EM DEBATE

Publicado no início do ano de 1848 por Marx e Engels, o Manifesto do Partido Comunista é um dos livros mais editados e conhecidos em todo o mundo e, sem dúvida, o que mais influenciou a história recente da humanidade.

No momento em que começam em todo o mundo diversas atividades relacionadas com a comemoração de seus 150 anos de edição, Teoria&Debate marca sua presença trazendo um debate sobre a importância histórica e a atualidade do Manifesto, assinados por importantes estudiosos da esquerda e do marxismo no Brasil: o professor de Teoria Política Carlos Nelson Coutinho, o professor de Economia João Machado, o historiador Marco Aurélio Garcia e o advogado Tarso Genro.

O Manifesto e a refundação do comunismo

Grandezas e limites do Manifesto

O Estado e o Manifesto

O capitalismo atual e o Manifesto

O Manifesto e a refundação do comunismo

 

Foi no segundo congresso da Liga dos Comunistas, anteriormente chamada Liga dos Justos, em dezembro de 1847, que Karl Marx e Friedrich Engels receberam a incumbência de redigir um Manifesto que expressasse os ideais programáticos da organização e pudesse servir de guia para a ação do proletariado europeu.

Em fins de janeiro de 48, o Comitê Central da Liga, com sede em Londres, dirigia enérgica mensagem ao Comitê Regional de Bruxelas exigindo que Marx não retardasse mais seu trabalho, sob pena de tirar-lhe a responsabilidade da tarefa e de pedir de volta o material que lhe havia sido cedido para que escrevesse o texto.Unknown Object

A pressa da Liga dos Comunistas advinha provavelmente da convicção de que a grave crise econômica e social que sacudia a maioria dos países da Europa poderia brevemente transformar-se em crise política, previsão confirmada menos de um mês depois.

Com efeito, entre 22 e 24 de fevereiro, uma insurreição operária em Paris derrubava a monarquia de Luís Felipe e proclamava a República, constituindo um governo com participação de socialistas.

Os acontecimentos de fevereiro de 1848 na França se irradiariam para o conjunto da Europa, e países tão distintos como a Alemanha e a Espanha, a Hungria e a Itália, a Polônia e a Irlanda, a Áustria e a Bélgica foram sacudidos por fortes movimentos revolucionários.

A instabilidade da situação, pelo menos no caso francês, já havia sido assinalada pelo liberal Alexis de Tocqueville - um arguto observador da sociedade e da política de seu tempo - em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados em 29 de janeiro de 1848, menos de um mês antes da insurreição.

Tocqueville observava: "Diz-se que não há perigo, porque não há agitação; diz-se que, como não há desordem material na superfície da sociedade, as revoluções estão longe de nós. Senhores, permiti-me dizer-vos que creio que vos enganais [...] Olhai o que se passa no seio das classes operárias, que hoje - eu o reconheço - estão tranqüilas. É verdade que não são atormentadas pelas paixões políticas propriamente ditas, no mesmo grau em que foram por elas atormentadas outrora; mas não vedes que suas paixões, de políticas, se tornaram sociais? [...] Dizia-vos ainda há pouco, que esse mal levará cedo ou tarde [...] a gravíssimas revoluções nesse país: podeis ficar disso convencidos."Unknown Object

Uma obra programática

O Manifesto Comunista foi publicado em fins de fevereiro, em alemão, por uma editora sediada em Londres.

É evidente que sua influência sobre os acontecimentos europeus de 1848 foi quase nula, sobretudo se se leva em conta que a anunciada tradução simultânea do folheto para outras línguas terminou não ocorrendo imediatamente. O Manifesto só seria vertido para o inglês em 1850, para o russo em 1859 e para o francês em 1872.Unknown Object

A identificação do trabalho de Marx e Engels com a vaga revolucionária de 1848 é totalmente pertinente, no entanto, na medida em que esse texto, de indiscutível qualidade literária, aborda os grandes temas econômicos, sociais e políticos de seu tempo a partir do que seus autores consideravam devesse ser a perspectiva do nascente proletariado europeu.

Não se trata, porém, de uma obra doutrinária, fora de lugar e de seu tempo, como boa parte da literatura socialista da época, mas de uma "plataforma programática e política dos comunistas com vistas a uma revolução específica, cuja eclosão consideravam iminente em uns países e próxima em outros."Unknown Object

O anunciado fantasma do comunismo que rondava a Europa em 1848 não significa, como a abertura do Manifesto pode sugerir, que o continente estivesse à beira de uma revolução anticapitalista.

Marx e Engels estavam mais preocupados com a dinâmica global dos movimentos sociais europeus que, para eles, tornava o comunismo uma questão atual, ainda que não exeqüível no curto prazo.

As dimensões da revolução europeia

As revoluções europeias em 1848 têm três grandes dimensões, que se combinaram em cada país de forma distinta. Elas eram nacionais, na medida em que havia países sob dominação estrangeira - a Itália, a Polônia ou a Irlanda, por exemplo - e povos que não haviam conseguido realizar até então sua unidade construindo um Estado nacional. Além da mencionada Itália, o caso mais evidente era o da Alemanha. Elas eram democráticas, como reação à restauração conservadora que a Santa Aliança havia promovido depois do Congresso de Viena que se seguiu à derrota dos exércitos napoleônicos e à exclusão dos trabalhadores do sistema político mesmo em países onde o liberalismo imperava, como na Inglaterra. Elas eram sociais, expressando as inquietações do nascente proletariado e de outras classes exploradas frente aos brutais efeitos da revolução industrial.

Essas três dimensões fundiram-se em um mesmo movimento, pois, como constataram Marx e Engels, as burguesias europeias de 1848 não possuíam mais a substância revolucionária da burguesia inglesa do século XVII e na francesa de 1789.

As burguesias europeias de 1848 viviam como que uma crise de dominação. Confrontadas com as tarefas da união nacional - sobretudo na Alemanha - e da construção democrática, em todas as partes, elas temiam que o movimento em torno dessas duas questões desbordasse seu leito original e se convertesse em uma revolução social anticapitalista.

A luta pela democracia política não podia mais separar-se da luta pela democracia econômica e social. Marx e Engels acreditavam que, processualmente, a plena realização da democracia se confundia com a consecução do comunismo.

Alcances e limites do Manifesto

Visto em perspectiva - 150 anos depois - o Manifesto Comunista revela toda genialidade premonitória de seus autores, bem como os limites indiscutíveis de suas ideias, alguns deles de pesadas consequências para o pensamento revolucionário no século e meio que se seguiu.

O fracasso generalizado das revoluções de 1848 e a perspectiva de um longo período de refluxo operário e de estabilização - que efetivamente ocorreu por vinte anos - parecem ter empurrado Marx a dedicar-se mais ao estudo do funcionamento da economia capitalista, tentando, quem sabe, descobrir na anatomia do modo de produção as condições materiais de possibilidade de um novo surto revolucionário.

É possível que estes dois contextos históricos distintos e consecutivos - o do ascenso revolucionário e o da estabilização capitalista - expliquem as diferenças na forma pela qual é tratada sucessivamente por Marx a problemática da mudança social.

