EM DEBATE

Setores nacionalistas e de esquerda consideravam a estatização da economia uma coisa positiva. Com a derrocada dos regimes do Leste Europeu, começou-se a fazer a apologia da privatização e da economia do mercado. Diante desse quadro, qual deve ser a posição da esquerda brasileira? Reavaliar o setor produtivo estatal do país? Buscar um caminho alternativo ao antigo modelo e à privatização Collorida? Se assim for, como este caminho se relacionaria com a construção de uma sociedade socialista e democrática? Neste número, Teoria & Debate abre espaço para essa discussão.

Nova velha era

O que temos e o que almejamos

Nova velha era

A discussão sobre a privatização realizada atualmente no Brasil tem sido marcada por dois equívocos igualmente problemáticos. O primeiro, "à direita", dá por estabelecido que a participação do Estado na economia, particularmente no setor produtivo, é coisa do passado, superada pelas tendências mais recentes do capitalismo em sua fase pós-industrial; o segundo, "à esquerda", considera que a participação do Estado faz-se ainda necessária, especialmente naqueles setores considerados estratégicos, em que uma "lógica" estritamente privada não seria de modo nenhum confiável. No primeiro, fica implícito o preconceito de que tudo o que é estatal tornou-se intrinsecamente ruim; no segundo, assume-se que o estatal é a forma de propriedade mais confiável e talvez mais eficiente nas atividades decisivas (estratégicas) para o desenvolvimento econômico.

De um modo geral, na obra de Marx, os conceitos de socialismo e estatização tendem a se confundir como idênticos, embora o próprio autor certamente os diferenciasse a partir de uma perspectiva estritamente teórica. É que, permeando suas obras principais - particularmente O capital -, subsiste uma crença na "simplificação" das relações sociais, o que levaria a um contexto em que as tarefas administrativas do Estado e do setor produtivo se tornariam tendencialmente irrelevantes qualitativa e quantitativamente. Embora, para a transição ao socialismo, o controle do Estado fosse fundamental - o que distinguia Marx dos anarquistas -, se caminharia para o seu virtual desaparecimento, tornando quase idênticos o social (isto é, o público) e o estatal. Esta visão afigurava-se de forma tão nítida em Marx que foi facilmente herdada por Engels, Lenin, Trotski e Rosa Luxemburgo.

Na verdade, duas concepções teóricas específicas constituem a base natural deste tipo de visão: a de que o trabalho complexo tende a ser substituído por trabalho simples e a de que existe uma tendência à concentração e centralização dos capitais.

Quanto à primeira concepção, Marx tinha convicção absoluta de que a evolução do capitalismo, a partir do advento da indústria moderna, traria não apenas ganhos sistemáticos na produtividade, acarretando desnecessidade relativa crescente de trabalho, como também a sua desqualificação crescente, quando "um punhado de mulheres e crianças substituía artesãos cuja qualificação levou vários anos para ser alcançada". A redução do trabalho complexo (qualificado) a trabalho simples (não-qualificado) não constituía apenas um procedimento teórico que procurava tomar logicamente inteligível a lei do valor (ao permitir, por exemplo, a soma e a comparação de trabalhos qualitativamente diferentes), mas também representava, para Marx, uma tendência concreta do capitalismo.

Na segunda concepção, processo de concentração centralização de capitais implicaria o desaparecimento gradual das pequenas e médias empresas, à medida que a concorrência fosse intensificada em cada ramo de produção. No limite, chegar-se-ia a uma situação em que um pequeno número de grandes empresas dominaria todos os mercados, reduzindo-se concomitantemente o número e o peso da burguesia na sociedade. Como consequência principal, haveria uma crescente polarização entre burguesia e proletariado, com o gradual desaparecimento das camadas intermediárias (artesãos, pequenos produtores, pequenos comerciantes etc).

Com o trabalho cada vez mais simplificado, padronizado e organizado em pequeno número de grandes empresas, a administração do sistema produtivo seria uma tarefa banal, baseando-se cada vez mais em regras objetivas e na padronização da produção em grande escala. Com isso, entendendo-se a socialização como o controle, a posse e a propriedade dos meios de produção por parte dos trabalhadores, afirmar-se-ia que ela poderia ser alcançada através da pura e simples estatização, isto é, a propriedade dos meios de produção pelo Estado, que desapareceria pouco a pouco. Neste caso, os trabalhadores teriam diretamente a posse e o controle e, indiretamente, a propriedade dos meios de produção, viabilizando-se, com a estatização, a transição para o socialismo.

