Há algum tempo a propaganda da burguesia, reproduzida em jornais, revistas e livros e transmitida pelo rádio e TV, vem se concentrando numa idéia chave: o socialismo fracassou, não há alternativa provada ao capitalismo. Naturalmente essa assertiva se traveste de muitas maneiras, havendo formas mais ou menos sofisticadas de expô-la, conforme os distintos públicos-alvos dos veículos.
Fosse verdade o que insistentemente é afirmado pelos porta-vozes da burguesia, e estaríamos realmente diante de gravíssima derrota do movimento socialista, revolucionário e operário. A Revolução Socialista de Outubro e outras grandes revoluções (como as da China e Cuba) tiveram tão vasta repercussão não "apenas" por liberarem do jugo do capital milhões de trabalhadores, mas principalmente por terem provado que era possível destruir o poder burguês, quebrar sua força, seu exército, seu estado. Aquilo que os escravos da Antigüidade jamais conseguiram, aquilo que as revoltas camponesas também não alcançaram, aquilo que os operários insurretos em Paris em 1871 conseguiram efemeramente foi finalmente concretizado na Rússia em 1917.
Mas o fascínio da Revolução Russa teria se esfumado se, à façanha inédita, não se seguisse outra prova: a da capacidade dos trabalhadores construírem uma nova e superior sociedade, dispensando as velhas classes dominantes. A letra da Internacional proclama, sem meias palavras, essa pretensão da classe operária de demonstrar a natureza parasitária da burguesia e de se constituir em classe dirigente.
Pelo menos até a denúncia do stalinismo, em 1956, não havia dúvidas, nos meios progressistas e de esquerda, tanto quanto ao significado da Revolução como em relação ao processo de construção do socialismo. Ambos eram não apenas considerados positivos como eram descritos – muitas vezes de forma grandiloqüente – de modo a serem avaliados como "a maior conquista do movimento operário revolucionário."
É verdade que o relatório apresentado por Nikita Kruchev ao XX Congresso do PCUS lançou sombras sobre um período até então compreendido – com raras exceções – como um processo linear, uma espécie de fluxo contínuo de acertos, de avanço, de "luz". Mas o fato da denúncia partir do interior do próprio partido soviético indicava que havia possibilidade de correção a partir "de dentro". E mais: no final dos anos cinqüenta os progressos da sociedade socialista soviética tinham como símbolo o Sputnik e Gagárin. Socialismo continuava a significar progresso — e progresso para todos — e parecia voltar a significar democracia. Mesmo diante do jovial e carismático John Kennedy — tão diferente desse carcomido Reagan — Kruchev fazia boa figura.
Nas duas décadas que se seguiram à destituição de Kruchev da chefia do partido e do Estado soviéticos a situação mudou. A democratização emperrou (embora tenha sido definitivo o banimento das condições que haviam permitido os crimes de Stalin) e o progresso econômico e social começou a marcar passo. Os problemas do socialismo real manifestaram-se de modo mais dramático na Europa Oriental — na Tchecoslováquia; na Polônia, na Romênia — mas seu epicentro estava na União Soviética.
1) Espraiou-se no movimento socialista uma inquietação e mesmo um descrédito no processo em curso na URSS. Mesmo entre os comunistas, não foi sem dificuldades que Georges Marchais avaliou como "globalmente positivo" o balanço dos primeiros 60 anos. E após o estado de sítio e a ascensão de Jaruzelski na Polônia, Enrico Berlinguer declarou que a "força propulsiva" da Revolução de Outubro tinha se esgotado.
A propaganda burguesa, trabalhando em cima desses fatos, redobrou em seus esforços para "demonstrar" a inviabilidade do socialismo, a superioridade da "economia de mercado" e a impossibilidade da democracia florescer sem que a "liberdade econômica" (leia-se propriedade privada dos meios de produção) esteja garantida. Essa propaganda penetrou até mesmo em setores da esquerda.
