a caracterização partidária não coincide com seus programas.

Por isso, é tarefa do PT avançar e conseguir apoio para uma política de alianças que viabilize um projeto da esquerda no Brasil. Devemos constituir uma aliança mais ampla do que as realizadas até a última eleição. Uma aliança que abranja todos os brizolistas, com os quais, infelizmente, nunca conseguimos nos juntar numa disputa eleitoral à Presidência da República. Além disso, devemos disputar setores do PMDB e do PSDB, que poderiam estar neste projeto político mais de esquerda.

Em relação a candidato, não há nenhuma dúvida de que hoje só temos um nome nacional com condições de mobilizar milhões de brasileiros em torno deste projeto de centro-esquerda para ganhar a Presidência da República: Luiz lnácio Lula da Silva, tem de assumir este papel. Lula está deixando de assumir a tarefa de ser o articulador deste projeto. Mesmo que tenha passado a reeleição, não há porque termos receio de ter um candidato que faça o contraponto ao projeto neoliberal. Ninguém pode avaliar o que acontecerá daqui a dois anos, mesmo com a estabilidade do Plano Real, pois as condições de desemprego e instabilidade social no país são cada vez maiores.

É necessário que o PT faça um processo de reciclagem, de renovação de lideranças. Para isso, precisa trabalhar e investir na formação política de seus quadros. Precisamos que o PT volte a ter uma atuação política organizada no movimento social brasileiro. Os problemas sociais - as questões da reforma agrária, dos direitos dos trabalhadores, da miséria, da falta de política agrícola - e o enfrentamento das políticas neoliberais não poderão ser resolvidos sem um projeto alternativo de desenvolvimento, seja econômico, político ou social. A estabilidade de preço não resolve porque as pessoas não têm perspectivas, não têm esperanças, não têm emprego.

Temos um grande desafio pela frente. Para isso, o PT precisa sair das disputas internas e começar a consolidar um grande programa de transformações para o país, apresentar alternativas e discuti-las com a sociedade, avançando na sua organização. Este é o papel do PT: organizar, articulando-se com todas as entidades da sociedade civil no sentido de que elas também estejam presentes neste projeto de mobilização. Só assim teremos em cada município um partido mais atuante, mais organizado, comprometido com as causas populares.

O PT precisa ser mais radical. Em muitos lugares, em muitas administrações, nós estamos deixando de entrar em disputas com setores da burguesia, com aqueles que sempre viveram dos privilégios do dinheiro público em detrimento dos direitos mínimos da população. Esse enfrentamento tem de ser retomado. Ninguém vai conseguir construir e consolidar outro projeto adaptando-se aos métodos capitalistas de exploração.

Essa é a discussão que o PT tem de fazer. E isso se faz também no governo municipal. Precisamos saber a hora de dizer não, mesmo que se corra riscos de perda de popularidade, de um momentâneo isolamento. As administrações petistas e de frentes populares necessitam de maior rigor em planejar as ações para garantir que os recursos sejam aplicados de acordo com os interesses da maioria. Em curto espaço de tempo a população estará do nosso lado. Mas, à medida que fizermos uma ação sem direção, sem convicção e sem decisão,rompendo com alianças e mantendo acomodações em torno do poder, caímos na mesmice, prejudicando o projeto de futuro do PT.

Isso precisa ser resolvido no Diretório Nacional do PT. E preciso que o setor majoritário não se considere dono absoluto da verdade. É preciso abrir o partido para o debate e que todos estejam mobilizados neste mutirão. Ninguém pode ser excluído desse processo, seja pelo Diretório Nacional, seja por qualquer instância partidária. Todos devem contribuir nesse projeto político, na perspectiva de colocar o PT na condição de governar este país com Lula presidente.

José Fritsch é prefeito de Chapecó (SC).

A (des)união da esquerda

Qualquer análise a respeito das eleições deve partir de uma caracterização, aparentemente óbvia, mas necessária, dos três grandes blocos político-ideológicos existentes no país.