No Manifesto ela aparece vinculada à idéia de luta de classes enquanto seus escritos posteriores permitem uma leitura economicista da teoria da revolução ao transformá-la em resultado do choque entre o desenvolvimento das "forças produtivas materiais da sociedade [...] com as relações sociais existentes, ou, o que não é mais do que expressão jurídica disso, com as relações de propriedade dentro das quais se haviam desenvolvido até então".Unknown Object

A apontada inexistência, ou insuficiência, de uma reflexão de Marx sobre a política neste longo períodoUnknown Object - salvo o brilhante Dezoito Brumário de Luís Bonaparte e outros poucos textos -, somada a projeções econômicas e sociológicas equivocadas, empobreceu a reflexão sobre a revolução na Europa na segunda metade do século XIX. Somente no começo do século XX e na periferia européia - na Rússia - é que os grandes temas presentes em 1848 voltaram a ocupar um lugar central no pensamento revolucionário, abrindo espaço para uma reflexão específica sobre a política.

As preocupações de Lenin sobre a articulação da revolução burguesa com a revolução proletária e as de Trotski sobre a "revolução permanente" dão continuidade, em condições temporais e espaciais distintas, a uma reflexão quase totalmente interrompida no pós-48.

A "exportação" dessas teorias para os países do capitalismo desenvolvido, após a Revolução Russa, via Terceira Internacional, foi incapaz de resolver os problemas deixados por esse longo hiato e teve pesadas conseqüências políticas para o socialismo europeu no século XX.

A releitura do Manifesto 150 anos depois, sobretudo da análise que seus autores fazem da evolução do capitalismo, revela um texto de surpreendente vigor e atualidade. Na descrição da expansão capitalista pelo mundo e do profundo impacto econômico, social e até cultural desse processo, não é difícil encontrar a fenomenologia daquilo que, com certa imprecisão conceitual, é hoje chamado de globalização.

Se é certo que Marx e Engels captam os limites da burguesia, apesar de não esconderem seu fascínio pela capacidade do capitalismo revolucionar-se constantemente, é evidente que o Manifesto não tira todas as conseqüências dessa perda de dinamismo revolucionário da classe burguesa, já visível em 1848.

Tudo se passa como se o "filistinismo burguês", tantas vezes denunciado, não fosse mais do que expressão do medo que essa classe passou a ter de um proletariado mais numeroso e organizado em 48 do que aquele existente quando das precedentes revoluções inglesa e francesa.

É evidente que a ameaça operária em 1848 era bem maior do que a dos diggers no século XVII inglês ou dos sans-culotte na Revolução Francesa.

Mas também é evidente que um certo fascínio evolucionista, próprio do século XIX, fez com que os autores do Manifesto não captassem em toda sua extensão a promiscuidade entre a nova classe dominante - burguesa - e os elementos persistentes do Antigo RegimeUnknown Object, relação que explica em muito o atraso da modernização européia ou o caráter autoritário de que se revestiu.

Uma burguesia provinciana e protonacional como aquela existente no século XIX já não mais se mostrava capaz de levar adiante a grande transformação que a Europa parecia exigir enquanto o proletariado ainda não tinha força e organização suficientes para conduzir o processo.

Proletarização, pauperização e catastrofismo

O otimismo revolucionário que atravessa o Manifesto decorre, entre outros fatores, da conclusão de que o capitalismo vivia encerrado em uma teia de contradições que o conduziria ao colapso. Vítima da modernização que ele mesmo produziu - que tinha na grande indústria sua expressão maior - o capitalismo produzia as armas de sua destruição e aqueles que as empunhariam: os proletários. Mais ainda: o Manifesto anuncia a tendência a uma pauperização crescente da sociedade, que terá como corolário a "simplificação" da estrutura de classes.

A tendência das classes médias, a pequena burguesia, é de proletarizar-se. Ao sentir esse risco, diz Marx, elas podem se aproximar politicamente do proletariado. Ao mesmo tempo, a exclusão - que a própria modernização tecnológica do capitalismo dos anos 40 do século passado produzia - acarretava o surgimento de um lumpemproletariado ("proletariado em farrapos"), um segmento da classe operária sem consciência de classe, sujeito à sedução por parte da burguesia ou por aventureiros, como fôra o caso de Luís Bonaparte.

A evolução do capitalismo mostrou que a tendência geral não era a de uma "simplificação" sociológica, que pusesse frente a frente quase exclusivamente burguesia e proletariado, mas de uma enorme complexidade social, em que as classes médias se expandiam colocando enormes desafios analíticos, mas sobretudo políticos para os revolucionários.

A pauperização - e isso Marx tinha claro - não era uma tendência inevitável e puramente "objetiva", mas estava regulada pela capacidade de resistência das classes trabalhadoras frente à exploração capitalista, isto é, pela luta de classes. A tendência à pauperização era resultado da incidência cíclica das crises (a cada sete ou dez anos). Mas como cada crise, ao resolver-se, preparava uma outra mais grave, a tendência era de se chegar a um impasse. Abrir-se-ia um período de "revolução social".Unknown Object Esse catastrofismo foi tonificado pela conclusão elementar da teoria da "simplificação" da sociedade.

A polarização social entre burguesia e proletariado implicava um crescimento deste, que se transformava em classe numericamente dominante, como já vinha acontecendo na Inglaterra.

É interessante que a perspectiva de o proletariado tornar-se classe majoritária alimentou não só os projetos insurrecionais ("revolução da maioria") como a utopia social-democrata de transitar pela via parlamentar para o socialismo mediante a conquista da maior parte dos votos nas eleições e através de transformações moleculares.

Mas a identificação do proletariado como sujeito revolucionário por excelência não era resultado dessa presença - real ou potencial - majoritária nas sociedades capitalistas.

Ela decorria basicamente do fato dessa classe ser a única que - como explicam Marx e Engels no Manifesto - para se emancipar necessitava emancipar a sociedade inteira, sendo assim dotada de universalidade, tema fartamente glosado no Manifesto, como já o fôra anteriormente na obra juvenil dos dois.

Esse proletariado-sujeito-revolucionário não é, no entanto, a classe trabalhadora realmente existente e sim aquela deduzida teoricamente a partir da análise das contradições do capitalismo.

Muitos argumentos foram dados para explicar porque os proletários por vezes não eram revolucionários e não "se comportavam segundo seu dever-ser", para utilizar a formular do jovem Marx.Unknown Object

Quando a imensa maioria da classe operária européia apoiou seus governos nacionais - quase todos monarquias conservadoras e clericais - no desencadeamento da Grande Guerra de 1914, LeninUnknown Object tentou explicar esse fenômeno como resultado da "traição" da aristocracia operária, um segmento do proletariado corrompido e cevado com os excedentes que a burguesia imperialista extorquia de suas colônias. Esquecia de explicar porque o proletariado desses países seguiu suas direções "traidoras".

Como esclareceu mais tarde Claudín, talvez faltasse ao dirigente bolchevique entender o peso do patriotismo na cultura operária em cada um dos países beligerantes do Ocidente europeu, cujo Estado nacional os trabalhadores haviam ajudado a construir.

Era difícil captar como esses elementos se combinavam com certos valores internacionalistas das classes trabalhadoras.

A perspectiva de derrotar o governo do Kaiser não era um argumento desprezível para os progressistas da França, da mesma forma que o fim do tzarismo - bastião do conservadorismo europeu - aparecia como idéia-força para justificar a adesão social-democrata alemã às posições belicosas do governo imperial.Unknown Object

O reducionismo economicista, combinado com a perda da dimensão histórica concreta dos movimentos - a luta de classes -, fez com que a trajetória das classes trabalhadoras fosse subsumida em nebulosos esquemas filosóficos, como os que tentam explicar os processos de passagem do proletariado da condição de "classe em si" a "classe para si", operação que muitas vezes só se realizava com a ajuda providencial do partido de vanguarda, depositário da teoria revolucionária que, ultima ratio, acaba por se transformar em motor da história.