Lembro tudo isso para responder que considero imenso o significado político da glasnost e da perestroika. O êxito desses processos abre caminho para que nós, partidários do socialismo, possamos falar "de boca cheia" sobre a superioridade do sistema social que defendemos, apontando exemplos. A idéia do socialismo como realização da democracia econômica, social e política, que a burguesia admite apenas na propaganda, se fortalecerá com o sucesso de Gorbachev.
O triunfo das reformas deve significar também um mais acelerado desenvolvimento econômico, técnico, científico e cultural, que tornará mais fácil nossa tarefa de provar que socialismo é mais progresso para todos. Nos últimos trinta anos as mudanças foram enormes, no mundo inteiro. Mas não resisto a uma especulação: se com Kruchev o PCI amealhou mais um milhão de votos em 1962, com Gorbachev quantos milhões de trabalhadores se tornarão mais permeáveis às idéias socialistas?
2) A democratização do poder e a efetiva participação dos trabalhadores nas decisões políticas e econômicas na sociedade soviética terão que evoluir, ou a glasnost e a perestroika serão derrotadas. A essência mesma desse processo de reformas de natureza política, e de caráter democrático. Glasnost (transparência) significa fundamentalmente a possibilidade de crítica, para aproximar o dito do real, para eliminar a contradição entre fatos e palavras, e permitir aos cidadãos confiarem nas instituições soviéticas.
Mas a democratização da URSS deve ser vista a partir das condições concretas, históricas, do desenvolvimento do socialismo naquele país, e não a partir de modelos abstratos. Um exemplo hoje, muito mais importante do que falar num improvável pluripartidarismo, é apontar como condição do sucesso das reformas a democratização interna do partido.
Olhando com muito realismo o processo em curso, creio que ele leva a uma maior participação e discussão também porque põe em questão os modos de trabalhar e viver de milhares de soviéticos. Já estão ocorrendo e tendem a crescer disputas entre camadas sociais e entre grupos com interesses específicos diversos. Parte dos trabalhadores, paradoxalmente para quem raciocina de modo dogmático, deve inclusive se manifestar contra as reformas. O importante é considerar legítimas essas divergências, informar a sociedade sobre elas.
Acho isso possível, e acho que vem ocorrendo, apesar de estarmos diante de uma reforma "de cima para baixo", de uma democratização realizada não contra, mas pelo e através do partido e do Estado.
3) Não vejo nenhuma hipótese das reformas abrirem caminho ao desenvolvimento do capitalismo.
A razão fundamental é o fato de a URSS ser um país que fez há 70 anos uma revolução socialista, que liquidou sua burguesia, que não admite a propriedade privada dos meios de produção. Isto tudo está definido na Constituição e nas leis, mas muito mais importante é que existe na URSS uma cultura socialista profundamente enraizada nas massas do povo. Existe uma consciência impregnada entre os trabalhadores (industriais, colcosianos, intelectuais) sobre a superioridade do socialismo e o que representou de conquistas etc.
A pergunta sobre uma "volta" ao capitalismo provavelmente parte do conhecimento do papel do mercado nas origens do capitalismo, ou recorda as palavras de Lênin sobre a capacidade da pequena propriedade gerar capitalismo. Basta lembrar a enorme distância de tempo histórico que nos separa seja das origens do capitalismo, seja dos primórdios da Revolução, para entender que a permissão para as atividades quase artesanais privadas, ou para a constituição de microempresas familiares, nada representa em termos de renascimento do capitalismo.
Socialismo e planejamento são idéias tão associadas que muito brucutu considerou "planejamento" algo subversivo no Brasil, antes e depois do golpe de 1964. Natural que alguns se inquietem ouvindo dizer que Gorbachev vai acabar com o planejamento e voltar ao mercado. Não é bem assim: o que está mudando é o planejamento centralizado e burocratizado da época heróica da industrialização acelerada, que não tem mais lugar na enorme e diversificada economia soviética de hoje.
