EM DEBATE

Qual é o significado histórico da política de Gorbatchev? Ela realmente democratiza o poder e permite uma efetiva participação dos trabalhadores na sociedade soviética? Será que as medidas não podem abrir caminho ao capitalismo dentro da URSS? Qual o alcance internacional dessa política? Para debater "Glasnost" e "Perestroika", Teoria e Debate convidou os militantes Luis Favre e David Capistrano Filho.

David Capistrano Filho

Luis Favre

David Capistrano Filho

Há algum tempo a propaganda da burguesia, reproduzida em jornais, revistas e livros e transmitida pelo rádio e TV, vem se concentrando numa idéia chave: o socialismo fracassou, não há alternativa provada ao capitalismo. Naturalmente essa assertiva se traveste de muitas maneiras, havendo formas mais ou menos sofisticadas de expô-la, conforme os distintos públicos-alvos dos veículos.

Fosse verdade o que insistentemente é afirmado pelos porta-vozes da burguesia, e estaríamos realmente diante de gravíssima derrota do movimento socialista, revolucionário e operário. A Revolução Socialista de Outubro e outras grandes revoluções (como as da China e Cuba) tiveram tão vasta repercussão não "apenas" por liberarem do jugo do capital milhões de trabalhadores, mas principalmente por terem provado que era possível destruir o poder burguês, quebrar sua força, seu exército, seu estado. Aquilo que os escravos da Antigüidade jamais conseguiram, aquilo que as revoltas camponesas também não alcançaram, aquilo que os operários insurretos em Paris em 1871 conseguiram efemeramente foi finalmente concretizado na Rússia em 1917.

Mas o fascínio da Revolução Russa teria se esfumado se, à façanha inédita, não se seguisse outra prova: a da capacidade dos trabalhadores construírem uma nova e superior sociedade, dispensando as velhas classes dominantes. A letra da Internacional proclama, sem meias palavras, essa pretensão da classe operária de demonstrar a natureza parasitária da burguesia e de se constituir em classe dirigente.

Pelo menos até a denúncia do stalinismo, em 1956, não havia dúvidas, nos meios progressistas e de esquerda, tanto quanto ao significado da Revolução como em relação ao processo de construção do socialismo. Ambos eram não apenas considerados positivos como eram descritos – muitas vezes de forma grandiloqüente – de modo a serem avaliados como "a maior conquista do movimento operário revolucionário."

É verdade que o relatório apresentado por Nikita Kruchev ao XX Congresso do PCUS lançou sombras sobre um período até então compreendido – com raras exceções – como um processo linear, uma espécie de fluxo contínuo de acertos, de avanço, de "luz". Mas o fato da denúncia partir do interior do próprio partido soviético indicava que havia possibilidade de correção a partir "de dentro". E mais: no final dos anos cinqüenta os progressos da sociedade socialista soviética tinham como símbolo o Sputnik e Gagárin. Socialismo continuava a significar progresso — e progresso para todos — e parecia voltar a significar democracia. Mesmo diante do jovial e carismático John Kennedy — tão diferente desse carcomido Reagan — Kruchev fazia boa figura.

Nas duas décadas que se seguiram à destituição de Kruchev da chefia do partido e do Estado soviéticos a situação mudou. A democratização emperrou (embora tenha sido definitivo o banimento das condições que haviam permitido os crimes de Stalin) e o progresso econômico e social começou a marcar passo. Os problemas do socialismo real manifestaram-se de modo mais dramático na Europa Oriental — na Tchecoslováquia; na Polônia, na Romênia — mas seu epicentro estava na União Soviética.

1) Espraiou-se no movimento socialista uma inquietação e mesmo um descrédito no processo em curso na URSS. Mesmo entre os comunistas, não foi sem dificuldades que Georges Marchais avaliou como "globalmente positivo" o balanço dos primeiros 60 anos. E após o estado de sítio e a ascensão de Jaruzelski na Polônia, Enrico Berlinguer declarou que a "força propulsiva" da Revolução de Outubro tinha se esgotado.