A evolução do capitalismo no século 20 veio confirmar e, ao mesmo tempo, refutar algumas dessas proposições. Em primeiro lugar, apesar da ampla destruição de velhos ofícios e de diversas ocupações qualificadas, o capitalismo recriou novas qualificações, seja pelo surgimento de novos setores produtivos, seja pelo avanço da burocracia (no sentido weberiano), que passou a constituir o padrão de eficiência administrativa e produtividade, inclusive nos setores produtivos. Como resultado, nas grandes empresas, a camada burocrática, em geral qualificada (white collors, na feliz expressão criada por Wright Mills), expandiu-se relativamente ao proletariado de base, invertendo por certo a proposição de Marx: qualificação crescente em vez de proletarização crescente ou "adeus ao proletariado", parafraseando André Gorz. Mais ainda, nos países ou regiões de dinâmica mais frágil, produziu-se em grandes proporções uma extensa camada de marginalizados, que passaram a ser definitivamente desnecessários à expansão do capitalismo.

Na verdade, fazendo justiça a Marx, poderíamos dizer que tais resultados são perfeitamente compatíveis com a estrutura teórica de O capital, embora sejam incompatíveis com proposições específicas retiradas do mesmo livro buscando desenvolver uma teoria científica do socialismo.

<--break->Observamos, em segundo lugar, que as previsões teóricas a respeito do processo de concentração e centralização de capitais acabaram, de um modo geral, se realizando: nos últimos cem anos, as escalas de produção deram sucessivos saltos, juntamente com a formação de grandes conglomerados econômico-financeiros. Entretanto, esta evolução não se concretizou, conforme previra Marx, na redução absoluta do número de empresas. De fato, ocorreu exatamente o contrário, vale dizer, a proliferação de dezenas de milhões de micros, pequenas e médias empresas em todo o mundo capitalista. O fenômeno, que já fora observado primariamente por Eduardo Bernstein - um dos baluartes da ala reformista da social-democracia alemã -, ainda no início deste século, não teve o destaque merecido nas principais correntes do pensamento marxista.

Para esse fenômeno podemos destacar duas explicações. A primeira refere-se ao fato de que o processo de desaparecimento de empresas (falência ou incorporação pelas maiores) tende a ser compensado pelo aparecimento de novos ramos de atividades, o que implica a proliferação de um grande número de novas empresas, pelo menos nas fases iniciais de desenvolvimento destes mesmos ramos. Uma segunda explicação, provavelmente muito mais importante, relaciona-se ao fato de que a dinâmica da grande empresa capitalista tem implicado uma crescente divisão do trabalho, em que atividades tipicamente terciárias (comercialização e marketing, por exemplo) ou mesmo produtivas (manutenção de equipamentos, desenho industrial, desenvolvimento de novas técnicas produtivas etc) são crescentemente externalizadas. Assim, cada vez mais, a dinâmica de expansão capitalista consistiria no desenvolvimento de "polvos gigantes" liderados por uma "cabeça" - a grande corporação monopolista - que se ligaria a milhares de "braços" - as micro, pequenas e médias empresas que realizariam tarefas e atividades diversas, em geral não padronizáveis, para a grande empresa.

O resultado de ambos os fenômenos, isto é, a crescente qualificação do trabalho ao lado da expansão de polvos gigantes é uma regulação cada vez mais complexa das trocas, construindo um cenário em que a substituição da lei do valor pelo planejamento estatal vai se tornando virtualmente impossível. Neste sentido, a estatização deixa de ser sinônimo de socialização, já que seu pressuposto - a crescente simplificação do trabalho organizado em grandes unidades produtivas - simplesmente não se verificou. Mais do que isso, em virtude da impossibilidade técnica de criação e administração pelo Estado de milhões de micro, pequenas e médias empresas, um sistema amplamente estatizado tende a ser basicamente ineficiente, seja porque as diversas funções especializadas realizadas por tais empresas acabam sendo embutidas nas grandes, provocando "buracos" de ociosidade, seja porque tais funções especializadas acabam simplesmente não se realizando, provocando o crescente obsoletismo tecnológico.

De qualquer modo, sabe-se desde logo que as milhares ou milhões de "pernas" do "polvo" têm que ser necessariamente privadas, cabendo ao Estado pura e simplesmente uma atuação indicativa e indutora. O grande problema é saber o que fazer com a cabeça do "polvo", as grandes corporações monopolistas.