Trata-se de descentralização e democratização da gestão econômica, de atenção maior ao desenvolvimento da produtividade do trabalho, de racionalização à base de conversão da ciência em força diretamente produtiva. E se trata de responsabilidade, de elevação do controle social sobre o que, como, quanto, a que custo se produz.
Na URSS não há desemprego e os preços do essencial são estáveis desde 1929. Mas o que muitas fábricas produzem encalha nas prateleiras das lojas — apesar de o soviético ter sempre dinheiro no bolso para consumir. Por acaso alguém acredita que atenta contra o socialismo modificar a situação dessa fábrica, até mesmo fechada? E isso levando em conta outro fato, a carência de mão-de-obra naquele país, e o dispositivo constitucional que considera o trabalho um direito de todos?
Não. Decididamente as reformas não tentam trazer a URSS de volta ao passado capitalista. Setenta anos depois da vitória de Outubro, discute-se o futuro.
4) Em termos de política internacional entendida como relação entre Estados, creio que já se pode falar à base de fatos. A maior credibilidade da União Soviética facilitou a aceitação de suas propostas visando frear e fazer retroceder a corrida armamentista, visando o desarmamento. A Europa respira hoje aliviada dos mísseis de curto e médio alcance, e se discute, após o encontro Reagan-Gorbachev, a redução dos arsenais atômicos à metade.
Isso é muito positivo. Creio que a esquerda já esqueceu as "chinoiseries" dos anos sessenta, já entende que desarmamento não significa conciliação com o imperialismo. Aí está, se precisar ainda mostrar exemplos, o nosso acordo firmado com a Nicarágua, para ajudar a revolução sandinista a resistir à agressão norte-americana.
Outra repercussão importante teremos sobre os países socialistas do leste europeu. Está claro que Gorbachev, dentro dos limites existentes (e é bom que esses limites sejam respeitados) para a expressão de opiniões sobre outros partidos e Estados, estimula processos de democratização e mudança naquela região, não está satisfeito com as petrificações, com o nepotismo de um Ceausescu.
A China merece um parágrafo à parte. Os esforços para melhorar as relações e restabelecer a cooperação prosseguem e dão frutos, talvez lentamente demais, mas dão. Imaginem o que representará tanto para o movimento operário e socialista como para a mudança da correlação de forças em escala mundial, primeiro relações normais e depois especiais, de aliança, entre China e URSS. Nós, que lutamos pelo socialismo em condições tão difíceis, bem que merecemos isso, no final dos anos 80.
Cronologia da Perestroika
1978
27 de novembro – Mikhail Gorbachev é nomeado secretário do Comitê Central encarregado da Agricultura.
1980
21 de outubro – Gorbachev nomeado membro titular do politburo.
1982
11 de novembro – morte de Brejnev
22 de novembro – Andropov, é nomeado secretário-geral do PC, declara na plenária do Comitê Central o seu desejo de introduzir algumas experiências para melhorar a situação da economia e aprofundar a autonomia das unidades de produção.
1983
março/abril – campanha contra o alcoolismo e as faltas ao trabalho.
1984
9 de fevereiro – morte de Andropov
13 de fevereiro – eleição de Chernenko como secretário-geral
26 de março – Conferência Nacional sobre os problemas do Complexo agro-industrial.
10 de dezembro – Conferência Nacional sobre o "aperfeiçoamento do socialismo avançado e o trabalho do ideológico do Partido". Relator: Gorbachev.
1985
10 de março – morte de Chernenko
11 de março – Gorbachev é nomeado secretário-geral da PCUS
23-24 de abril – na Plenária do Comitê Central, Gorbachev anuncia as grandes linhas de seu programa econômico: recuperar o atraso acumulado em relação ao ocidente, maior autonomia na gestão das empresas, revalorizar o trabalho profissional, melhorar a qualidade da produção. É modificada a composição do politburo com entrada de Chebricov, Ligachov e Ryskov; Sokolov torna-se membro suplente e Nikonov é nomeado secretário do CC responsável pela agricultura.
1º de julho - Romanov sai do politburo e do secretariado.