A propaganda burguesa, trabalhando em cima desses fatos, redobrou em seus esforços para "demonstrar" a inviabilidade do socialismo, a superioridade da "economia de mercado" e a impossibilidade da democracia florescer sem que a "liberdade econômica" (leia-se propriedade privada dos meios de produção) esteja garantida. Essa propaganda penetrou até mesmo em setores da esquerda.

Lembro tudo isso para responder que considero imenso o significado político da glasnost e da perestroika. O êxito desses processos abre caminho para que nós, partidários do socialismo, possamos falar "de boca cheia" sobre a superioridade do sistema social que defendemos, apontando exemplos. A idéia do socialismo como realização da democracia econômica, social e política, que a burguesia admite apenas na propaganda, se fortalecerá com o sucesso de Gorbachev.

O triunfo das reformas deve significar também um mais acelerado desenvolvimento econômico, técnico, científico e cultural, que tornará mais fácil nossa tarefa de provar que socialismo é mais progresso para todos. Nos últimos trinta anos as mudanças foram enormes, no mundo inteiro. Mas não resisto a uma especulação: se com Kruchev o PCI amealhou mais um milhão de votos em 1962, com Gorbachev quantos milhões de trabalhadores se tornarão mais permeáveis às idéias socialistas?

2) A democratização do poder e a efetiva participação dos trabalhadores nas decisões políticas e econômicas na sociedade soviética terão que evoluir, ou a glasnost e a perestroika serão derrotadas. A essência mesma desse processo de reformas de natureza política, e de caráter democrático. Glasnost (transparência) significa fundamentalmente a possibilidade de crítica, para aproximar o dito do real, para eliminar a contradição entre fatos e palavras, e permitir aos cidadãos confiarem nas instituições soviéticas.

Mas a democratização da URSS deve ser vista a partir das condições concretas, históricas, do desenvolvimento do socialismo naquele país, e não a partir de modelos abstratos. Um exemplo hoje, muito mais importante do que falar num improvável pluripartidarismo, é apontar como condição do sucesso das reformas a democratização interna do partido.

Olhando com muito realismo o processo em curso, creio que ele leva a uma maior participação e discussão também porque põe em questão os modos de trabalhar e viver de milhares de soviéticos. Já estão ocorrendo e tendem a crescer disputas entre camadas sociais e entre grupos com interesses específicos diversos. Parte dos trabalhadores, paradoxalmente para quem raciocina de modo dogmático, deve inclusive se manifestar contra as reformas. O importante é considerar legítimas essas divergências, informar a sociedade sobre elas.

Acho isso possível, e acho que vem ocorrendo, apesar de estarmos diante de uma reforma "de cima para baixo", de uma democratização realizada não contra, mas pelo e através do partido e do Estado.

3) Não vejo nenhuma hipótese das reformas abrirem caminho ao desenvolvimento do capitalismo.

A razão fundamental é o fato de a URSS ser um país que fez há 70 anos uma revolução socialista, que liquidou sua burguesia, que não admite a propriedade privada dos meios de produção. Isto tudo está definido na Constituição e nas leis, mas muito mais importante é que existe na URSS uma cultura socialista profundamente enraizada nas massas do povo. Existe uma consciência impregnada entre os trabalhadores (industriais, colcosianos, intelectuais) sobre a superioridade do socialismo e o que representou de conquistas etc.

A pergunta sobre uma "volta" ao capitalismo provavelmente parte do conhecimento do papel do mercado nas origens do capitalismo, ou recorda as palavras de Lênin sobre a capacidade da pequena propriedade gerar capitalismo. Basta lembrar a enorme distância de tempo histórico que nos separa seja das origens do capitalismo, seja dos primórdios da Revolução, para entender que a permissão para as atividades quase artesanais privadas, ou para a constituição de microempresas familiares, nada representa em termos de renascimento do capitalismo.

Socialismo e planejamento são idéias tão associadas que muito brucutu considerou "planejamento" algo subversivo no Brasil, antes e depois do golpe de 1964. Natural que alguns se inquietem ouvindo dizer que Gorbachev vai acabar com o planejamento e voltar ao mercado. Não é bem assim: o que está mudando é o planejamento centralizado e burocratizado da época heróica da industrialização acelerada, que não tem mais lugar na enorme e diversificada economia soviética de hoje.