O social, o estatal e o privado

Chegamos ao cerne da questão. O sistema capitalista é dinâmico a partir deste núcleo central de grandes empresas que, no entanto, só existe porque flutua num oceano de pequenas e médias empresas, numa relação de complementaridade e dependência. São as grandes corporações que controlam o capitalismo: por isso ele é cada vez mais injusto, mas também - e isto é inegável - cada vez mais dinâmico. Assim, a preservação do núcleo de expansão econômica construído ao longo da história da acumulação capitalista é condição sine qua non para qualquer projeto de sociedade futura.

Num país periférico como o Brasil tudo isso fica muito evidente. De fato, a viabilidade do crescimento econômico (isto é a construção e operação do indispensável núcleo de grandes empresas) dependeu, desde sempre, do Estado. Esta é a origem, mais que conhecida, do nosso enorme setor produtivo estatal (SPE) que, bem ou mal, garantiu altas taxas de acumulação por mais de 40 anos. Quando, na década de 80, este setor parou de investir, o país estagnou. Não há simplesmente como operar a economia brasileira sem a presença deste conjunto de ativos produtivos representado hoje pelo SPE. Em torno da questão sobre o que fazer com ele, é possível vislumbrar quatro alternativas.

A primeira é a do chamado projeto neoliberal. Consiste simplesmente em transferir para o capital privado a propriedade e o controle das empresas hoje estatais. Duas objeções podem ser levantadas contra esta privatização: sua insuficiência, do ponto de vista econômico, e sua perversidade, do ponto de vista social. De fato, a mais elementar observação dos países centrais (França, Itália, até a Inglaterra - mesmo após a avalanche thatcherista) mostra que o capital privado é insuficiente para a tarefa de bancar a expansão a longo prazo. A participação do Estado no investimento total foi e continua sendo decisiva para a acumulação.

Muda, de país para país, a forma como isso se dá. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Estado banca a maior parcela do investimento, mas o faz por trás dos orçamentos milionários do Pentágono, do programa espacial e outros. Vale dizer: a manutenção do núcleo de empresas-chave para a dinâmica do crescimento, depende, em larga medida, de uma alavancagem externa ao capital privado, ou seja, de recursos públicos. Se isso é verdade no centro do capitalismo, mais ainda na periferia. A privatização pura e simples do SPE, nos moldes neoliberais, significa, no nosso caso, condenar o país à estagnação eterna. Mas a esta flagrante insuficiência econômica, junta-se a evidência de uma perversidade maior. É que, constituído como propriedade privada, este núcleo torna-se foco gerador de desigualdade social em escala ampliada e fonte de um poder político que desequilibra o jogo democrático em qualquer sociedade. O poder das grandes corporações privadas, a extraordinária concentração de riqueza que elas propiciam são o oposto exato do socialismo que queremos.

Outra alternativa, que em geral aparece como contrapartida automática à privatização neoliberal, é a manutenção deste núcleo sob a égide do Estado. Tem sido comum ouvir (e mesmo dentro do PT há vozes importantes que o dizem) o argumento de que "há empresas que só o Estado pode tocar", seja porque estão em setores "estratégicos" nunca muito bem definidos (estratégico pode ser o tecnologicamente avançado, o monopólio de recursos naturais, ou apenas um chavão para fugir do debate central), seja porque "não podem ser lucrativas", pois precisam cumprir uma "função social". O que se percebe é uma visível (e daninha) confusão entre o estatal, e o social (público). Estes não são conceitos equivalentes e nunca o foram. Não se tomam equivalentes dependendo de quem ocupa o aparelho de Estado. A história do socialismo real mostra isto melhor do que qualquer argumento teórico. O que queremos dizer é que os nossos estatistas, no afã de combater o neoliberalismo privatizante, incorrem em erro tão antigo quanto trágico: atribuir ao Estado a condição de alter ego da sociedade, e supor que a propriedade estatal (desde que "bem conduzida", "saneada" ou o que seja) é sinônimo de propriedade social (pública).