Essa vertente idealista do pensamento revolucionário, que tenta salvar a qualquer custo a "missão histórica do proletariado", iria complicar-se sobremaneira em fins do século XX, quando, por mais de uma razão, se faz evidente a crise do sujeito revolucionário, tal como este aparecera na tradição do pensamento revolucionário.

1848 - 1998

No início do Manifesto, Marx e Engels, ao comentar a histeria anticomunista que sacudia a Europa em 1848, tratavam de explicá-la como resultado do poderio do projeto comunista naquele momento. Ao mesmo tempo eles defendiam a idéia de que competia aos comunistas expor "publicamente ao mundo inteiro suas concepções, seus objetivos e suas tendências".Unknown Object

Hoje, a produção de um novo Manifesto esbarraria em duas grandes dificuldades. Em primeiro lugar o texto não seria o resultado de uma nova situação revolucionária. Ao contrário, ele refletiria um período de ofensiva capitalista - ainda que algumas rachaduras possam estar aparecendo na sua fortaleza. Em segundo, um pensamento revolucionário não exibe hoje as certezas, o vigor e o otimismo que apresentava em 48.

Cento e cinqüenta anos depois do Manifesto, mais de cem anos após o nascimento da social-democracia e oitenta anos passados da vitória da Revolução Russa, não há como prescindir da realização de um severo ajuste de contas com esta gigantesca herança político-ideológica e sobretudo com as experiências de poder hegemonizadas por comunistas e social-democratas.O pensamento de esquerda não pode hoje atribuir aos distintos "socialismos realmente existentes" a condição de meros desvios, perversões ou deformações de um projeto radical de mudança social e política, como se estas experiências nada tivessem que ver com as teorias que estiveram, ou pretendiam estar, em sua origem.

A crise teórica que a esquerda vive há décadas é profunda. A crítica do capitalismo, de enorme vigor no século XIX e no começo do XX, estiolou-se e a burguesia parece haver tirado mais lições das crises econômicas do que os revolucionários.

O marxismo soviético, para retomar a expressão de Marcuse, transformou o que havia sido um pensamento eminentemente crítico em uma ideologia conservadora de justificação de um regime de opressão.

O pensamento dissidente no campo do marxismo, independente de sua generosidade e de momentos de brilho, não foi capaz de produzir em forma consistente uma alternativa teórica capaz de fundir-se com os múltiplos movimentos sociais que fizeram a história avançar nas últimas décadas. O Brasil é um exemplo vivo de como o pensamento crítico esteve aquém da colossal dinâmica social dos últimos vinte anos, sobretudo na década de 80.

A elaboração de um novo Manifesto esbarra finalmente em um conformismo defensista praticado por segmentos das esquerdas e de seus intelectuais que, em nome de uma fundamentalista "defesa do marxismo", se recusam a pensar as profundas transformações pelas quais o Brasil e o mundo passaram e se aferram ao que supõe serem "princípios" buscando um porto seguro em tempos de tempestades e incertezas.

Maria da Conceição Tavares, intelectual que alia rigor, paixão e inteireza de caráter, advertia há meses em uma reunião do partido que honra com sua militância, que corria-se o risco de propor um programa de governo para um Brasil que não mais existia. Palavras proféticas que atingiam o âmago da questão.

As esquerdas devem não só vencer a preguiça conformista do fundamentalismo pseudomarxista como a frivolidade de certos aggiornamentos teóricos que nada têm a ver com uma tradição intelectual e política de esquerda.

Pensar o país e o mundo existentes, ousar encarar de frente as profundas mudanças, ainda que abalem dogmas e convicções, colocar a reflexão à altura da generosidade dos que suportam a exploração e lutam contra ela. Este é o preâmbulo da agenda dos intelectuais de esquerda. As razões para ser de esquerda estão intocadas. Seguramente se aprofundaram.

A "modernidade" capitalista que tanto fascina basbaques assumiu em toda parte o caráter de barbárie. Desemprego e exclusão já não são resultado de crises, mas componentes da medíocre "expansão" do mundo. O trabalho escravo reaparece, os menores voltam a desempenhar um papel importante na produção, a renda se concentra como nunca. A política foi banida pela gestão "racional" de um mundo onde não parecem existir homens e mulheres reais. É o movimento de capitais que comanda a adoção de políticas macroeconômicas em quase todo o mundo condicionando crescentemente governantes aos imperativos de uma globalização que aparece como "dado objetivo" e nunca como construção política.

Rompendo com o pensamento único, este mundo do fim de século aparece não só como um campo de constrangimentos econômicos, sociais e políticos, mas também como um espaço de enormes oportunidades para o progresso e bem-estar humanos, que não se realizarão nos marcos de uma sociedade capitalista, ainda que reformada.

Abre-se assim claramente a problemática de um mundo pós-capitalista. Mas, ao invés de construir a utopia de uma sociedade alternativa que os progressos materiais de hoje podem viabilizar facilmente, melhor é concentrar a reflexão sobre os meios de enfrentar a barbárie capitalista na sua versão neoliberal e de construir os instrumentos de sua superação.

A agenda é clara. Que modelos econômicos devem ser construídos para dar conta das exigências de um desenvolvimento ambientalmente sustentado, capaz de dar resposta sobretudo aos fenômenos da pobreza e da exclusão econômica, social e cultural que afeta bilhões de pessoas no mundo e milhões no Brasil. Como radicalizar a democracia, indo mais além do Estado de direito, construindo espaços públicos onde se gestem permanentemente novos direitos, fundindo as exigências de liberdade política com os imperativos da igualdade social e político.

Finalmente, como identificar os sujeitos agentes dessa transformação. Ao proletariado - em profunda mutação -, mesmo que despojado da missão histórica de ser a classe redentora que a teleologia marxista lhe havia atribuído no passado, cabe um papel central na retomada da mobilização pela construção de um novo mundo.

Um novo pensamento crítico não negará o passado, aprenderá com seus erros, mas sobretudo saberá resgatar nas experiências das revoluções desses últimos séculos, as esperanças, a generosidade e o brilho que iluminou mesmo as noites mais escuras. Se esse novo horizonte buscado ainda se chama comunismo, está na hora de sua refundação.

Marco Aurélio Garcia é professor do Departamento de História da Unicamp e secretário de Relações Internacionais do PT.

Grandezas e limites do Manifesto

O Manifesto do Partido Comunista é, certamente, o texto mais conhecido e lido de Marx e Engels. Escrito em final de 1847 e publicado no início de 1848, ele foi provavelmente redigido apenas por Marx, que se utilizou para isso de um esboço preliminar elaborado por Engels, intitulado Princípios do comunismo. O texto lhes fôra encomendado pela Liga dos Comunistas (antes chamada de Liga dos Justos), um pequeno agrupamento de exilados alemães com sede em Londres. Quando Marx e Engels morreram, respectivamente em 1883 e em 1895, o Manifesto não só já conhecera inúmeras edições em alemão (a língua em que fôra escrito), mas também havia sido traduzido em vários outros idiomas. Essas reedições e traduções quase sempre traziam novos prefácios dos autores (sobretudo de Engels, que viveu 12 anos mais do que Marx), em muitos dos quais - sobretudo nos mais tardios - já se esboçavam autocríticas quanto a algumas de suas afirmações.