Trata-se de descentralização e democratização da gestão econômica, de atenção maior ao desenvolvimento da produtividade do trabalho, de racionalização à base de conversão da ciência em força diretamente produtiva. E se trata de responsabilidade, de elevação do controle social sobre o que, como, quanto, a que custo se produz.

Na URSS não há desemprego e os preços do essencial são estáveis desde 1929. Mas o que muitas fábricas produzem encalha nas prateleiras das lojas — apesar de o soviético ter sempre dinheiro no bolso para consumir. Por acaso alguém acredita que atenta contra o socialismo modificar a situação dessa fábrica, até mesmo fechada? E isso levando em conta outro fato, a carência de mão-de-obra naquele país, e o dispositivo constitucional que considera o trabalho um direito de todos?

Não. Decididamente as reformas não tentam trazer a URSS de volta ao passado capitalista. Setenta anos depois da vitória de Outubro, discute-se o futuro.

4) Em termos de política internacional entendida como relação entre Estados, creio que já se pode falar à base de fatos. A maior credibilidade da União Soviética facilitou a aceitação de suas propostas visando frear e fazer retroceder a corrida armamentista, visando o desarmamento. A Europa respira hoje aliviada dos mísseis de curto e médio alcance, e se discute, após o encontro Reagan-Gorbachev, a redução dos arsenais atômicos à metade.

Isso é muito positivo. Creio que a esquerda já esqueceu as "chinoiseries" dos anos sessenta, já entende que desarmamento não significa conciliação com o imperialismo. Aí está, se precisar ainda mostrar exemplos, o nosso acordo firmado com a Nicarágua, para ajudar a revolução sandinista a resistir à agressão norte-americana.

Outra repercussão importante teremos sobre os países socialistas do leste europeu. Está claro que Gorbachev, dentro dos limites existentes (e é bom que esses limites sejam respeitados) para a expressão de opiniões sobre outros partidos e Estados, estimula processos de democratização e mudança naquela região, não está satisfeito com as petrificações, com o nepotismo de um Ceausescu.

A China merece um parágrafo à parte. Os esforços para melhorar as relações e restabelecer a cooperação prosseguem e dão frutos, talvez lentamente demais, mas dão. Imaginem o que representará tanto para o movimento operário e socialista como para a mudança da correlação de forças em escala mundial, primeiro relações normais e depois especiais, de aliança, entre China e URSS. Nós, que lutamos pelo socialismo em condições tão difíceis, bem que merecemos isso, no final dos anos 80.

Cronologia da Perestroika

1978

27 de novembro – Mikhail Gorbachev é nomeado secretário do Comitê Central encarregado da Agricultura.

1980

21 de outubro – Gorbachev nomeado membro titular do politburo.

1982

11 de novembro – morte de Brejnev

22 de novembro – Andropov, é nomeado secretário-geral do PC, declara na plenária do Comitê Central o seu desejo de introduzir algumas experiências para melhorar a situação da economia e aprofundar a autonomia das unidades de produção.

1983

março/abril – campanha contra o alcoolismo e as faltas ao trabalho.

1984

9 de fevereiro – morte de Andropov

13 de fevereiro – eleição de Chernenko como secretário-geral

26 de março – Conferência Nacional sobre os problemas do Complexo agro-industrial.

10 de dezembro – Conferência Nacional sobre o "aperfeiçoamento do socialismo avançado e o trabalho do ideológico do Partido". Relator: Gorbachev.

1985

10 de março – morte de Chernenko

11 de março – Gorbachev é nomeado secretário-geral da PCUS

23-24 de abril – na Plenária do Comitê Central, Gorbachev anuncia as grandes linhas de seu programa econômico: recuperar o atraso acumulado em relação ao ocidente, maior autonomia na gestão das empresas, revalorizar o trabalho profissional, melhorar a qualidade da produção. É modificada a composição do politburo com entrada de Chebricov, Ligachov e Ryskov; Sokolov torna-se membro suplente e Nikonov é nomeado secretário do CC responsável pela agricultura.