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É duro dizê-lo, mas este engano histórico da esquerda contribuiu largamente para o fenômeno definido pela expressão "privatização do Estado". Foi escudado no suposto "papel social" das empresas estatais que o grande capital privado engordou, beneficiando-se das tarifas subsidiadas, dos orçamentos obscuros, dos financiamentos pródigos. Empresa estatal é pública, logo, sua finalidade precípua não é o lucro... este é o mote que a esquerda difundiu (e ainda difunde), para gaúdio e proveito do empresariado, nacional ou não, que agora, não satisfeito com o desfrute da refeição, quer tomar posse da cozinha.

Desfazer este equívoco implica reconhecer que manter a propriedade estatal sobre as empresas do núcleo econômico decisivo significa condenar ao agravamento as desigualdades típicas do capitalismo, em qualquer das suas versões. Os privilégios corporativos injustificáveis, a corrupção que ronda todo o tempo os orçamentos milionários das estatais, o desmesurado poder que acumulam os eventuais ocupantes do Estado (e, no quadro democrático, a alternância desta ocupação é regra imutável), visto que têm a posse de quase um terço do PIB, são obstáculos à democracia plena, ao socialismo. Há que removê-los, desfazendo a confusão básica entre estatal e social (público), e entre empresa e Estado. Empresas são sempre "para dar lucros", esta é a regra de ouro; não há nenhum mal em que sejam de propriedade social, mas não devem ser estatais sob pena de serem misturados objetivos diferentes, embaralhando no mesmo jogo regras administrativas empresariais com alocação de recursos fiscais. A transparência necessária para a construção do socialismo impõe a separação inequívoca entre universo empresarial e estatal, mesmo se tratando de empresas sociais (ou públicas), isto é, cuja propriedade está compulsoriamente pulverizada pelo conjunto da sociedade.

Uma outra posição que, por sua história pregressa na teoria do socialismo, merece ser mencionada, é a que preconiza a autogestão na empresas do atual SPE. Quanto a isto, não é preciso ir muito longe para constatar que, conquanto a autogestão tenha um caráter muito mais democrático do que a propriedade privada ou sua alternativa estatal, seria de todo inconveniente aplicá-la ao núcleo básico da economia. Organizado como oligopólio e/ou monopólio, este núcleo, submetido à autogestão, produziria terríveis distorções de renda, de gestão do pessoal etc. Efetivamente, a autogestão só é aceitável em regime de concorrência. Não sendo assim, ela se transforma numa espécie de "privatização corporativa", incompatível com o projeto socialista.

Há que se buscar pois uma quarta via, que supere a dicotomia "mercado x Estado" ou "propriedade privada x propriedade estatal". Esta via consiste em estabelecer o controle social direto sobre o núcleo dinâmico da economia (no Brasil, constituído basicamente pelo SPE), desestatizando-o sem torná-lo privado. A via escolhida deve contemplar a solução do problema que se popularizou com o nome de "dívida social", qual seja, a situação quase falimentar dos fundos sociais tais como o FGTS, o PIS-Pasep e, principalmente, a Previdência. É preciso desestatizar estes fundos, torná-los autônomos e, ao mesmo tempo, quitar a dívida que o Estado contraiu para com eles, em décadas de má-gestão e de desvio "legal" de seus recursos para os cofres do Tesouro. A constituição de um grande fundo previdenciário público, autônomo em relação ao Estado, com direção eleita pelo voto direto, que assumiria a propriedade e o controle das empresas do SPE, como uma espécie de holding e fundo de pensão, é o caminho prático desta proposta.

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Voltando ao ponto de partida, é forçoso reconhecer que o desenvolvimento das forças produtivas, ao contrário do que Marx imaginou, não leva à proletarização da sociedade. O processo produtivo cria e recria o tempo todo novas qualificações do trabalho e supõe, para sua dinâmica, a propriedade privada. Não há como abolir o reino do privado. Caminhar na corrente da História implica não ser contra a propriedade, mas sim a favor. Tão radicalmente a favor que a luta passa a ser para que ela se torne acessível a todos: reforma agrária, direito a moradia e - este o nosso ponto - um pecúlio suficiente para garantir a segurança frente ao desemprego e à aposentadoria. Este pecúlio, para que não se torne um direito fictício, como no Brasil de hoje, tem que estar lastreado em quotas de propriedade (intransferíveis) das empresas que constituem o núcleo fundamental da economia.

Talvez nos acusem de heréticos. Este pode ser o preço que se paga na busca do socialismo possível, ao se enfrentar interesses privados fundamentalmente estabelecidos, que vão do neoliberalismo da moda ao corporativismo tão caro a certos setores da esquerda.