No momento em que o Manifesto foi escrito, Marx e Engels já tinham elaborado as linhas essenciais de sua ontologia do ser social (à qual deram o nome de "materialismo histórico"), cujas primeiras expressões sistemáticas se encontram em A ideologia alemã e nas Teses sobre Feuerbach (de 1845), bem como na Miséria da filosofia (de 1847). Em relação a esses textos fundadores, o Manifesto introduz, porém, uma significativa novidade: é nele que, pela primeira vez, Marx e Engels expressam de modo sistemático os fundamentos essenciais de sua teoria política, ou, mais precisamente, da teoria histórico-materialista do Estado e da revolução. Quem leu o Manifesto sabe que não é correto dizer - como, entre outros, Norberto Bobbio o fez nos anos 70 - que não existe em Marx uma teoria política.

A extraordinária eficácia do Manifesto - um dos textos teórico-políticos certamente mais influentes em toda a história - resulta, para além dos seus inegáveis méritos literários, da justeza essencial das grandes linhas com que conceitua o impacto que a emergência e a consolidação do capitalismo provocaram na evolução da humanidade. O que hoje conhecemos como "modernidade" tem suas principais determinações registradas nos dois primeiros capítulos do Manifesto, sugestivamente intitulados "Burgueses e proletários" e "Proletários e comunistas". Todos os traços que, pelo menos desde os iluministas, vinham sendo apontados como distintivos da era moderna (em contraposição à Antigüidade clássica e ao mundo feudal) encontram no Manifesto uma exemplar síntese histórico-dialética, à qual nem mesmo os mais ferrenhos adversários do marxismo têm recusado - quando dispõem de um mínimo de isenção - o qualificativo de "genial".

<--break->

Surpreende no texto do Manifesto, escrito há 150 anos, a atualidade com que, por exemplo, seus autores descrevem os fundamentos do modo de produção e da formação econômico-social capitalistas, sob cujo domínio continuamos a viver ainda hoje. Embora sejam críticos radicais do capitalismo, Marx e Engels não são românticos: têm clara consciência não só da irreversibilidade, mas também do caráter liberador e revolucionário das novas formas de sociabilidade que o capitalismo vinha introduzindo - e, de certo modo, continuou a introduzir - no modo de relacionamento e de interação entre os homens. Um famoso livro de Marshall Berman tornou ainda mais conhecida a expressão "tudo o que é sólido desmancha no ar", com a qual o Manifesto busca resumir o sentido das transformações que o capitalismo introduzia no mundo, gerando - com sua carga fortemente emancipatória, mas também com suas dilaceradoras contradições e impasses - o que hoje conhecemos como "modernidade".

Entre as novidades trazidas pelo capitalismo, e não em último lugar, Marx e Engels registram o fenômeno que hoje recebe o nome de "globalização": "Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias - lê-se no Manifesto -, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isso se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal". É dessa globalização do capital que Marx e Engels retiram a justa percepção de que os opositores do capitalismo - os trabalhadores - devem também se organizar em nível internacional.

Ao mesmo tempo em que descreve premonitoriamente características que o capitalismo só viria a manifestar plenamente nos dias de hoje, o Manifesto também é atualíssimo ao apontar as contradições que essa formação econômico-social (e cultural) traz consigo. "O sistema burguês - observam Marx e Engels - tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. De que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande parte das forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las". O diagnóstico é, também ele, atualíssimo: "As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia". Ou seja: as promessas de emancipação humana trazidas pela modernidade capitalista (entre as quais as promessas de democratização e de universalização da cidadania) exigem, para sua plena realização, a superação do próprio capitalismo.<--break->

E o Manifesto é também de grande atualidade quando indica os sujeitos capazes de encaminhar essa superação: "A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários". É no mundo do trabalho, no mundo dos que geram as riquezas que o capital expropria, que se gestam as principais forças objetiva e subjetivamente interessadas na construção de uma nova ordem social, que Marx e Engels concebem como capaz de recolher os momentos emancipatórios trazidos pela modernidade capitalista mas, ao mesmo tempo, de superar suas contradições e impasses. Escrevendo em 1848, nossos dois autores não podiam prever a grande diversificação que iria envolver, nos 150 anos subseqüentes, o universo dos que vivem do trabalho e, por conseguinte, dos que geram mais-valia para o capital. Por isso, ainda identificavam sumariamente os trabalhadores com a classe operária fabril, uma identificação que já não se sustenta hoje. Contudo, ao mostrar que é no mundo dos que trabalham - e que são explorados pelo capital - que se gesta o portador material da superação do capitalismo, o Manifesto demonstra mais uma vez a sua atualidade, a sua sintonia com o presente.

Malgrado isso, é preciso dizer claramente que quem quer ser marxista hoje não pode repetir mecanicamente o que é dito no Manifesto. Lukács observou, já em 1923, que a ortodoxia marxista se refere exclusivamente ao método, o que implicaria, segundo ele, a possibilidade (ou mesmo a necessidade) de se deixar de lado, ou mesmo de se recusar, muitas das afirmações concretas de Marx e Engels. Essa relativização significa que, ao lado de sua extraordinária grandeza e de sua surpreendente atualidade, o Manifesto também apresenta limites.

Tais limites decorrem, antes de mais nada, do fato de que Marx e Engels adotaram metodologicamente, nesse texto, um ponto de vista abstrato: eles se concentraram nos traços mais gerais do modo de produção capitalista, sem analisar suas manifestações concretas em diferentes formações econômico-sociais. Tal ponto de vista, ao mesmo tempo em que lhes permitiu a captação das determinações essenciais do capitalismo, possibilitou-lhes ainda emprestar ao Manifesto aquela dimensão de época que faz a sua grandeza e que talvez seja a razão maior de sua permanente eficácia. Mas também lhes impediu de levar em conta mediações concretas que tornariam mais ricas, como irá ocorrer em textos posteriores, as suas análises. (Nesse sentido, bastaria comparar o relativo esquematismo da definição do Estado no Manifesto com a riqueza concreta da análise do fenômeno político no 18 Brumário, escrito por Marx apenas três anos depois.) Contudo, os limites da obra clássica de 1848 são, sobretudo, limites históricos: escrevendo em 1848, Marx e Engels não podiam elevar a conceito inúmeras determinações que o desenvolvimento histórico sucessivo introduziria no ser social, alterando assim os termos com que eles definem, no Manifesto, alguns complexos problemáticos tão significativos - para a teoria política que fundaram - como a luta de classes, o Estado e a revolução.

Depois de afirmar que "a época da burguesia caracterizou-se por ter simplificado os antagonismos de classe" (uma afirmação que é relativizada no 18 Brumário e em outros textos posteriores), Marx e Engels afirmam no Manifesto: "O poder político do Estado moderno não é mais do que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia. [...] O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra". Essa enfática afirmação de que o poder do Estado capitalista se impõe essencialmente pela coerção (ou "opressão") resulta da constatação de que a sociedade burguesa, ao contrário das anteriores sociedades de classe, é incapaz de "exercer o seu domínio porque não pode assegurar a existência do seu escravo", isto é, do trabalhador assalariado. A lei do movimento do capital, segundo os autores do Manifesto, conduziria o proletariado à pauperização absoluta. Isso, ao mesmo tempo que imporia ao Estado burguês a necessidade de uma coerção permanente sobre os trabalhadores, levaria a luta de classes a assumir a forma da guerra civil: "Esboçando em linhas gerais as fases de desenvolvimento do proletariado - diz ainda o Manifesto -, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que lavra na sociedade atual, e que durará até a hora em que essa guerra explodir numa revolução aberta e o proletariado estabelecer sua dominação pela derrubada violenta da burguesia".