O primeiro deles é aquele que reúne partidos de centro e de direita e que estão atualmente, no governo federal, com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Reúne quase todo o PMDB, o PSDB - partidos considerados de centro - e o PPL, partido conservador de direita. Esses são os três grandes sustentáculos do atual governo. É claro que há outros partidos, mas que atuam como coadjuvantes, a exemplo do PL e do PTB.

O segundo bloco, de pura direita, hoje tem como carro-chefe o PPB. E, finalmente, há um terceiro bloco que reúne os partidos de esquerda, socialistas, comunistas (PT, PSB, PC do B, PDT, PPS) e franjas de centro-esquerda formadas por descontentes do PMDB e do PSDB.

No bloco do governo, o PSDB dificilmente pode se classificar co mo vencedor das eleições. Para um partido que tem a Presidência da República e os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais três estados-eixos do país -, colher os resultados magros que colheu nas grandes cidades e se conformar com as vitórias em cidades pequenas do interior e algumas poucas capitais, evidentemente não,é um resultado que possa ser considerado vitorioso.

O PMDB, o outro partido de centro nessa coligação, pode ter registrado o maior número de vitórias, mas foi também o partido que mais perdeu prefeituras. E perdeu também, como o PSDB, nos grandes centros, nos mais populosos, nos mais politizados, tendo que se conformar com a vitória, em algumas capitais de estados distantes do centro político e econômico do país. Então, o PMDB foi derrotado.

Nesse bloco, o grande vencedor, evidentemente, é o PFL. O fato de um partido dos grotões, do fisiologismo das cidades do interior, controlado pelo poder do Estado e pelo clientelismo ter vencido em cidades de caráter independente, nitidamente, oposicionistas e populares como Rio de Janeiro, Recife e Salvador, não pode deixar, a bem da verdade, de ser registrado como uma vitória importante desse partido de direita. Essa é a realidade do bloco de centro- direita: uma derrota relativa do PSDB e do PMDB e o fortalecimento do PFL. Isso é importante registrar, para que esse alardeado, alimentado e artificial prestígio que o presidente Fernando Henrique Cardoso pensa ter seja relativizado. Na verdade, o presidente, mais que nunca, com este resultado eleitoral sai refém do PFL nas suas posturas, nas suas decisões de governo na República.

<--break->O bloco de direita, que tem como sustentáculo o PPB, obteve vitórias em São Paulo - terceiro maior orçamento do país -, Manaus, Florianópolis, em cidades importantes como Santos e Campinas e outras de peso no interior de alguns estados. Isto significa evidentemente um fortalecimento marcante desse setor de direita, o qual ocasionalmente também faz parte do governo Fernando Henrique Cardoso, mas com um pé dentro e outro fora, pois é praticamente de oposição. Oportunista, é verdade, porque mantém'um pé no governo, mas o discurso e a postura do PPB representam nítida oposição de direita.

Quem se dá ao trabalho de acompanhar eleições em vários países pode verificar e registrar o aparecimento de uma direita agressiva e forte, cujo apoio eleitoral está em crescimento visível. Agora mesmo, na Inglaterra, onde há anos predominam dois partidos - um conservador, tradicional, e outro trabalhista - apareceu, pela primeira vez, um grande milionário que pretende organizar um partido alternativo para se opor à união européia, com um discurso nitidamente direitista, conservador e nacionalista. A mesma coisa ocorre em países como a França, onde há o renascimento da direita com Le Pen, em países estáveis e democracias sólidas, como a Áustria, onde a ultradireita, por meio de um partido nacionalista e xenófobo, teve um terço dos votos nas últimas eleições.

E, diante do processo de globalização sem preocupação social que acentua o desemprego, a exclusão dos trabalhadores, dos camponeses e dos setores da classe média - ao lado de uma oposição tradicional de esquerda, surge em vários países uma oposição de direita que, roubando bandeiras alheias, revestindo-as de conceitos xenófobos e de componentes preconceituosos contra os operários e empresários de outros países, tenta se firmar.

