Há no Brasil e no mundo muitas restrições ao capital estrangeiro. Umas são explícitas (Japão), outras veladas (Estados Unidos). Os fabricantes norte-americanos de automóveis foram expulsos do Japão no período anterior à Segunda Guerra Mundial, por motivos estratégicos. Sobre essa indústria, precária, o Japão construiu uma base militar e foi à guerra. Nos anos 60, as incursões da indústria automobilística japonesa no exterior foram risíveis fracassos.
A Coréia do Sul repetiu este caminho. Vetou por muitos anos a entrada das empresas estrangeiras de automóveis e só a aceitou em condições que julgou adequadas: em associação minoritária com nacionais, com transferência compulsória de tecnologia, assinalada e depois consolidada localmente, junto com marcas próprias e uma ação agressiva no mercado externo. Os resultados de ambos os esforços são visíveis. Do Japão é ocioso falar. A indústria automobilística coreana é menos conhecida, mas já exporta milhões de automóveis, especialmente para a América do Norte.
O tema capital estrangeiro não está na moda, até pelo efeito ideológico da globalização sobre os importadores de idéias; mas tornou-se questão de debate e problema de política nos Estados Unidos, onde os assessores econômicos mais próximos de Clinton (Reich e Tyson) debatem intensamente. Apesar de até aqui não haver resultados, há leis e práticas restritivas em relação às empresas estrangeiras (definidas como as que tenham participação de pelo menos 10% de estrangeiros), tanto para compras governamentais (o Buy-America Act), quanto para novas aquisições de empresas (o Exon-Florio Act, que dá ao presidente dos Estados Unidos poderes para rejeitar a entrada de capital estrangeiro que ameace o interesse nacional daquele país, e do qual o governo já lançou mão em dois casos de grande notoriedade - chips e cerâmicas condutoras).
Vale para nós? Tivemos uma política de "portas abertas". Fechados comercialmente, abertos para os capitais. Por isso os resultados são diferentes? Os adversários do capital estrangeiro diriam que sim: remessas, funções de produção inadequadas, espoliação do mercado local. Os adeptos diriam que sem a sua participação os resultados seriam ainda piores. Críticos e defensores têm muito em comum. Vêem o capital estrangeiro como diferenciado, mas ignoram as particularidades do ambiente, reduzindo a receita a um único ingrediente.
As empresas estrangeiras, como as estatais, não asfixiaram o crescimento das nacionais. Pelo contrário. Estas tiveram múltiplas oportunidades, antes e depois da internacionalização das grandes empresas norte-americanas e européias. Preferiram quase sempre ser o sócio-menor de negócios com sucesso garantido antecipadamente. Houve empresas que ocupavam espaços privilegiados e no momento das tarefas e desafios maiores cederam o núcleo e passaram a orbitá-lo. Houve também as que gritaram contra a desnacionalização, mas muitas mais preferiram usar o grito para aumentar o preço da venda à estrangeira. Mas o caso mais freqüente é o da associação. As empresas nacionais substituíram a disputa das posições mais dinâmicas e nobres pela disputa das associações mais sólidas, com os atores mais fortes.
O capital estrangeiro ocupou as posições chave da indústria sem encontrar muitas resistências das nacionais ou da política econômica. As estatais já tiveram posições análogas, mas o progresso técnico desvalorizou-as. O aço, o petróleo e a química são indústrias básicas e tiveram papel fundamental, mas perderam importância para novos setores. Isto coloca dois problemas para a participação das três frações de capital: o dos setores dinâmicos tecnologicamente; e o dos oligopólios nas áreas estabilizadas.
Nenhum setor é indiscutivelmente melhor ou pior do que os demais simplesmente pela presença ou ausência de determinada forma de capital. Há setores liderados por empresas nacionais cujos mercados estão organizados em bases colusivas e anti-sociais: acordos de distribuição de cotas de mercado, fixação de preços com remuneração das ineficiências, controle dos canais de distribuição e comercialização dos produtos. O setor automobilístico é completamente dominado por empresas estrangeiras, muitas das quais são líderes internacionais. Nem por isso o setor pode ser considerado muito diferente dos demais em modernização, eficiência ou progresso. Por outro lado, setores muito menos importantes têm dinamismo econômico e efeitos sociais superiores. De onde vêm estas diferenças?