Expressa-se assim, no Manifesto, uma teoria política centrada essencialmente em três pontos: 1) numa noção "restrita" do Estado, segundo a qual esse seria o "comitê executivo" da classe dominante, que se vale essencialmente da coerção (ou da "opressão") para cumprir suas funções; 2) numa concepção da luta de classes como conflito bipolar e "simplificado" entre burgueses e proletários, que se expressa como "uma guerra civil mais ou menos oculta", que levará necessariamente a uma "explosão"; 3) numa visão da revolução socialista como "revolução permanente", que tem seu momento resolutivo na constituição de um contrapoder da classe operária, que deve "derrubar violentamente" o poder burguês e substituí-lo por um outro poder (que, pouco tempo depois do Manifesto, Marx chamará - recolhendo um termo de Auguste Blanqui - de "ditadura do proletariado").

Um marxista que compreenda a "ortodoxia" não como uma reverência fetichista aos textos, mas como o empenho em ser metodologicamente fiel ao movimento histórico-dinâmico do real, não pode repetir essas definições como sendo plenamente válidas hoje. Novos fenômenos surgiram, sobretudo a partir do último terço do século XIX, os quais - ao introduzir novas determinações no ser social do capitalismo - tornaram obsoletas muitas das características presentes em tais definições.

Por um lado, a progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade) - uma passagem amplamente teorizada por Marx no Livro 1 de O Capital, publicado em 1867 - alterou as condições em que se trava a luta de classes: ela não mais ocorre num quadro em que a acumulação do capital leva necessariamente ao empobrecimento absoluto do trabalhador, mas torna possível um aumento simultâneo de salários e lucros; com isso, a luta de classes pode assumir formas mais institucionalizadas, que não podem ser equiparadas a uma "guerra civil". E, por outro lado, em estreita correlação com essa alteração infra-estrutural, ocorreu uma crescente "socialização da política" (conquista do sufrágio universal, criação de sindicatos e partidos operários de massa), a qual forçou o Estado capitalista a se abrir para outros interesses que não os da classe dominante, com o que - sem deixar de ser um Estado de classe - ele não mais pode ser definido como um mero "comitê executivo" da burguesia. Ao lado da coerção, gestaram-se também mecanismos de tipo consensual. Tudo isso, finalmente, motivou uma nova concepção da revolução socialista: essa pode agora ser imaginada não mais sob a forma de uma "explosão violenta" concentrada num curto lapso de tempo, como ainda o faz o Manifesto, mas sim de um movimento processual, de longa duração, que opera nos espaços progressivamente abertos pelas instituições liberal-democráticas (as quais, de resto, resultam em grande parte das lutas dos trabalhadores).<--break->

Embora indicações no sentido de revisar a teoria para adequá-la a esse novo contexto histórico já estejam presentes nos próprios Marx e Engels depois do Manifesto (como se pode ver, entre outros escritos, nos prefácios mais tardios de ambos às reedições e traduções do texto de 1848), o fato é que uma nova teoria marxista do Estado e da revolução só viria à luz, de modo sistemático, nos célebres Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci. Com base numa correta visão historicista do método de Marx, Gramsci percebeu a essência dos limites históricos dos seus mestres (e, em conseqüência, do Manifesto). Numa nota em que fala da teoria do Estado em Hegel, diz Gramsci: "Sua concepção [de Hegel] da associação só pode ser ainda vaga e primitiva, situada entre o político e o econômico, de acordo com a experiência da época, que era ainda restrita e fornecia um único exemplo completo de organização, a organização 'corporativa' [...] Marx não podia ter experiências históricas superiores às de Hegel (pelo menos muito superiores), mas tinha o sentido das massas, graças à sua atividade jornalística e de agitação. O conceito de organização em Marx permanece ainda preso aos seguintes elementos: organizações profissionais, clubes jacobinos, conspirações secretas de pequenos grupos [como a Liga dos Comunistas], organização jornalística".

Assim, ao mesmo tempo que indica os limites históricos de Marx e Engels, Gramsci recolhe o essencial do ensinamento deles: o autor dos Cadernos não abandona as teorias de Estado e revolução socialista elaboradas por esses autores, inclusive no Manifesto, mas as enriquece com novas determinações, recolhidas do movimento histórico que ele teve a possibilidade de vivenciar. A revisão do marxismo empreendida por Gramsci - que coloca as idéias de Marx e Engels em plena sintonia com o nosso tempo - nos ensina uma lição: reler o Manifesto, de um ponto de vista marxista, significa relê-lo de modo crítico, relativizá-lo, situá-lo historicamente.

Essa necessária relativização histórica, contudo, não nos deve fazer esquecer que poucos textos resistiram ao tempo tanto quanto o Manifesto do Partido Comunista. É surpreendente sua atualidade, sua capacidade de nos falar - e de nos ensinar - sobre o nosso mundo de hoje. Além dos traços do capitalismo que já mencionamos antes, é também extremamente atual, por exemplo, a concepção de comunismo que o Manifesto nos sugere: a de uma organização social na qual "o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos". É uma frase densa de significado, que fornece aos marxistas de hoje, ao mesmo tempo, critérios para avaliar as razões do fracasso do "socialismo real", para recordar a necessidade de recolher o que de melhor existe na tradição liberal e democrática e, sobretudo, para sugerir um dos traços essenciais do comunismo, que continua sendo - e talvez hoje mais do que nunca - a única alternativa racional e sensata à crescente barbárie capitalista.

Carlos Nelson Coutinho é professor titular de Teoria Política na UFRJ e membro do Conselho de Redação de TD.

O Estado e o Manifesto

O Manifesto Comunista é - sem dúvida - o documento político mais importante do socialismo moderno. Sua apaixonada visão da modernidade, sua convicção de que se abria um largo período de transformações revolucionárias e sua análise dos traços até ali essenciais do desenvolvimento da humanidade influenciam até hoje o movimento socialista. O Estado moderno nasce, assim, sob uma pesada crítica "de classe", ou seja, a crítica de Marx e de Engels, que pretenderam afirmar o "ponto de vista do proletariado" na sociedade burguesa, defendendo-o como "ponto de vista" do futuro de uma humanidade reconciliada numa sociedade sem classes. Este objetivo "último" está recorrentemente integrado na lógica do Manifesto, no que se refere à sua análise da relação Estado-classe.

Aquilo que para Hegel era a própria universalidade contida no Estado - a sua burocracia - para Marx, no Manifesto, é apenas a correia de transmissão dos interesses e necessidades da classe burguesa. Esta estrutura, portanto, não tem qualquer permeabilidade que possa constituir-se fora daquilo que o marxismo vulgar vai sintetizar como o "comitê central dos interesses da classe burguesa". Assim, Marx também estabelece no Manifesto, a partir de uma não-identidade absoluta entre burguesia e proletariado, uma possibilidade de inversão radical da dominação burguesa puramente a partir do Estado: "Tal como em Hegel a burocracia é a classe universal e a autoconsciência do Estado moderno, a classe operária é em Marx a classe universal e a autoconsciência da emancipação socialista."Unknown Object(1)

A identidade absoluta classe-Estado, no Manifesto, interfere igualmente no programa do proletariado para abrir as portas ao advento do comunismo. Por isso, embora de forma processual ("pouco a pouco", diz Marx), a tarefa seria centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, ou seja, nas mãos da classe no Estado para, no futuro, promover a extinção de todas as classes: "O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas."Unknown Object(2)

A insuficiência desta formulação é flagrada mais tarde por Lenin, quando em 1923 o proletariado erigido em "classe dominante", por intermédio do partido, enfrenta as duras tarefas de converter a economia russa em economia socialista, com os meios de produção massivamente adjudicados ao Estado. Lenin, neste período, interpõe a questão da civilização, ou seja, o atraso cultural como fator impeditivo para que o Estado proletário, mesmo que pela força, consiga preparar as condições para o comunismo: "Falta-nos civilização suficiente para permitir que passemos direto ao socialismo, embora de fato tenhamos requisitos políticos para tanto".Unknown Object(3)

Ora, se a própria potência política do Estado depende, para ser exercitada, da "civilização", a identidade classe-Estado sofre um abalo estrutural. Ele - o Estado -, como conseqüência, deve fazer movimentos que não são determinados exclusivamente pelos interesses da classe que lhe "ocupa" (ou lhe forma). Deve, assim, recorrentemente, reconciliar-se com a "civilização", ou seja, com o estágio civilizatório em que se encontra a sociedade e, melhor ainda, com tudo o que existe "fora do Estado", ou seja, a sociedade e seus movimentos reais. E estes movimentos são tanto tipicamente de "classe", como se originam de vários outros fatores, nem sempre de natureza econômica, como por exemplo aqueles orientados pelos costumes nacionais, pela cultura, pela religião e pela própria forma com que os homens se relacionam com a própria natureza.