Esse nicho da política foi detectado pelo senhor Paulo Maluf e por seus marketeiros, fazedores de eleitos via mídia eletrônica. E é com este nicho de oposição pela direita que o senhor Paulo Maluf pretende sair de São Paulo, seu tradicional reduto, e alcançar apoios mais amplos, capazes de tornar o PPB um pólo alternativo ao governo Fernando Henrique Cardoso e, ao mesmo tempo, ao terceiro bloco, o de esquerda.

Na Folha de S. Paulo de 24 de novembro de 96, Maluf lançou seu Credo, verdadeiro manifesto de candidato à Presidência da República. Lá, Maluf se coloca como um crítico à abertura econômica, querendo aparecer como o campeão dos operários e dos empresários brasileiros atingidos por esse processo. Sua atuação será marcada por uma política clientelista, a partir do uso do aparelho de Estado, para atingir os extratos populares mais desvalidos com programas azeitados com clientelismo, como opção ao discurso tradicional da esquerda, da generalização dos direitos humanos e da cidadania.

Portanto, Paulo Maluf é um perigo para o país, porque não representa apenas um simples candidato da direita tradicional. Ele continua sendo um candidato da direita, na essência, na alma e na estrutura, mas surge com uma roupagem e com um discurso roubado dos candidatos dos partidos de centro e até da esquerda para tentar,arrebanhar votos populares.

O bloco da esquerda é evidentemente heterogêneo, - porque se sabe muito bem que ela maximiza suas divergências para manter-se dividida, o que representa sua maior fraqueza.

Mas, analisando de forma separada, podemos verificar, por exemplo, que o PDT - apesar do enfraquecimento nos últimos anos - conseguiu resistir a essa eleição. Venceu em Porto Velho, teve uma brilhante vitória em São Luís e venceu em Curitiba, cidade economicamente importante. Elegeu mais de quatrocentos prefeitos em todo o Brasil.

O PSB é uma grata surpresa e nós da esquerda devemos ficar muito felizes com o seu desempenho. O partido conseguiu vitórias importantes em capitais como Maceió, Natal e, principalmente, Belo Horizonte. A vitória esmagadora de Célio de Castro o coloca, inegavelmente, como uma importante liderança nos próximos anos para o Brasil.

No caso do PT, a nossa expectativa de vitória no segundo turno não se confirmou. Mas, é simplista querer classificá-lo, apenas pelo resultado do segundo turno, como derrotado. O PT conseguiu, sendo oposição numa situação difícil para os ideais socialistas em todo o mundo, firmar-se como um partido nacional. Hoje, ele consegue obter cerca de 20% dos votos, do Amapá ao Rio Grande do Sul, nas cem maiores cidades do Brasil. Inegavelmente isso é uma proeza, um fato digno de nota que ninguém deve menosprezar. E conseguiu importantes vitórias, como em Porto Alegre, Belém e outras cidades de grande influência política em suas regiões.

O fato de, no segundo turno, não termos conseguido confirmar as votações em várias capitais e perder em algumas cidades fundamentais do estado de São Paulo empana o crescimento e o enraizamento do PT. Querer negar isso é tapar o sol com a peneira. Mas, mesmo nessas grandes cidades onde o PT perdeu as eleições no segundo turno, ele sempre atingiu um patamar elevado de votos, o que demonstra respaldo da opinião pública, dos trabalhadores e da classe média do Brasil, patrimônio muito importante não só para o PT, mas para todo o campo centro-progressista e de esquerda do país.

Não podemos, no entanto, deixar de analisar alguns aspectos negativos: a disputa interna fratricida que, em alguns casos, levou a derrotas tidas como impossíveis de acontecer. Nós perdemos eleições consideradas ganhas devido a lutas internas.