O mercado é a instituição básica do capitalismo. Mas há mercados e mercados. Eles se organizam segundo diferentes princípios e têm diferentes resultados dependendo das circunstâncias. Há diversos elementos muito importantes para o seu funcionamento: os trabalhadores e as relações trabalhistas são importantes, os consumidores são úteis para a qualidade dos produtos, existem outras instituições com papel a desempenhar, mas os mercados só funcionam de fato se existe por parte das empresas capacidade de competir de forma efetiva, de conceber e implementar estratégias competitivas passíveis de resultar em vantagens, e lançar desafios aos demais competidores. Se estas estratégias serão bem-sucedidas, se os resultados antecipados serão efetivos, não importa, esse é um problema privado. O que move a concorrência é a busca dos resultados. Se uma empresa vai à frente, ela assegura vantagens, depois anuladas pelo esforço de imitação/ repetição das demais. Se todos os agentes apostam na mesma direção, a indústria muda, o mercado é dinamizado, e nenhuma empresa garante resultados exclusivos. Independentemente do caminho ser um ou outro, as empresas se modificaram, a indústria mudou com concorrência. E esses são resultados sociais.
Os mercados só funcionam na presença de diversas circunstâncias. Aqui, interessam-nos duas: o reconhecimento da existência de rivais efetivos, empresas capazes de ações que fragilizam as demais posições e os mercados inertes; a avaliação de que a ação da própria empresa pode resultar em vantagens para si, pelo menos momentaneamente. Ou seja, o mercado funciona com rivalidade recíproca, percepção da possibilidade de ser ultrapassado e agredido (e perder vantagem) e capacidade de avançar e agredir (para obter vantagem).
Nem sempre isto ocorre em mercados periféricos. Subdesenvolvimento no capitalismo é atrofia e atraso das suas estruturas básicas - empresas, indústrias, mercados. Pela sua própria constituição, a capacidade de competir nem sempre é ativa naqueles mercados em que a presença de atores destacados e com vantagens decisivas inibe os demais competidores. Este ator destacado pode ser uma grande empresa nacional, mas é mais freqüentemente uma grande empresa estrangeira, que soma às vantagens do tamanho o acesso privilegiado a fontes financeiras, produtivas, tecnológicas e mercadológicas. Esta empresa pode até ter a sua posição num determinado mercado fragilizada por outras empresas, nacionais ou estrangeiras; mas são muito mais freqüentes os casos em que a presença do ator destacado inibe a ação dos demais. O resultado é um pacto colusivo: os mais fortes não precisam competir, os mais fracos não podem competir.
Os grandes defensores dos mecanismos de mercado como forma exclusiva de regulação da economia falham em perceber este aspecto do problema. E se percebem a inoperância dos mercados, falham ao propor a abertura como mecanismo eficiente de correção, pois nem sempre o problema decorre da intenção de adotar práticas colusivas, mas também do efeito inibição, que é estrutural. Não existe um remédio único; e é possível sustentar que a abertura ao comércio exterior pode produzir exatamente o efeito oposto.
O movimento na indústria automobilística é um exemplo. Era "atrasada e ineficiente", pela proteção que recebia, diz-se. Ao abrir-se o mercado à importação de novos modelos veio a resposta de modernização das filiais locais. O conflito deu lugar à cooperação e dele se chegou ao acordo setorial. Por mais importante que seja o processo, os resultados até aqui têm sido exagerados. A importação de novos modelos, especialmente os top, mais sofisticados, caros e lucrativos, pode ter levado à modernização e ao barateamento dos modelos nacionais correspondentes, mas produziu uma compressão das margens de lucro e, para compensá-la, houve um encarecimento dos demais modelos. O resultado, ao contrário do alardeado, foi que os carros populares financiaram a modernização - inevitavelmente ineficiente - dos modelos mais sofisticados. Além disso, a abertura desencadeou decisões de importação de modelos e de partes, forma mais eficaz de passar rapidamente para um novo patamar de modelos. O resultado já pode ser notado nas estatísticas de comércio: o Brasil já é deficitário em automóveis e o cenário é desalentador. Uma vez que a indústria não tem condições de oferecer carros básicos acessíveis a consumidores para quem o preço é o elemento decisivo, o padrão de produção e de concorrência caminha para modelos mais sofisticados, como atesta o "popular" mais novo. Incapaz de atingir uma escala razoável nos modelos básicos e em que o preço é mais importante, a indústria automobilística desnacionaliza-se, com mais importações de carros e com conteúdo importado crescente nos veículos "nacionais".