2 de julho - Chevardnadze substitui Gromyko no Ministério de Relações Internacionais. O último é nomeado presidente do Soviete Supremo.
4 de agosto – O Comitê Central adota uma série de medidas para desenvolver a autonomia contábil em diferentes setores.
15 de outubro – Análise, pela Plenária do CC, do novo programa do PCUS, das emendas aos estatutos e das grandes orientações e projeções para 1986/2000.
23 de novembro – criação do Comitê da indústria agroalimentar (GOSAGROPOM)
1986
25 de fevereiro a 6 de março – 27ºCongresso do PCUS. Adoção das "Orientações fundamentais do desenvolvimento econômico e social da URSS para 1986/1990 e para o período até o ano 2000". Adoção do novo programa do PCUS. Zaicov entra no politburo.
31 de março – decreto sobre a descentralização na fixação dos preços de alguns produtos agrícolas.
2 de julho – adoção pelo Comitê Central e pelo Conselho de Ministros de "medidas pra melhorar radicalmente a qualidade de produção: Criação, a partir de 1º de janeiro de 1987, da GOSPRIENKA, organismo responsável pelo controle da qualidade dos produtos.
31 de julho – discurso de Gorbachev em Khabarovsk: "eu estabeleceria um sentido de igualdade entre os termos "Perestroika" e "revolução".
13-14 de outubro – encontro Regan-Gorbachev em Reykijavik, Islândia.
19 de novembro – Lei sobre "o exercício de atividades individuais". As pequenas empresas familiares são autorizadas a atuar no setor de serviços (restaurantes, confecções, conserto de carros, cabelereiro etc...). A lei concerne a 2 milhões ou 3 milhões de pessoas e o objetivo é que a participação do setor privado na economia passe de 2% a 4%.
16-17 de dezembro – manifestações nacionalistas em Alma-Ata. O 1º secretário do PC de Kazaquistão é substituído pelo russo Kolbine.
1987
13 de janeiro – decreto sobre a criação de empresas mistas no território soviético com a participação do setor privado com a participação de capital estrangeiro.
22-23 de fevereiro – libertação de 150 dissidentes, após o retorno de Sakarov a Moscou em janeiro.
Março – 18º Congresso dos Sindicatos. Gorbachev declara: "Ou a democracia ou o imobilismo".
21de junho – eleição para os sovietes locais com autorização, em alguns casos, de candidaturas múltiplas (em 4% das 52 mil circunscrições eleitorais).
25 e 26 de junho – Plenária do CC. Adoção do projeto sobre a Perestroika, na gestão da economia. Decisão de se convocar uma Conferência Nacional do PUCS sobre a "democratização progressiva do Partido" para 28 de junho de 1988. Yakovlev, Sliounkov e Nilonov entram para o politburo.
3 de julho – aparece o primeiro número da revista dissidente "Glasnost". No mesmo mês manifestações dos tártaros da Criméia na praça Vermelha.
6 de agosto – resolução do CC e do Conselho de Ministros sobre a liberação parcial dos preços, a organização do comércio atacadista e a Perestroika do sistema bancário.
26 de agosto – Ligachov, número 2 do partido, ataca os "inimigos de classe" que gostariam de ver a URSS "se aproximando da economia de mercado".
novembro – demissão de Yeltsin, defensor da aceleração das reformas, do cargo de responsável do PC na cidade de Moscou; milhares de trabalhadores entram em greve contra o plano de austeridade decretado pelo governo da Iugoslávia no dia 15. Na Romênia, um verdadeiro levante popular ocorre na cidade de Brasov.
dezembro – encontro Regan-Gorbachev em Washington. Gorbachev é considerado o homem do ano pela revista Times. Husak é substituído no cargo de secretário-geral do PC da Tchecoslováquia.
1988
fevereiro – promulgada a sentença de reabilitação de Bukharin, Rukov, Rakoviski e outros, condenados no julgamento de março de 38.
David Capistrano Filho é médico-sanitarista. É membro do Diretório Regional do PT-SP, responsável pela Secretaria de Imprensa.