1º de julho - Romanov sai do politburo e do secretariado.

2 de julho - Chevardnadze substitui Gromyko no Ministério de Relações Internacionais. O último é nomeado presidente do Soviete Supremo.

4 de agosto – O Comitê Central adota uma série de medidas para desenvolver a autonomia contábil em diferentes setores.

15 de outubro – Análise, pela Plenária do CC, do novo programa do PCUS, das emendas aos estatutos e das grandes orientações e projeções para 1986/2000.

23 de novembro – criação do Comitê da indústria agroalimentar (GOSAGROPOM)

1986

25 de fevereiro a 6 de março – 27ºCongresso do PCUS. Adoção das "Orientações fundamentais do desenvolvimento econômico e social da URSS para 1986/1990 e para o período até o ano 2000". Adoção do novo programa do PCUS. Zaicov entra no politburo.

31 de março – decreto sobre a descentralização na fixação dos preços de alguns produtos agrícolas.

2 de julho – adoção pelo Comitê Central e pelo Conselho de Ministros de "medidas pra melhorar radicalmente a qualidade de produção: Criação, a partir de 1º de janeiro de 1987, da GOSPRIENKA, organismo responsável pelo controle da qualidade dos produtos.

31 de julho – discurso de Gorbachev em Khabarovsk: "eu estabeleceria um sentido de igualdade entre os termos "Perestroika" e "revolução".

13-14 de outubro – encontro Regan-Gorbachev em Reykijavik, Islândia.

19 de novembro – Lei sobre "o exercício de atividades individuais". As pequenas empresas familiares são autorizadas a atuar no setor de serviços (restaurantes, confecções, conserto de carros, cabelereiro etc...). A lei concerne a 2 milhões ou 3 milhões de pessoas e o objetivo é que a participação do setor privado na economia passe de 2% a 4%.

16-17 de dezembro – manifestações nacionalistas em Alma-Ata. O 1º secretário do PC de Kazaquistão é substituído pelo russo Kolbine.

1987

13 de janeiro – decreto sobre a criação de empresas mistas no território soviético com a participação do setor privado com a participação de capital estrangeiro.

22-23 de fevereiro – libertação de 150 dissidentes, após o retorno de Sakarov a Moscou em janeiro.

Março – 18º Congresso dos Sindicatos. Gorbachev declara: "Ou a democracia ou o imobilismo".

21de junho – eleição para os sovietes locais com autorização, em alguns casos, de candidaturas múltiplas (em 4% das 52 mil circunscrições eleitorais).

25 e 26 de junho – Plenária do CC. Adoção do projeto sobre a Perestroika, na gestão da economia. Decisão de se convocar uma Conferência Nacional do PUCS sobre a "democratização progressiva do Partido" para 28 de junho de 1988. Yakovlev, Sliounkov e Nilonov entram para o politburo.

3 de julho – aparece o primeiro número da revista dissidente "Glasnost". No mesmo mês manifestações dos tártaros da Criméia na praça Vermelha.

6 de agosto – resolução do CC e do Conselho de Ministros sobre a liberação parcial dos preços, a organização do comércio atacadista e a Perestroika do sistema bancário.

26 de agosto – Ligachov, número 2 do partido, ataca os "inimigos de classe" que gostariam de ver a URSS "se aproximando da economia de mercado".

novembro – demissão de Yeltsin, defensor da aceleração das reformas, do cargo de responsável do PC na cidade de Moscou; milhares de trabalhadores entram em greve contra o plano de austeridade decretado pelo governo da Iugoslávia no dia 15. Na Romênia, um verdadeiro levante popular ocorre na cidade de Brasov.

dezembro – encontro Regan-Gorbachev em Washington. Gorbachev é considerado o homem do ano pela revista Times. Husak é substituído no cargo de secretário-geral do PC da Tchecoslováquia.

1988

fevereiro – promulgada a sentença de reabilitação de Bukharin, Rukov, Rakoviski e outros, condenados no julgamento de março de 38.

David Capistrano Filho é médico-sanitarista. É membro do Diretório Regional do PT-SP, responsável pela Secretaria de Imprensa.