Maurício Borges e Fernando Damata Pimentel são economistas e professores da UFMG.

O que temos e o que almejamos

Atualmente, tem-se discutido bastante a falência da intervenção estatal na economia, porém, quase nenhum debatedor deixa claro os motivos pelos quais o Estado adentrou no campo econômico.

No cerne desta questão, encontra-se a grande depressão econômica vivida pela economia capitalista, a partir do crack da Bolsa de Nova Iorque em 1929, com conseqüências devastadoras para a economia mundial, que perduraram por boa parte da década de 30. As causas desta crise foram várias, sendo suas ligações bastante complexas, e não constituem objeto do presente texto. Um aspecto decorrente da referida crise foi o surgimento do consenso, quase absoluto, entre os economistas, de que o livre funcionamento das forças de mercado não garantia, necessariamente, a maximização dos resultados macroeconômicos, principalmente em termos de emprego e utilização da capacidade instalada da economia.

É neste contexto que surge a Teoria Geral de J. M. Keynes, cujo principal corolário, em termos de política econômica, é que o Estado deveria ser o grande investidor da economia, com o intuito de manter o nível de investimento num patamar que garantisse o pleno emprego dos fatores capital e trabalho na economia.

Paralelamente, reforçando a idéia de limitação do mercado, o mundo assistia ao sucesso das economias centralmente planejadas, socialistas, principalmente da URSS, que saindo de uma economia semifeudal na década de 20, industrializou-se rapidamente e conseguiu passar incólume a grande depressão da década de 30.

<--break->Dentro deste contexto mundial, ou seja, da constatação de fragilidade do livre mercado e do sucesso da planificação, surge nas sociedades capitalistas um certo planejamento econômico, como forma de contornar as limitações inerentes ao livre mercado.

Assim, os países capitalistas experimentaram um crescimento da participação do Estado na economia através, basicamente, de três mecanismos: regulamentação de alguns mercados, participação direta na produção por meio de empresas estatais e constituição de uma série de benefícios/ garantias sociais, o chamado Wellfare State (Estado de Bem-Estar Social).

Em resumo, todo o crescimento da economia mundial, desde o fim da 2º Grande Guerra até a década de 70, teve uma grande participação do Estado, tanto nas economias socialistas como nas capitalistas.

A partir de meados dos anos 70, a economia capitalista mundial se retraiu passando a apresentar menores taxas de crescimento e maiores taxas de inflação. A estrutura estatal passou a ser questionada nos países industrializados, e no final da década os candidatos com propostas neoliberais venceram eleições nos EUA e Grã-Bretanha, levando a cabo políticas de diminuição da interferência estatal no campo econômico.

Nos EUA as empresas estatais praticamente não existiam e a prática neoliberal se resumiu a diminuir a regulamentação dos mercados, e à desativação de vários mecanismos do Wellfare State.

Na Grã-Bretanha, o neoliberalismo foi além, e atacou frontalmente o setor produtivo estatal, que apresenta uma grande importância relativa, em torno de 10% da economia, promovendo um processo de venda, para o público em geral, da propriedade destas empresas (privatização), o que contribuiu bastante para a difusão dos ideais neoliberais, e o surgimento de políticas com aspectos semelhantes em várias partes do mundo. Porém, mesmo no processo de privatização britânico, um dos mais radicais, em muitas das empresas vendidas o Estado continua a manter certos poderes, como a obrigatoriedade de manutenção do serviço de telefonia rural, que muitas vezes é deficitário e a indicação de diretores com poderes de veto nas empresas.

As economias planificadas, a partir da década de 70, também começaram a mostrar sinais de exaustão, sendo a "ponta do iceberg" as sucessivas insuficiências na produção agrícola.

A partir de meados dos anos 80, o chefe de Estado da URSS, Gorbachev, passou a admitir publicamente a estagnação da economia soviética centralmente planejada e o desejo do estabelecimento de mecanismos de mercado como forma de combate à situação de incapacidade de imprimir maior agilidade à estrutura econômica, paralisada pela burocracia do PCUS (Partido Comunista da União Soviética).

Em 1989, a Alemanha se unificou num país capitalista, e em 1991, as Repúblicas Soviéticas, após uma tentativa de golpe de Estado, optaram pelo fim da URSS e adoção de economias de mercado.

Todas estas modificações apontam para uma drástica redução da intervenção estatal na economia, mas esta redução por si só não garante a prosperidade.