A comparação com outros países é inevitável. A Itália produz aproximadamente o mesmo número de veículos que o Brasil, mas tem um único grande fabricante. A Coréia tem diversos fabricantes, mas são de grandes empresas conglomeradas, capazes de patrocinar a entrada em um setor como o de automóveis; e elas se voltaram para modelos capazes de penetrar desde o início (recente) no mercado exterior. Em ambos os casos houve proteção à empresa nacional, mas ela esteve disposta a fazer a sua parte. O Brasil, como a Inglaterra, o Canadá e a Austrália, praticou uma política de "portas abertas" para os investimentos estrangeiros. A Inglaterra é pioneira (anos 20) em atração de capital estrangeiro para a sua indústria automobilística, o que levou à desnacionalização e não serviu para fazer uma base mais eficiente.
Existem no Brasil algumas restrições ao capital estrangeiro. São anacrônicas. Mas o problema não é termos restrições, é que elas, que também existem nos países avançados, não servem aqui a nenhum propósito coerente e articula do a outras políticas e objetivos. Servem a grupos privados, normalmente poderosos. Pode ser o caso da mineração, dos transportes, das empresas jornalísticas ou dos audio-visuais.
Como setores tão diferentes - construção civil, financeiro, minerador e de audiovisuais - souberam defender as suas posições restritivas e exclusivistas e o mesmo não ocorreu na indústria? Uma resposta possível é que as estratégias das empresas estiveram em consonância com a política econômica, que valorizou o crescimento acelerado e abriu oportunidades para a expansão do capital nacional, em posições subordinadas, mas confortáveis.
Que proposições decorrem destes argumentos? Primeiro, se a participação do capital estrangeiro não asfixiou o nacional, qualquer política de proteção deverá levar em conta a forma típica de atuação do capital nacional. A aceitação pelo capital nacional da liderança estrangeira não é um fenômeno isolado; decorre da possibilidade que tem o capital privado nacional de obter lucros elevados mesmo em posições subordinadas. Isto está ligado à concentração da riqueza, do poder e da renda. O poder desmesurado da riqueza oferece lucros que no mundo têm que ser alcançados desbravando a fronteira e construindo progresso.
Portanto, além de todas as razões de justiça e compromisso histórico, há também motivos econômicos para promover a democratização da propriedade e do acesso ao produzir: fragiliza as práticas restritivas da concorrência e desata as forças competitivas. Ao lado do acesso à propriedade, a evolução nos marcos desta sociedade deveria incluir: democratização do crédito, apoio a novas empresas e à transformação das antigas, tratamento tributário diferenciado para novos empregos, desoneração da produção e da renda e ônus à propriedade.
Segundo, em relação aos setores de liderança exclusiva de grandes empresas estrangeiras, é necessário desenhar políticas específicas. A cooperação do governo com as empresas para o alcance de metas é o melhor substituto para mercados estruturalmente inoperantes. Ao contrário do senso-comum e da imprensa, a cooperação e regulação institucional é freqüentemente melhor do que abertura, tanto para empresas e trabalhadores, quanto para os consumidores e o conjunto da economia.
Terceiro, nos setores em que a fronteira tecnológica se desloca rapidamente, o problema é mais complexo. Dada a timidez e fragilidade do capital privado nacional para as tarefas ambiciosas e a existência de um mundo hierarquizado em que as multinacionais alocam a cada país apenas algumas atividades, o problema é como avançar. No passado, quando a fronteira era estável mas o nosso atraso imenso, foi o Estado que, depois de décadas, assumiu os desafios do novo, e com isso permitiu o avanço das demais frações de capital. O reconhecimento de que as novas tarefas produtivas do Estado são mais importantes do que as já feitas poderia nos ajudar a sair da posição - imobilista e hoje retrógrada - de defender o Estado e as estatais que aí estão e repensar uma estratégia de atuação. Afinal, as estatais que aí estão não deixarão de produzir se forem privadas. Uma retirada inteligente e planejada dessas posições poderia permitir ao Estado avançar sobre as novas fronteiras, que certamente não são a mineração, o aço ou o petróleo, mas podem ser uma revolução agrícola, os medicamentos, as escolas, as comunicações, a microeletrônica e a informática. Setores antigos e novas tecnologias; tarefas tradicionais mas em novas bases.
João Furtado é economista, professor na Unesp.