 

Luis Favre

Um vento novo sopra na União Soviética a e a melhor prova disto é o interesse suscitado pela glasnost no interior do Partido dos Trabalhadores e do movimento operário internacional em geral.

Certamente esse interesse está sendo incentivado pela cobertura que a imprensa e os meios de comunicação ocidentais dão a essas questões, com o objetivo evidente de influenciar num sentido pró-capitalista o processo em curso na União Soviética. Ao mesmo tempo uma real ofensiva de propaganda é desenvolvida pelas autoridades soviéticas, e repercutida pela maioria dos partidos comunistas e seus partidários nas organizações dos trabalhadores, para recuperar a influência perdida pelos partidários do governo soviético no movimento popular.

Isso não deve, entretanto, ocultar o fato real de que estão acontecendo na União Soviética mudanças de importância considerável não só para este país ou para países do leste europeu, mas para o movimento operário no mundo todo, e cuja significação histórica torna-se dificilmente perceptível na atualidade. Trata-se de um fenômeno apenas comparável à chamada "desestalinização" da época de Kruchev e, ainda assim, de uma dimensão e impacto consideravelmente superior

Que Gorbatchev estabeleça um sentido idêntico entre os termos "Perestroika" e "revolução" não revela simplesmente uma intenção de propaganda demagógica, mas na realidade a dimensão das mudanças que a União Soviética está chamada a realizar, como o reconhece a formulação da "glasnost" e da "perestroika", ainda que isto não esteja completado nem previsto pelo cronograma de reformas estabelecido pelos dirigentes da URSS.

O Declínio Econômico

Indiscutivelmente as reformas conduzidas pela equipe de Gorbatchev concernem antes de mais nada à economia e são muito limitadas no que diz respeito à democratização, o que pareceria indicar uma simples vontade de modificar os índices alarmantes de declínio econômico que o quadro abaixo permite ilustrar bem; sem questionar a estabilidade, o monopólio e os privilégios do poder da burocracia.

É bom lembrar também que de 30% a 40% dos equipamentos cuja vida média está calculada em treze anos estão funcionando há quase duas décadas.

EVOLUÇÃO DO CRESCIMENTO DOS RAMOS INDUSTRIAIS

1971/75 1976/80 1981/85
eletricidade 7,2 4,6 3,6
combustível 6,0 3,0 1,2
siderurgia e metalurgia 5,0 1,7 2,1
química e petroquímica 10,6 6,0 4,9
construções mecânicas e primeiras transformações de metais 11,4 8,4 6,2
indústria florestal, bosques, pasta e papéis 5,4 1,6 3,4
materiais de construção 7,2 1,8 2,7
têxteis e couros 4,6 3,4 1,4
indústria alimentícia 5,2 1,3 3,4
bens de consumo duráveis 9,8 7,2 5,4

Fonte: Informes de execução dos planos anuais

Por outro lado, a crise crônica da agricultura e de energia absorve uma boa parte dos investimentos do Estado (por exemplo, 55% do total dos investimentos em 1981). A produção de petróleo caiu pela segunda vez consecutiva em 1986 com um recuo de 3% — assinalemos que o petróleo representa 60% dos ingressos em divisas da URSS.

As subvenções destinadas a manter estáveis os preços do pão, carne, leite, etc, passaram de 25 milhões de rublos em 1980 para 52 milhões em 1984. A produção agrícola, estimada em 190 milhões de toneladas em 1985 — uma grande performance —, não atinge os objetivos fixados, o que eleva o déficit de cereais para o período 81/85 a 285 milhões de toneladas em relação ao plano e 115 mi1hões de toneladas a menos que a produção de 1976/1980.

O próprio Gorbatchev, num informe sobre as questões relativas à aceleração do progresso científico e técnico (11/06/85), reconhece: "Os cálculos mostram que se nós continuarmos fundamentando o crescimento em fatores extensivos, será necessário a cada cinco anos aumentar a produção de energia e de matérias-primas de 10% a 15%, o volume de investimentos de 30% a 40% e empregar de 8 milhões a 10 milhões de pessoas suplementares. Mas não temos simplesmente". (publicado em Izbrannye Retchi Istati pg. 111).