Mas a apropriação pelo Estado de certos meios de produção, apontada no programa do Manifesto como tarefa constitutiva do poder do proletariado, aparece historicamente - mais tarde - como modo de operar do próprio Estado capitalista-monopolista. Este "modo de operar", na verdade, viabiliza tanto uma nova reorganização econômica do capitalismo, como também a emergência de uma forte classe operária moderna. Uma classe que, tendo "resolvido a sua vida", não mais se inclina pelos ideais socialistas e muito menos para qualquer internacionalismo proletário: "Nós sustentamos, pelo contrário - diz James O'Connor -, que o crescimento do setor estatal é indispensável à expansão da indústria privada, em particular a da indústria monopolista. Nossa tese contradiz também frontalmente um princípio básico do pensamento liberal moderno, segundo o qual a expansão da indústria monopolista obstaculiza o crescimento do setor estatal."Unknown Object(4)

As suas condições de legitimação só se realizam, portanto, com o "afastamento" relativo do Estado das relações diretas de poder, que operam na esfera econômica: de uma parte para dar curso à reprodução social e à acumulação do capital e, de outra, para afirmar direitos que lhe tolhem a pura espontaneidade. Wallerstein, por exemplo, analisando a situação do Estado atual e a necessidade de reformas sociais substanciais, já prevê que os Estados "perderão a legitimidade e com isso terão dificuldades para assegurar a estabilidade mínima, internamente ou entre si"(5)Unknown Object: ou seja, não poderão mais ser fiadores de uma paz social que interessa plenamente ao conjunto dos capitalistas, face a uma determinada crise do próprio modo de produção capitalista.

A concepção de Estado no Manifesto, porém, determina uma proposta pragmática que coloca o Estado como o gestor autoritário do projeto socialista, porque afinal ele faz os movimentos determinados pela classe dominante, o proletariado. A mesma concepção também sustenta que, com a eliminação das condições de opressão geradas pelo capitalismo, o Estado perderá "o seu caráter político".

<--break->Vejamos as funções do Estado no programa do Manifesto:

"Todavia, nos países mais adiantados, as seguintes medidas poderão geralmente ser postas em prática:

1. Expropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado.

2. Imposto fortemente progressivo.

3. Abolição do direito de herança.

4. Confisco da propriedade de todos os emigrados e sediciosos.

5. Centralização de crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com monopólio exclusivo.

6. Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de transporte.

7. Multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado, cultivo das terras improdutivas e melhoramento das terras cultivadas, segundo um plano geral."Unknown Object

A extinção da política não é uma conclusão secundária, no conteúdo geral do Manifesto, nem é uma proposição isolada da concepção de Estado que ali é formulada. O fim do "caráter político" do Estado é coerente com a concepção que estabelece que o Estado moderno é apenas um Estado-instrumento, cujo caráter público é pura aparência, e não uma determinação concreta da luta de classes e de um conjunto de outros fatores culturais e "civilizatórios".

Pelo que se deduz do Manifesto poderia ser estabelecida uma relação na seguinte ordem: Estado, como estrutura de poder da classe dominante; poder político, como poder exclusivamente de opressão de uma classe sobre a outra; proletariado no poder, para promover a extinção das classes com a extinção da opressão capitalista; extinção da política e extinção do Estado, como instrumento de opressão, como resultado final da ditadura proletária.

Na verdade, ao longo das obras de Marx e Engels, esta visão é relativizada e a relação Estado/classe, seguramente, torna-se cada vez mais complexa, complexidade que é resolvida pela tradição do marxismo vulgar com o apelo à categoria "em última instância". Ou seja, o Estado representa, mas somente "em última instância", os interesses da classe burguesa, como aliás sustentou-se que o Estado soviético representava - apesar das suas deformidades - "em última instância" os interesses do proletariado.

<--break->Ocorre que este "em última instância" não diz absolutamente nada. Apenas "tolera" a existência de outros fatores, em "instâncias" inferiores, que operam sobre o Estado. Não compreende o Estado como relação político-econômica, como instituição permeada pela cultura e pela civilização, como relação social e jurídica e, inclusive, como instância "separada da sociedade". Uma instância que reflete, nas suas próprias instituições, não só os antagonismos de classe que permeiam a sociedade, mas também - por elas - assegura algumas demandas de caráter universal acima das classes.

A relação Classe-Estado-Direito, sua unidade contraditória, não poderia ter sido apanhada pelo Manifesto. À época, a instrumentalização quase absoluta do Estado pela burguesia em ascenso, para constituir um Estado que eliminasse os privilégios de ordem e de casta, mascarava aquilo que poderia ser, no futuro, o Estado moderno fundado numa ordem jurídica democrática e sob permanente assédio do próprio proletariado organizado.

Esta deficiência de entendimento determinada historicamente, que se reproduziu como "marxismo soviético", pode ser assim situada: "está ancorada nos seguintes pressupostos, que são elementos fundantes do marxismo dominante nas sociedades do Leste, nos partidos comunistas da mesma vertente e nos seus teóricos oficiais: a estreiteza com que é abordada a relação entre classe e Direito, que resulta na busca frenética da identificação obrigatória das instituições e formas jurídicas, das categorias do Direito e da norma jurídica, com o interesse da classe; a sacralização da classe operária como classe messiânica, para propor uma nova ordem social universal sem conflitos de interesses, classe, portanto, dotada da razão universal atual e da negação do Direito no futuro; a identificação do Direito com o Estado, numa espécie de kelsenianismo de esquerda, que, por seu turno, produz uma abordagem puramente lógico-formal do Direito (ou seu inverso, puramente especulativa, em torno do mito da sociedade sem Direito)."Unknown Object

De fato, a visão de que todo o Estado é uma ditadura de classe, além de ensejar a simplificação ao extremo da luta política na sociedade (que seria cada vez mais "simples"), tem a característica de proporcionar uma "ética de poder" supostamente baseada numa moralidade proletária. Os valores desta ética estariam embasados na "inversão da dominação", que, ao fim e ao cabo, torna a violência, segundo esta visão, uma violência legítima dos proletários, como o único meio possível de direcionar a sociedade atual para uma outra mais justa. O texto de Lucio Magri é elucidativo: a "característica universal e imprescindível do poder proletário 'é a de ser, em qualquer caso, uma ditadura (como todo Estado), ou seja, fundada na repressão violenta dos exploradores como classe, violação, por conseguinte, da democracia pura', ou seja, da igualdade e da liberdade desta classe."Unknown Object

O texto de Cerroni, contraposto à visão de Magri, faz uma síntese que parece adequada e revela, na sua plenitude, as conseqüências das absolutizações feitas a partir do Manifesto: "Esta identificação do Estado com o aparato físico da violência e da coação impediu uma análise profunda do que constitui a direção política do Estado burguês evoluído; do que é o ordenamento jurídico normativo e o direito formal moderno; dos valores que têm todo o aparato formal da vida pública. Essa identificação conduz a uma grave desvalorização tanto da democracia política como das liberdades políticas"Unknown Object.