O processo de privatização britânico foi apenas um sucesso de público, porém não combateu significativamente os males da economia, a não ser no curto período de três anos, em que o processo de vendas se intensificou, contribuindo na diminuição do déficit público e no conseqüente combate à inflação. Após a fácil entrada de recursos provenientes da privatização, a economia não havia reagido com crescimento, e o desemprego havia atingido níveis recordes (11% da População Economicamente Ativa).

<--break->Da mesma forma, o fato da extinta URSS ter optado por uma economia de mercado, não significa, em primeiro lugar, que naqueles países a influência do Estado acabará, pois uma economia que passou mais de 70 anos com planejamento centralizado, jamais será modelo de liberalismo econômico. Em segundo lugar, nada garante que esta seja a melhor solução para a crise que atravessavam.

No Brasil, como em outras economias latino-americanas, a intervenção estatal na economia também aconteceu a partir do período do pós-guerra, porém com uma motivação diferente: a necessidade de industrialização. Estava claro que a especialização na exportação de produtos primários apenas aumentava a disparidade entre os países latino-americanos e os industrializados.

A intervenção estatal na economia brasileira se deu basicamente nos setores básicos (energia, transportes, mineração, siderurgia etc) em que a iniciativa privada nacional não possuía o aporte de capital necessário, ou preferia não correr o risco do investimento.

O Estado brasileiro, desta forma, sempre cumpriu o papel do grande capitalista de nossa economia, tanto de forma direta, através das empresas estatais, gerando as bases materiais para o aparecimento da indústria nacional, quanto de forma indireta, através de financiamentos e até mesmo subsídios à iniciativa privada.

A intervenção estatal no Brasil permitiu não só a industrialização e diversificação, mas também que nossa economia fosse a de maior crescimento no mundo capitalista do pós-guerra até 1980, com uma taxa média de 7% ao ano.

A crise que se instaurou na economia brasileira nos anos 80, e que perdura até hoje, é caracterizada como crise do Estado, mais precisamente de seu modelo de financiamento. Muitos atribuíram a crise ao déficit público, dívidas externa e interna. Como proposta para solução da crise, aparece a diminuição do Estado. Pouco se discute as origens destes fatores geradores da crise de financiamento do nosso setor estatal.

O Estado brasileiro cresceu bastante, atingindo um nível gigantesco que começou a gerar disfunções. A primeira, e mais óbvia, foi a descoordenação das políticas governamentais, devido à sobreposição de tarefas entre vários órgãos e empresas estatais. Porém, a mais grave, e menos apontada, é a penetração de interesses particulares na estrutura do Estado, desviando sua atuação da originalmente intencionada. Este desvio e a total ausência de controle e fiscalização da atuação estatal são os grandes responsáveis pelos três fatores apontados como geradores da crise de financiamento do setor público: déficit público, dívidas externa e interna.

<--break->Tanto a dívida interna como o déficit público são engordados por vastas transferências ao setor privado, através de inúmeros mecanismos, que variam do subsídio direto com créditos a juros nominais pré-fixados, às operações de "salvamento" de empresas, com o Estado assumindo o controle de empresas privadas praticamente falidas, saneando suas finanças e pagando seus credores.

A dívida externa, até o final dos anos 70, era em grande parte de responsabilidade do setor privado. A Resolução 432 do Banco Central permitiu que os devedores externos pagassem suas dívidas em cruzeiros para o Banco Central, que passaria a correr o risco cambial, que até então era dos devedores.

O Estado brasileiro deixou de ser o grande indutor do crescimento econômico para se transformar na grande agência prestadora de favores a setores específicos da sociedade, num verdadeiro balcão de negociatas. O custo de todos estes favores concedidos no passado se apresentam hoje como dívida estatal (interna e externa) e a dificuldade de pagamento de seus encargos é apontada como fracasso da intervenção do Estado na economia.

Além disso, devido ao total descontrole do setor público, torna-se muito difícil saber quantos e quais setores da economia foram e estão sendo subsidiados direta e/ou indiretamente, dificultando a aferição dos resultados da intervenção estatal e fazendo com que os próprios beneficiários desconheçam o montante de recursos de que estão se apropriando.

A Petrobrás, por exemplo, tem sua lucratividade fortemente corroída pela imposição da comercialização do álcool, que não é uma tarefa originalmente sua, e os usuários de automóveis movidos a álcool não imaginam qual o subsídio implícito no combustível, mas sabem que pagam imposto municipal sobre o mesmo.