Diante desse quadro, a política de reformas elaboradas pelos economistas de Novossibirsk, nos quais se inspiram as propostas da equipe de Gorbachev, tem como eixo o estabelecimento de preços verdadeiros, cortando as subvenções aos produtos que nós denominamos de cesta básica. Ao mesmo tempo pressionar para o aumento da produtividade questionando o pleno emprego, reprimindo o alcoolismo, as ausências injustificadas ‘e o fechamento de fábricas e kolkozes (fazendas coletivas) não rentáveis.

Seria, no entanto, uma utopia pensar na possibilidade de um salto qualitativo na economia soviética sem modificar as relações políticas estabelecidas entre o poder e a sociedade, como Gorbatchev reconhece no Pravda de 15 de julho de 1987: "Quando pintávamos a vida de cor-de-rosa, o povo via tudo e perdia seu interesse pela imprensa e a vida social (...) pois conhece a realidade".

Por exemplo, a programação de vídeo e dos computadores necessários a qualquer processo tecnológico, industrial e agrícola é contraditória com a vontade de controlar e monopolizar a produção e circulação de idéias e posições divergentes. O que não significa que o processo tecnológico vá resolver automaticamente a questão do poder da burocracia, a ausência de liberdade de organização e demais direitos democráticos pelos quais sempre combateram os trabalhadores.

Do mesmo modo, o reconhecimento de fato do caráter utópico de querer construir o socialismo num só país, à margem da economia mundial e da divisão internacional do trabalho, não produz um questionamento automático da não menos utópica concepção de que essa integração à economia mundial pode se realizar sem questionar-se a dominação imperialista ou as próprias bases socialistas da revolução de outubro de 1917.

Pois bem, toda política econômica de Gorbatchev se baseia na idéia de uma associação mutuamente vantajosa" entre a URSS e os países imperialistas, sem questionar na essência as bases da URSS nem a dominação do mercado mundial pelo imperialismo. Essa margem se torna estreita e geradora de divergências na própria "nomenklatura" dominante.

O desenvolvimento de empresas de capital misto só poderá conhecer um amplo desenvolvimento se três condições essenciais para a burguesia mundial estiverem reunidas: liberdade de repartição de lucros, mão-de-obra barata e estabilidade política. Certamente as reformas em aplicação vão neste sentido, mas as mesmas estão começando a gerar resistências que as questionam.

Aliás, o conjunto deste programa, enfrentara sérias resistências no próprio aparelho burocrático, como reconhece Gorbatchev. Em alguns casos porque as medidas atingem setores da própria burocracia, administradores de empresas e kolkozes, ou acostumados a falsificar os resultados para justificar as metas fixadas.

Mas há também o temor daqueles que consideram perigosas as mudanças que, pondo nu alguns privilégios, as despesas excessivas e o nepotismo, geram a reação dos trabalhadores. A experiência mostra que, quando algum setor começa a procurar o apoio da população, por fora do próprio aparelho do partido, para quebrar a resistência dos setores opostos, o resultado pode desembocar numa verdadeira revolução (como foi o caso, em outro contexto, da revolução cultural da China).

Mas os trabalhadores também vão reagir perante medidas econômicas que atinjam suas conquistas, como já aconteceu com a greve de condutores perto de Moscou contra a introdução do salário ligado à produtividade e como seguramente acontecera se o emprego ou o poder aquisitivo dos operários for questionado pela perestroika.

Uma Resposta Preventiva Geradora de Crises

Tão importante quanto as questões econômicas, a experiência polonesa parece ocupar um lugar de destaque na reflexão da direção soviética. A existência de "Solidariedade", a incapacidade de Jaruzelski de eliminar a oposição, a eventualidade de que o divórcio constatado entre a sociedade e o Partido Comunista da URSS acabe conduzindo a um processo revolucionário como na Polônia, tudo isso parece também exercer influência na formulação da política oficial. E é ainda gerador de divergências entre os quadros dirigentes da URSS.