O problema da negação da democracia e das liberdades políticas, pelo "marxismo vencedor", vai chocar-se com duas oposições frontais, dentro do próprio campo teórico do marxismo, nas disputas teóricas e políticas sobre os destinos da Revolução Russa. Trata-se da aguda crítica formulada pelo menchevismo e por Karl Kautsky, de uma parte (à direita), e da forte oposição de princípios feita por Rosa Luxemburgo (à esquerda), posições que sem renunciar ao reconhecimento da importância histórica da derrocada do absolutismo e mesmo do poder burguês emergente não aceitaram a ditadura dos bolcheviques "em nome" do proletariado.

Na verdade, até hoje estas questões não estão resolvidas. Os socialistas não conseguiram, até agora, apresentar os traços de uma proposta convincente de transição para o socialismo, na qual as liberdades políticas e os direitos humanos sejam assegurados, mesmo que se aceite a existência de momentos excepcionais de restrição com o reforço do "poder de Estado", a partir do seu Executivo. A "democracia socialista", na verdade, até agora foi um "capitalismo regulado", com "rosto humano", e só foi possível manifestando-se como sociedade concretamente capitalista com um Estado meramente reformado: a social-democracia e o "welfare state".

Na base deste problema crucial para o futuro do socialismo, como regime político e econômico para promover de forma crescente a igualdade e a extinção das classes, está seguramente a questão do Estado. Como ele pode reprimir com legitimidade, respeitando os direitos humanos e como ele pode manter a legitimidade do novo poder, ao mesmo tempo que revoluciona todo o seu sistema jurídico, mantendo as liberdades políticas e o direito de oposição?

Talvez esta fórmula não exista e também o reformismo, mesmo o mais conseqüente, esteja fadado a uma cada vez maior impotência. Mas é de se perguntar se os fatos da história e o conjunto de violências que o capitalismo comete em nome do lucro e do mercado não vão proporcionar a emergência de irrupções violentas dos oprimidos e explorados, que se comportarão com absoluta indiferença em relação à democracia e aos direitos humanos, que na verdade nunca foram bens visualizados no mercado.

Tarso Genro é advogado, ex-prefeito de Porto Alegre e membro do Diretório Nacional do PT.

Notas

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice - o social e o político na pós-modernidade, Edições Afrontamento, 3ª edição, 1994, Porto, pág. 208.

2 MARX-ENGELS. Manifesto do Partido Comunista, Global Editora, 9ª edição, São Paulo, 1993, pág. 95.

3 HOBSBAWM, Eric. Ecos da Marselhesa, Companhia das Letras, São Paulo, 1996, pág. 75.3

4 O'CONNOR, James. La crisis fiscal del Estado, Ediciones Península, 2ª edición, Barcelona, 1994, pág. 29.

5 WALLERSTEIN, Immanuel. "As agonias do liberalismo: as esperanças para o progresso", in: O muro depois da queda, Emir Sader, organizador, Paz e Terra, 1995, São Paulo, pág. 47.

 

O capitalismo atual e o Manifesto

Os 150 anos de publicação do Manifesto do Partido Comunista são uma ocasião para discutir sua importância. A importância histórica, naturalmente, está fora de discussão: o Manifesto, neste século e meio, foi uma das obras mais difundidas de toda a literatura mundial, senão a mais difundida. Contribuiu para moldar um dos movimentos políticos decisivos da segunda metade do século XIX e do século XX; expressou o grande projeto emancipador de nosso tempo; teve, ao lado de outras obras de Marx e Engels, uma influência fundamental nas ciências sociais e nos estudos de história.

Assim, o que é interessante discutir agora é em que medida esta importância deve se manter nas próximas décadas; em outras palavras, avaliar a atualidade do Manifesto.

Com relação à visão expressa por Marx e Engels em 1848 quanto ao caráter geral e às potencialidades da economia capitalista, o mínimo que se pode dizer é que ela mostrou-se quase profética e pouco envelheceu nas últimas quinze décadas.

Não era uma visão simples ou unilateral. Em primeiro lugar, eles enfatizam o dinamismo da economia capitalista, sua enorme capacidade de criar riquezas. Muitas das frases do Manifesto poderiam ter sido escritas por entusiastas do capitalismo, como por exemplo:

"[A burguesia] foi a primeira a mostrar o que pode realizar a atividade humana: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas…"; "A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto - que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?".

O que era verdade na época do telégrafo e da navegação a vapor vale mais ainda na época da internet e das viagens aéreas. Além disso, nenhuma obra enfatizou com mais vigor que o Manifesto a tendência da economia capitalista de revolucionar constantemente suas próprias condições de produção, incorporando progresso técnico, e a partir daí a tendência de também revolucionar toda a sociedade:

"A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, e logo as relações de produção e todas as relações sociais. (...) Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes".

Essa tendência, impulsionada pela concorrência, leva à permanente redução dos custos. A esse propósito, o Manifesto faz uma colocação brilhante sobre a força fundamental da burguesia: "Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros". A grande capacidade do capitalismo de produzir a baixo custo foi um dos elementos que lhe permitiram derrotar os regimes burocráticos do chamado "campo socialista".

<--break->Outra consequência do dinamismo da economia capitalista é sua tendência à expansão geográfica permanente, até dominar todo o mundo, e unificá-lo em um mesmo mercado mundial. A atualidade das frases seguintes do Manifesto é evidente:

"Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. (…) Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações".

Esta citação um tanto longa justifica-se porque ninguém negará que estas frases poderiam ter sido escritas hoje. E, além disso, ela é útil para lembrar aos ideólogos da "globalização" quão pouco novos são os fenômenos que têm alimentado sua ideologia. Contudo, é importante notar que nesta análise das relações entre os vários países falta um elemento decisivo, para o qual ainda não se havia atentado na época em que o Manifesto foi escrito, que só se tornaria visível muito mais tarde: o do imperialismo e das hierarquias internacionais, da assimetria e da dominação nas relações entre as nações. A análise de Marx e Engels em 1848 é brilhante, mas parcial. Aliás, curiosamente, essa mesma lacuna aparece nas teorias dos globalizadores. Para estes, contudo, não há justificação: há muito que a existência do imperialismo, da assimetria e da dominação nas relações internacionais é uma coisa evidente.

Dinamismo, capacidade de revolucionar as condições de produção e de promover modernização, portanto, são as grandes vantagens do capitalismo, que lhe dão inclusive um grande ímpeto para derrubar as barreiras que se erguem diante dele. Mas o Manifesto, como seria de se esperar, não descreve apenas esta face do capitalismo. Pinta também um quadro de suas características negativas.

As crises do capitalismo

A primeira delas, já mencionada de passagem em uma das citações anteriores, alude à falta de segurança, vale dizer, à instabilidade. Este é outro tema de grande atualidade, é claro, e se encadeia com o da ocorrência inevitável de crises periódicas:

"(…) a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção e de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande massa das próprias forças produtivas já desenvolvidas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbárie momentânea; dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhes os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesas; pelo contrário, tornaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes em que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. De que maneira consegue a burguesia vencer estas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isto? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las".