Este exemplo é bastante famoso, porém existem inúmeras distorções deste tipo nos meandros do setor estatal. Muitos deles o próprio governo conhece mas não se dispõe a modificar, permitindo que a administração aja com critérios outros que não os econômicos e sociais.

É com este diagnóstico da crise do Estado brasileiro que deve ser entendido o projeto neoliberal do governo Collor, que procura, através da privatização, transferir uma grande massa de ativos produtivos, e que gerarão renda imediata ao setor privado, em troca das chamadas "moedas podres", títulos com longo prazo de vencimento.

Os compradores de empresas públicas pagam com estes títulos porque o governo, ao contrário dos outros agentes econômicos, os aceita equiparados ao cruzeiro. Ou seja, um título de Cr$ 100, que o governo pagaria daqui a dez anos é aceito para liquidação de operações de privatização pelos mesmos Cr$ 100, quando o mercado secundário destes títulos pagava, antes da regulamentação da lei da privatização, apenas Cr$ 25.

Além disso, o preço mínimo das empresas vem sendo fixado em níveis bem inferiores ao seu valor potencial de mercado, o que implica mais perdas para os cofres públicos.

Ao final deste processo, o Estado terá a mesma dificuldade em rolar suas dívidas e equilibrar suas contas, uma vez que não está entrando dinheiro novo. Também desaparecerá boa parte do setor produtivo estatal, que poderia ser utilizado como indutor do crescimento econômico, da mesma forma como foi usado em toda a nossa história desde a industrialização.

O programa de privatização que está sendo levado a cabo pelo governo está destruindo o patrimônio público e fará surgir um Estado quase incapaz de influenciar o crescimento econômico. Por isso, faz-se necessária a proposição de um modelo alternativo, enquanto há tempo.

<--break->A alternativa para este projeto de privatização requer, em primeiro lugar, a "estatização" do setor estatal da economia, pois, como foi visto anteriormente, cada setor do Estado age de acordo com os interesses de setores privados, de forma independente, por critérios próprios, descoordenados, gerando grandes distorções. Em segundo lugar, é necessário propor um modelo alternativo de Estado, menor, mais ágil, articulado e controlado. E, por fim, a instrumentalização de um mecanismo de passagem do Estado que temos para o que queremos.

O governo deve se apossar efetivamente da parcela estatal da economia, para poder avaliar quais setores são prioritários e passíveis de serem articulados num processo de crescimento auto-sustentado a longo prazo. Dentro dos setores escolhidos, deve-se optar por quais empresas operarão, e, por fim, em quais produtos deverá se especializar cada uma destas empresas.

Os setores/empresas que não apresentarem possibilidade de articulação deverão ser vendidos à iniciativa privada, em troca de "dinheiro bom", cruzeiros correntes, para a constituição de um grande fundo de investimento. As empresas que não encontrarem compradores no setor privado poderão ser assumidas por completo pelos funcionários, ou se estes também não as quiserem, poderão ser liquidadas.

O novo modelo de Estado deverá se pautar por critérios de compromisso de intervenção intensa e localizada, em setores da economia que sejam estratégicos, no sentido de induzir o crescimento dos outros setores da economia, gerando as bases de um modelo de desenvolvimento auto-sustentado.

O Estado deverá atuar com critérios bastante claros de intervenção e meios de avaliação objetiva de desempenho, com participação de entidades da sociedade civil, do Congresso e de representantes dos trabalhadores. Uma vez comprovada a ineficácia da atuação estatal em determinado setor, as empresas deverão ser vendidas rapidamente, para que os recursos sejam empregados em empresas estatais já existentes ou em novos empreendimentos que apresentem melhores resultados para a atuação estatal.

Finalmente, cabe ressaltar que a visão acima esboçada examina o papel do Estado e aceita a idéia do crescimento sustentado apenas nos marcos de uma relação econômica internacional, onde o Brasil assume o papel de exportador de capital e de mero mercado das grandes potências.

A inversão dessa lógica, possibilitando o efetivo crescimento econômico dos países atrasados e concomitante usufruto das ciências e tecnologias-pilares da economia moderna, exigirá uma nova ordem mundial, uma nova estrutura política mundial, um novo direito internacional.

Luiz Gushiken é deputado federal PT/SP.

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