<--break->Também é importante analisar outro comportamento do PT. Hoje, passadas as eleições, muitos criticam o PT dizendo que em algumas cidades, como Campo Grande, Maceió, Aracaju, Florianópolis e Caxias do Sul, o partido foi buscar apoio - aberta ou disfarçadamente - de partidos considerados de direita, até mesmo do PFL e do PPB. Isso é verdade. E aconteceu porque nos anos que precedem às eleições, os aliados naturais, do ponto de vista ideológico, que são os partidos de esquerda - PSB, PCdoB, PPS, PDT -, e os de centro, como PMDB e PSDB, não foram procurados. Assim, não sendo feitas as alianças no momento certo, com antecedência, nos confrontamos com candidatos desse campo, que deveriam ser nossos aliados. Daí a busca desesperada de alianças de última hora, com a direita, que prejudicam e descaracterizam o Partido dos Trabalhadores.

Esta análise tem de ser feita, e não pretender condenar simplesmente os candidatos de Campo Grande, Maceió, Aracaju etc. Não feitas as alianças no campo da esquerda e do centro na hora certa, em eleições do segundo turno fatalmente veremos candidatos de esquerda contra candidatos de centro ou, às vezes, os candidatos de esquerda contra outros também de esquerda, buscando aliança com a direita para ganhar de qualquer jeito.

O desafio é fazer com que a esquerda, a centro-esquerda e setores de centro articulem um projeto que possibilite à Nação sentir sua força, que permita enfrentar o projeto de Paulo Maluf/PPB ou o de Fernando Henrique/PFL. Isso inclusive deve influir na nossa atuação na Câmara dos Deputados. Enquanto os setores dos blocos de centro-direita e de direita dão demonstrações repetidas de capacidade de unidade à sua maneira, nós da esquerda damos repetidas demonstrações de capacidade de desunião. Esse projeto democrático, nacional, progressista, pode ser iniciado com a nossa obrigação de apresentar ao país uma proposta de entendimento, de articulação, de atuação conjunta na própria Câmara, até para que setores do centro democrático e de centro-esquerda, que equivocadamente aderiram ao projeto Fernando Henrique/PFL, venham para o nosso lado. Há força, há possibilidade de união entre nós. Somos capazes de atraí-los para o nosso campo. Não devemos somente marcar posição e continuar eternamente dizendo que crescemos 2% ou 3%. Esse é um jogo para ganhar, para derrotar o bloco da direita de Maluf/PPB e o bloco de centro-direita Fernando Henrique/PFL.

Espero que partidos como o PV, PMN, PCdoB, PPS, PDT, PT, PSB e setores do PMDB e do PSDB tenham capacidade de se entender e se unam na Câmara dos Deputados, formalizando um bloco parlamentar de esquerda e centro-esquerda, sinalizando que este é um caminho alternativo real para o Brasil.

Eduardo Jorge é deputado federal pelo PT-SP.

Por uma nova estratégia

"o sussurro sinfônico da vida civil"

Manuel Bandeira

1. Para examinar a atual situação do país e os rumos do PT, considero imprescindível transcender a microconjuntura e recuperar uma certa perspectiva histórica. Não estamos vivendo uma situação rotineira, a ser tratada com medidas de ordinária administração. O PT se encontra em nítida defensiva estratégica, o adversário avança sobre nós e não sairemos do corner sem ousadas respostas estruturais, para nós mesmos e para o país. É preciso relançar material e simbolicamente o projeto petista, torná-lo consistente e galvanizador para o próximo período da vida brasileira, dar-lhe capacidade de efetiva polarização social e política e isso com certeza não se fará somente com ações de curto prazo.

2.Tomo a liberdade de partir do nosso 5º Encontro Nacional, em 1987. Ali, sintetizando a experiência acumulada pelo PT e pelas esquerdas na luta pela redemocratização, fizemos uma leitura rigorosa do país e do mundo e, com base nela, elaboramos uma estratégia de disputa pelo poder no Brasil. Analisamos a sociedade brasileira, sua estrutura de classes, seus grupos de interesse, sua peculiar, inserção internacional, estudamos nossa formação econômica, a expressão cultural e o processo político - e definimos nosso,projeto transformador.

A estratégia então elaborada, o chamado projeto democrático-popular, nos permitiu, dadas as circunstâncias históricas, chegar a 1989 em condições efetivas de disputa, no plano sócio-político e no plano especificamente eleitoral. O "democrático-popular" não foi apenas um clichê analítico ou um slogan eleitoral. Foi um conceito de Brasil.