A idéia central deste parágrafo continua hoje a ser necessária para a compreensão da dinâmica da economia capitalista: a lógica da produção capitalista e da concorrência leva periodicamente a um fenômeno novo na História, típico do capitalismo, e realmente paradoxal, que é a crise de superprodução. A economia, por assim dizer, se afoga em produção que não pode ser absorvida pelo mercado. E a saída destas crises só é possível com uma grande destruição de mercadorias e de forças produtivas, por um lado, e com uma nova expansão, prenunciadora de novas crises.

Este tema foi depois retomado e aprofundado na obra econômica madura de Marx, especialmente em passagens das Teorias da Mais-Valia e na seção sobre a "Lei da Tendência Decrescente da Taxa de Lucro" no Livro III d'O Capital.

De todos os modos, avaliemos apenas a formulação mais simplificada do Manifesto. A economia capitalista conserva até hoje o padrão de crises periódicas em que são destruídas mercadorias e forças produtivas, e até os anos 30 deste século a tendência foi de fato de que isto se agravasse progressivamente, como o Manifesto afirmou. A partir daí, contudo, os governos capitalistas dotaram-se de meios muito mais amplos para intervir e limitar o alcance das crises.

Mas mesmo que esta intervenção tivesse conseguido controlar completamente as crises, isto não tiraria a validade da análise do Manifesto. Apenas indicaria a necessidade de completá-la. O Manifesto descreveu uma tendência geral decorrente da lógica do capitalismo, que a intervenção estatal não anularia, apenas compensaria. Além disso, nas duas últimas décadas as possibilidades de controle das crises pela ação dos governos (e dos bancos centrais) têm sido mais limitadas do que em geral se supunha durante os chamados "trinta anos gloriosos" do pós-Segunda Guerra, que foi um período excepcional dentro da história do capitalismo. Há muitas indicações de que a economia capitalista mundial se encaminha de novo para uma crise de graves proporções. Em vários setores há um grande excesso de capacidade produtiva (como na indústria automobilística). Claramente, a economia capitalista sofre hoje de "demasiada indústria".

<--break->Ou seja, a visão simplificada da tendência da economia capitalista às crises formulada no Manifesto mostra-se de grande atualidade, mesmo se levamos em conta a capacidade muito maior dos governos de intervirem. E a acuidade da teoria marxista das crises fica ainda mais clara quando comparada com a teoria alternativa da economia convencional, a dos "ciclos econômicos". A teoria marxista mostra que a economia capitalista não é apenas "cíclica" - ela tem uma contradição muito mais profunda que a leva a destruir periodicamente mercadorias e capacidade produtiva.

Uma segunda característica negativa do capitalismo é a de coisificar as relações humanas, "só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do 'pagamento à vista'. (…) [fazer] da dignidade pessoal um simples valor de troca (…)". Esta questão foi depois tratada com muito maior profundidade n'O Capital, a partir das várias passagens em que o fetichismo da mercadoria é abordado.

Este é um traço bastante reconhecido do capitalismo. Não há nenhuma dúvida de que permanece inteiramente atual, e não é preciso desenvolver a argumentação.<--break->

Miséria e alienação

"O produtor passa a ser simples apêndice da máquina, e só se requer dele a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência. (…) Massas de operários, amontoados na fábrica, são organizados militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre, e sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo".

Esses temas decisivos foram retomados no Livro I d'O Capital, nos capítulos sobre a cooperação, a manufatura e a grande indústria, e no capítulo sobre a "lei geral da acumulação capitalista". E aí foram feitos dois acréscimos importantes: o conceito de mais-valia relativa (a extração da mais-valia através de um progresso técnico que barateia os meios de consumo dos trabalhadores), e o de exército industrial de reserva. Com o primeiro, Marx introduz no seu quadro teórico a possibilidade de que os salários dos trabalhadores tenham seu poder aquisitivo ampliado. Com o segundo, enfatiza a tendência permanente de algum nível de desemprego na economia capitalista. Desta maneira, a miséria dos trabalhadores é vinculada ao desemprego. Os empregados podem escapar dela; ficam sujeitos, contudo, à submissão ao despotismo da fábrica.

As frases do Manifesto são um tanto imprecisas, e mesmo O Capital é incompleto, pois não se refere às possibilidades de mudanças na "lei geral" quando se concretiza mais a análise, e se tomam em consideração a organização dos trabalhadores, a legislação e a intervenção do Estado. Mas podemos avaliar o sentido geral da formulação, que é o mesmo n'O Capital e no Manifesto: o desenvolvimento do capitalismo gera a tendência à acumulação de riqueza em um pólo e de miséria (material e moral) no outro.

O crescimento da produtividade do trabalho desde o século passado, a luta sindical e política permitiram um crescimento importante dos salários reais da maioria ou de parte dos trabalhadores (conforme os países). Do mesmo modo, foi reduzida a opressão nas fábricas. Além disso, nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a intervenção do Estado levou a uma grande redução do desemprego, e nos países centrais foram construídos sistemas de proteção contra ele, e contra a pobreza em geral, de modo que a miséria material diminuiu.

Como foi observado acima, o crescimento dos salários reais é uma possibilidade incluída no quadro teórico d'O Capital, embora seja negada no texto do Manifesto. E quanto à redução do problema do desemprego, e à adoção de mecanismos de proteção contra ele e de redução da pobreza, podemos analisá-los como fizemos com a intervenção para amenizar as crises: como acréscimo de aspectos que se contrapõem à tendência mais geral apontada por Marx, que não é portanto anulada, mas apenas compensada.

Por outro lado, também nestas questões devemos assinalar que as décadas mais recentes têm reforçado o quadro pintado por Marx e Engels. Desde 1980 a tendência dos salários reais nos EUA e na maioria dos países centrais (e mais ainda nos demais países) é de queda, apesar de ter prosseguido (mais lentamente) a elevação da produtividade. Em geral, o desemprego voltou a aumentar, e a assumir um caráter catastrófico em muitos países; a proteção social tem sido reduzida. Fala-se em uma "nova pobreza" nos países centrais, enquanto pelo mundo afora a miséria explode. Muitos dos novos métodos empregados para aumentar a produtividade acentuam significativamente o despotismo na fábrica. São fenômenos que a teoria econômica convencional tem grande dificuldade em explicar, e que são perfeitamente inteligíveis no quadro da análise marxista.

<--break->Em resumo: a economia capitalista desenvolve uma capacidade de produzir riqueza que as próprias relações capitalistas obrigam a destruir parcialmente de modo periódico; e estas mesmas relações, além de desumanizarem a sociedade, impedem que a riqueza criada seja aproveitada em benefício de toda a humanidade.

Isto justifica a conclusão do Manifesto, de que o capitalismo deve perecer e que o futuro pertence ao comunismo? Esta é uma discussão mais complicada, porque o que chegou a ser construído como alternativa ao capitalismo (o "socialismo realmente existente", um grosseiro arremedo de comunismo) demonstrou ter problemas maiores, em muitos aspectos, do que o capitalismo.

Mas a questão pode ser colocada da seguinte maneira: a história do capitalismo até hoje confirma seu caráter contraditório básico, apontado no Manifesto. Este caráter decorre diretamente da lógica do mercado e dos capitais. É admissível que a humanidade não possa encontrar uma maneira melhor de organizar sua vida social?

João Machado é professor de Economia na PUC-SP e membro do Diretório Nacional do PT

[fbcomments url="httpsteoriaedebate.org.br/debate/manifesto-comunista-150-anos/" count="off" title=""]