Enfim, no plano internacional a colaboração com os EUA e as concessões da URSS para uma distensão mutuamente benéfica" provocam crises e divergências (a RDA, Romênia, Cuba e em alguma medida a Tchecoslováquia manifestam resistências abertas à política de Gorbachev). Recentemente a revista econômica mensal soviética "Tempos Novos" publicou um artigo assinado por V. Tchirkov analisando criticamente a economia cubana, em particular seus gastos em defesa e o endividamento crescente com os países socialistas.

Em seu número de outubro a mesma revista publicou uma resposta de Carlos Rafael Rodrigues, membro do birô político do PC cubano, denunciando tais ataques como "superficiais e negativos" e acusando Tchirkov de raciocinar como um "cubanólogo americano". Como se vê, não se trata de invenção das agências ocidentais; a crise se revela em manifestações públicas.

A Democracia Socialista

A política de reforma de Gorbatchev abre um debate no movimento operário em escala internacional. Para numerosos militantes a nova política soviética mostra que os "erros" do socialismo estão sendo corrigidos pelos dirigentes do Partido Comunista da URSS e para alguns militantes formados nos partidos comunistas ou defensores da política soviética, que se desligaram publicamente desses partidos e que militam muitas vezes em partidos antiestalinistas como o PT, estas reformas constituem a ocasião de poderem publicamente defender a política soviética. Para estes setores as formulações "críticas" dos dirigentes da URSS são suficientes para que se estabeleça uma relação "fraternal e solidária" com os partidos comunistas. Simetricamente, no extremo oposto, setores diversos se negam a estabelecer qualquer diferença entre a política de Gorbatchev e a de Stalin, negando-se, em nome da "revolução política" futura, a intervir no conflito presente entre "reformadores" e "conservadores" — como são denominados muito esquematicamente os partidários e opositores a Gorbachev dentro do PCUS. Enfim, para numerosos elementos da "dissidência" na URSS, na Tchecoslováquia e inclusive na Polônia, a "auto-reforma" é a única possibilidade de democratização e de socialismo não burocrático. Positivamente se servem das declarações de Gorbachev para testar na prática e ampliar as conquistas democráticas.

Logicamente o PT, que em seu recente Encontro Nacional reafirmou seu apoio ao Solidariedade e discutiu a questão de socialismo inseparável da democracia dos trabalhadores, deve não somente abrir o debate, conforme corretamente está fazendo, mas continuar a apoiar a liberdade de organização para os trabalhadores, o direito à livre organização sindical e partidária, a luta contra a democracia e o estalinismo, posições que o marcam desde sua origem como um partido independente, socialista e revolucionário.

Em relação a este objetivo da democracia socialista, as medidas de democratização anunciadas por Gorbatchev devem ser apoiadas como ponto de partida para reforçar a luta para acabar com a burocracia estalinista como um todo.

Os prisioneiros políticos devem ser imediatamente liberados, todos os documentos sobre a história da URSS, em particular do período 1927/1953, devem ser publicados; os dirigentes comunistas assassinados pela reação stalinista devem ser reabilitados, o que já se deu com Bucharin, como autênticos herdeiros da tradição de outubro, em particular Trotski, Joffe, Preobajensky, Zinoviev. Kamanev e demais camaradas de Lênin. A independência e a democracia dos sindicatos deve ser restabelecida, a legalização de diversos partidos deve ser conquistada, assim como o desmantelamento da polícia política. A liberdade de imprensa, de manifestação de reunião, de greve (proclamados na constituição) devem existir realmente. Os sovietes devem ser novamente os organismos legislativos e executivos eleitos democraticamente, por sufrágio universal e secreto, com direito à apresentação de partidos e agrupamentos diversos e divergentes. Os dirigentes da revolução Húngara de 1956 e da Tchecoslováquia de 1968 devem ser reabilitados e as tropas da URSS, estacionadas neste último país, retiradas. Só a partir da concretização dessas medidas é que se poderá falar de democracia socialista e governo dos trabalhadores. No que diz respeito às reformas econômicas, os trabalhadores e os povos da União Soviética mostraram com sua ação a oposição a toda tentativa de liquidar as conquistas socialistas e para isto devem também contar com nosso apoio.

Luis Favre é membro da Secretaria de Relações Internacionais do Diretório Nacional do PT.

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