Ali definimos a necessidade de uma aliança social para que as esquerdas disputassem com reais perspectivas históricas o poder político no Brasil. Seria impossível, pensávamos, promover as reformas estruturais de que o país tanto necessita sem constituir um bloco social mais amplo que a classe operária fabril e os trabalhadores rurais. Seria preciso integrar também as classes médias assalariadas, os pequenos e médios proprietários da cidade e do campo e os setores empresariais que tinham e têm contradições mais que episódicas com o modelo econômico excludente.

3.Com base, naquela leitura do Brasil e no projeto democrático-popular, foi possível construir ao longo dos anos esse bloco social - bloco talvez seja uma palavra inadequada, pela idéia de permanência histórica que dá, mas ao menos uma soma de forças sociais razoavelmente consistente - que alicerçou a candidatura Lula de 89, permitindo à esquerda, pela primeira vez na história do Brasil, polarizar com a direita na disputa pelo governo federal.

Não se deve esquecer, é claro, que uma série de fatores conjunturais favoreceu tal polarização. Na esfera política, o desgaste do governo Sarney, a perda de prestígio das forças de centro (representadas, na ocasião, por Ulisses e Covas), a dificuldade de Brizola para expressar setores e sentimentos emergentes no país etc. Na esfera social, mereceu destaque o ascenso do movimento sindical e o notável avanço das correntes progressistas na base e na hierarquia católicas.<--break->

Mas não há porque negar que acertamos também por nossos méritos, pela nossa capacidade de autotranscendência cultural e política. Soubemos dar à candidatura Lula um caráter efetivamente democrático-popular, sem exclusivismos. Os setores sociais que queríamos associar em um projeto nacional alternativo, com a notória exceção (e que exceção!) dos descamisados, de fato se integraram à candidatura Lula. O seu programa corajoso mas não sectário, os privilégios que combatia, os novos direitos que defendia, a linguagem simples e direta que adotava, sua postura visceralmente antiautoritária em relação aos problemas e desejos do país, tudo isso deu à candidatura Lula aquela amplitude social que almejávamos. No segundo turno somaram-se, evidentemente, segmentos importantíssimos, inclusive em termos sociais, mas o potencial agregador, a promessa histórica a um só tempo plebéia e universalista encarnada pela candidatura Lula já vinha do primeiro turno. O sucesso político da candidatura traduzia, na verdade, anos de pertinaz acúmulo de forças ideológico e social.

4.A partir do segundo turno de 1989, as elites dominantes perceberam que tinha havido uma mudança de qualidade na vida política brasileira: a disputa pela Presidência não se dava mais no interior do bloco burguês, entre forças divergentes do mesmo campo, com a esquerda isolada ou aliando-se de modo subalterno a este ou aquele candidato, mas ocorria efetivamente entre esquerda e direita, com seus respectivos aliados e sem que o centro fosse a priori cativo de nenhum dos campos. A esquerda se constituía, surpreendentemente, em verdadeiro pólo da disputa, atraindo quase todos os setores políticos não-conservadores, mobilizando multidões em todo o país e obrigando o adversário ao uso de flagrantes expedientes manipulatórios (recorde-se apenas a edição fraudulenta do debate final Lula x Collor e a atribuição ao PT do seqüestro de Abílio Diniz, entre muitos outros).

<--break->5.O susto das classes dominantes foi enorme, quase tão grande quanto o nosso. E as elites não perderam tempo. Trataram de redefinir sua estratégia de poder. Primeiro, tentando enquadrar Collor. Depois, superado o problema Collor, tecendo e (reconheçamos) executando habilmente o seu plano de ação para 94. A nova estratégia das elites não começou absolutamente com o Plano Real. Longe disso, o Plano Real foi a culminação de uma política de médio prazo, de um projeto conservador de acúmulo de forças, de conquista de hegemonia que veio sendo construído gradativamente. Para isso, o pensamento econômico tradicional foi unificado com mão de ferro em torno do ideário neoliberal. O contraditório acadêmico e jornalístico, antes tolerado, passou a ser estigmatizado como dissidência. Os fracassos dirigistas de Funaro e Zélia foram esplendidamente utilizados (sem que nós da esquerda nos déssemos conta da dimensão cultural do processo) para fazer do papel regulador do Estado um mito negativo. Tudo o que não fosse ortodoxia econômica neoliberal passou a ser identificado arbitrariamente com a defesa de uma economia fechada, autoritária, estatista, corporativa, inflacionária. Em uma palavra: com o atraso econômico e social. A Constituição de 1988, reflexo do equilíbrio de forças que se queria romper, foi pouco menos que demonizada, chegou-se a compará-la até mesmo com o muro de Berlim.

As elites dedicaram-se, portanto, a forjar um novo consenso estratégico e a articular uma aliança social que lhes permitisse executar com radicalidade o programa de reformas neoliberais. Fazendo, inclusive, a disputa ideológica com a opinião pública de centro, cujos reclamos solidaristas foram ao mesmo tempo desqualificados pelo seu irrealismo e absorvidos na idéia-força de que o controle da inflação, as privatizações e a rápida internacionalização da economia trariam consigo, automaticamente, efeitos distributivos. No plano eleitoral, o processo de hegemonização foi semelhante. Os possíveis candidatos dissidentes da área conservadora foram sendo eliminados um a um, pelas próprias elites, mesmo que estas não tivessem ainda escolhido o seu príncipe. Mas já sabiam o que não queriam. Quércia, de início protegido de Roberto Marinho, foi oportunamente defenestrado, assim como foram neutralizadas as veleidades autonomistas do PFL, PTB etc., deixando o caminho livre para que o candidato das elites tivesse o perfil eleitoral mais adequado às circunstâncias da disputa: um perfil de centro-esquerda.

6.Pelo menos três processos de o vasta repercussão histórica facilitaram a vitória dessa estratégia conservadora. Antes de mais nada, o desmoronamento vertiginoso do chamado campo socialista, com suas tremendas conseqüências objetivas e subjetivas para o conjunto da esquerda mundial, mesmo para a nova esquerda, como o PT, que já nasceu crítico do socialismo real. Aquelas insurreições populares contra a tirania abalaram o carisma da esquerda enquanto tal, a sua própria legitimidade libertária. Obviamente, todo o processo favoreceu a ofensiva ideológica do capitalismo e, em particular, do neoliberalismo. À vertigem política e doutrinária, veio somar-se a abertura predatória da economia brasileira, conjugada com os eleitos da "terceira revolução industrial", que alterou e continua alterando dramaticamente o mundo do trabalho - nossa referência axiológica e nossa base política por excelência -, modificando a vida cotidiana, os valores e a cultura das classes trabalhadoras e golpeando duramente o movimento sindical. Sem falar de um fenômeno menos ostensivo e espetacular, mas nem por isso menos vital para o PT e as esquerdas, que foi a guinada conservadora do Vaticano e da hierarquia católica brasileira, fragilizando e acuando o catolicismo progressista, uma das componentes fundamentais do PT e decisiva para a nossa presença em tantos meios populares e tantas regiões do Brasil profundo.

7.Nesse período, a sociedade brasileira mudou - e mudou muito. As suas transformações materiais e espirituais foram extraordinárias. O país em diversos aspectos é outro. As desigualdades econômicas e sociais, é claro, continuam gritantes e até se agravam. Mas isso não significa que o país não tenha mudado e que não tenham se alterado radicalmente as condições concretas em que atuamos. Os personagens já não são os mesmos, tanto no espaço dominante quanto popular. A burguesia brasileira foi redesenhada. Seus vínculos com capital internacional, sobretudo com capital financeiro, aprofundaram-se de modo notável. Oligarquias econômicas importantes, especialmente em determinadas regiões do país, foram devastadas pela concorrência internacional, substituídas por novos grupos de poder, com origens e tradições diferenciadas. As classes populares também estão longe de ser as mesmas de dez anos atrás. O operariado fabril perdeu, evidentemente, peso contratual e político com a restruturação produtiva. Os bancários, de protagonismo tão relevante, passaram em pouquíssimo tempo de 800 mil para 400 mil trabalhadores! A chamada economia informal, esfinge cultural e política, expandiu-se de modo formidável, numa relação ao mesmo tempo tensa e funcional com o mercado.

O PT e as esquerdas, no entanto, não fomos capazes de acompanhar tais transformações. Não demos conta de mudar na mesma medida, não os nossos princípios, naturalmente, mas a nossa análise e a nossa forma de agir. Não conseguimos elaborar uma leitura sistemática dessa emergente realidade econômica, social e cultural e, com base nela, traçar uma nova estratégia de disputa pelo poder político no país. A rigor, ainda não extraímos todas as lições da importante derrota política e eleitoral de 1994. O PT sem dúvida marcou e continua marcando sua presença em todas as lutas sociais e institucionais do período, a favor do impeachment, da reforma agrária, da previdência pública, da Vale do Rio Doce e tantas mais. Nosso partido deita profundas raízes na vida do país, na sua história e no seu presente, e continua sendo referência e motivo de esperança para milhões de brasileiros. As recentes eleições municipais comprovaram a força do PT: fomos o partido mais votado nas 50 e nas 200 maiores cidades e o segundo mais votado no conjunto do país. No entanto, desde 89 carecemos de verdadeira estratégia global, naquele sentido forte, substantivo, de um projeto alternativo coerente e de um caminho sócio-político definido para tentar viabilizá-lo.

8.E a questão, hoje, é essencialmente estratégica: o PT vai ou não vai continuar polarizado criativamente a disputa política brasileira? As elites dominantes - inclusive através da reforma eleitoral - querem fazer com que a polarização volte a ser interburguesa: Maluf & seu grupo x FHC & aliados, ou outra semelhante. O episódio da reeleição mostra que as elites têm considerável força acumulada e significativa margem de manobra para lograr o seu objetivo. Em outras palavras: se não tivermos uma extraordinária capacidade de auto-superação, de renovação programática, agregação social e contundência política, voltaremos a ser uma força lateral, marginal na disputa política do país.<--break->

9.Não se sai, obviamente, da defensiva sem alterar a correlação de forças desfavorável. Trata-se, portanto, de retomar uma perspectiva de acúmulo de forças do PT e das esquerdas, que não pode dar-se apenas mediante iniciativas tópicas, em torno de questões específicas da luta política imediata, por mais importantes e necessárias que estas sejam. Nem tampouco pode traduzir-se (novamente?) em uma espécie de sacralização das próximas eleições presidenciais, que serão com certeza parte importantíssima do relançamento de nosso projeto histórico mas não devem ser objeto de expectativas messiânicas.

Dificilmente conseguiremos alterar a atual correlação de forças sem um forte investimento na disputa ideológica e cultural. Se existe hoje uma hegemonia das idéias neoliberais na opinião pública brasileira - e de fato existe - é preciso forjar gradativamente uma contra-hegemonia, elaborar e/ou difundir um pensamento alternativo que se lhe contraponha e que possa disputar com ele as consciências e o imaginário popular. É sem dúvida um trabalho que exigirá muita paciência e obstinação. Que só dará frutos se for sistemático e continuado, aproveitando-se das gravíssimas implicações da política neoliberal e dos pontos fortes do melhor pensamento democrático e progressista nacional e internacional. Para isso, contudo, é preciso reconstituir toda uma rede de contatos e efetiva interlocução com a comunidade científica, artística e intelectual, que a esquerda perdeu. Dar vida a novos espaços de participação civil da intelectualidade, sem instrumentalização nem indevido partidarismo, criando uma esfera de reflexão crítica e alternativa, apta a traduzir a inquietação ética, o evidente mal-estar na cultura perante os valores anti-humanistas do neoliberalismo.

10.Não se trata de abandonar ou relativizar o trabalho institucional - no Parlamento e nos governos - em nome de uma volta ao trabalho social. Abandonar a disputa no terreno institucional seria unia regressão conservadora. Para um partido que pretende instaurar o poder popular no país, seria imperdoável covardia histórica. Seria assumir voluntariamente o, papel de coadjuvante. Pelo contrário: devemos qualificar cada vez mais nossas bancadas e nossos governos, dar-lhes maior consistência administrativa e política, fazer com que o seu importante acervo transformador seja incorporado ao discurso e à ação oposicionista nacional do PT. Nossas melhores experiências de governos locais, longe de significarem um desvio de rota, antecipam, prefiguram o nosso projeto alternativo nacional ao neoliberalismo. O Orçamento Participativo é o exemplo mais evidente, radicalizando e socializando a democracia, com enormes ganhos, além do mais, em eficiência gerencial. Mas existem outras inovações democrático-populares, nem sempre lembradas por nós: o saneamento (sem sucateamento) das empresas municipais; o resgate das políticas públicas de educação, saúde e cultura; o investimento ecologicamente orientado em infra-estrutura urbana; a adoção de inéditas políticas de combate às discriminações e de promoção da igualdade de raça, de gênero. Além de algo que no Brasil constitui uma espetacular novidade histórica: em nossos governos não há corrupção, a ética é muito mais do que o senso de limite, é um critério permanente de ação.

Se prego o nosso avanço e consolidação institucional, rejeitando qualquer conservadora dicotomia entre luta social e luta institucional, nem por isso deixo de considerar que o investimento intelectual, organizativo e político do PT no terreno social tem sido insuficiente. A crise do movimento sindical e da maioria dos movimentos, sociais, evidentemente, não resulta da maior ou menor ação social do PT. O movimento sindical se vê a braços com as novas tecnologias, o desemprego etc. Os movimentos comunitários enfrentam com dificuldades a crise de financiamento do Estado, e assim por diante. Se a raiz da crise dos movimentos sociais não está dentro do PT (só o sectarismo interno mais exacerbado pode ensejar análises desse tipo), é preciso reconhecer que o PT pode e deve contribuir - e muito - para investigar as características desse impasse estrutural, para analisá-las com rigor e profundidade, para pesquisar a curva histórica de situações semelhantes no mundo, para construir junto com as entidades e movimentos sociais hipóteses encarnadas de superação da crise. Pela sua própria condição de partido, que reúne em seu interior militantes e lideranças dos mais diversos movimentos, o PT, sem a pretensão de ditar normas para ninguém, pode ajudar muito os movimentos (e ser, por sua vez, ajudado por eles) a se relançarem como sujeitos políticos ativos na vida do país.

11.Nesse mesmo sentido, é preciso superar a velha (e também falsa) dicotomia entre "partido dirigente" e "partido de opinião". Nenhum forte partido de esquerda no mundo é apenas um partido de opinião. Os maiores da América Latina não o são. O CNA (Congresso Nacional Africano), muito menos. Nem os social-democratas nem os verdes europeus são meros partidos de opinião. Todas essas agremiações estão articuladas com uma rede de movimentos sociais, econômicos, culturais, feministas, de jovens etc., sem a qual sua presença política nos respectivos países não seria a metade do que é. Os partidos não dirigem nem formal nem politicamente tais redes - nessa medida, tampouco são "partidos dirigentes", no sentido clássico dos antigos PCs, quando os movimentos sociais emanavam do partido e executavam servilmente a sua política - mas articulam-se cotidianamente com ela, buscam fortalecê-la sem comprometer a sua autonomia organizativa, cultural e política, investem na consistência e amplitude dessa rede, por que sabem que é impossível qualquer política de fato transformadora no mundo de hoje, por via democrática, que não conte com forte adesão social, que não tenha presença e raízes na consciência e na prática cotidiana de milhões de pessoas. Uma rede, dessa natureza é importante fator de resistência ético cultural e indispensável instrumento de disputa contra-hegemônica.

Luiz Dulci é presidente da Fundação Perseu Abramo, vice-presidente nacional do PT e secretário de Cultura de Belo Horizonte.

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