Na “Boca do Lixo”, no centro de São Paulo, região degradada e com uma cultura de rua onde eram comuns a prostituição e o uso e tráfico de drogas, teve início o constante uso e venda de crack no começo dos anos 1990. Rapidamente ganhou o nome “Cracolândia”. Passando seus primeiros dez anos de existência sem nenhuma proposta de intervenção urbana por parte dos governos, foi somente no meio da década passada, junto com um movimento de requalificação da região central, que se iniciaram algumas ações. De lá para cá, ano após ano e diversas gestões no governo estadual e municipal, temos acompanhado medidas que variam um pouco em seus métodos, mas apresentam em comum o desrespeito aos direitos dos usuários que ali frequentam, a violência humilhante usada contra eles, seu caráter pontual e a ausência de qualquer resultado positivo.
Além de usarem métodos repressivos e violentos, algumas foram desastrosas, como a operação repressiva deflagrada em conjunto pelos governos estadual e municipal em 2012, que prendeu parte dos usuários como traficantes, feriu muitos deles. Focadas em seu impacto midiático sobre os eleitores, todas as ações partiam mais da imagem idealizada dos usuários, do seu estigma, do que da realidade dura e sem perspectiva que vive cotidianamente esse grande contingente de pessoas que circulam ou habitam ali.
A Cracolândia é uma territorialidade móvel formada por pessoas vindas dos mais variados locais da região metropolitana. Da mesma forma como ocorre em outros polos de consumo especializados do centro da cidade, como a Rua 25 de Março ou a Santa Efigênia, pessoas dos mais diversos bairros da capital, das cidades metropolitanas, do interior paulista e de todo o Brasil vão à Cracolândia para consumir. Muitos apenas circulam por lá, por horas, dias ou semanas, voltando depois para seu bairro, tendo ainda algum vínculo, mesmo que desgastado, com sua região. Outros, já com vínculos totalmente esgarçados ou rompidos com qualquer outra parte, alguns egressos do sistema prisional, vivem lá o tempo todo.
Ao contrário, porém, do que pensa a opinião pública e propagam os meios de comunicação, as pessoas não vão lá apenas para fumar crack. Ele é um importante elemento desse ambiente, virando até moeda: pode-se comprar muitas outras coisas com ele. Mas, se pode ser encontrado nas mais diversas partes da metrópole, faz sentido as pessoas irem até o centro da cidade apenas para comprá-lo?
Circulando no imaginário dos usuários entre uma “Disneylândia” e um “buraco negro”, a Cracolândia é espaço de sociabilidade, negociação das mais diversas coisas, flerte, moradia e trabalho, como no caso de diversas pessoas que param ali para selecionar o material reciclável coletado durante o dia. Nas palavras dos usuários, “na Cracolândia cabe todo mundo, qualquer um”. Muitos que não se sentem mais pertencentes à cidade constroem com essa região uma relação de pertencimento.
Assim como o crack é apenas mais uma característica dessa complexa região, seu uso problemático é apenas mais um dos elementos que compõem a situação de extrema vulnerabilidade e falta de autocuidado em que está inserida a maioria dos usuários dali. Entre seus frequentadores, temos pessoas das mais diversas classes sociais, idades e origens. No entanto, as pessoas que passam mais tempo ou habitam ali apresentam os mais variados problemas em sua vida – familiares, de saúde, com a Justiça, falta de preparo para o mercado de trabalho, de educação formal, de moradia, de saúde mental, e por aí vai. Na maioria dos casos, muitos estão presentes conjuntamente na vida do indivíduo. Tudo isso, junto a todo o sofrimento cotidiano, conforma uma situação de falta de projeto de vida, de falta de perspectiva de futuro. Assim, o cuidado consigo mesmo, com a própria saúde, fica mais difícil, perdendo inclusive o sentido, para muitos deles.
Distante de tudo isso e sem compreender esse contexto tão específico e complexo, não tinha como qualquer ação anterior dar certo. A atual gestão, do prefeito Fernando Haddad, inova nesse quesito. Abriu um serviço na região, escutou, dialogou com os usuários, e a partir disso propôs o programa De Braços Abertos, que teve início neste janeiro. Em vez de violência e repressão, ofereceu vaga em hotel e frente de trabalho aos habitantes dos barracos da Cracolândia (que na gestão anterior eram removidos a cada dois dias pela limpeza urbana junto com a Guarda Civil Metropolitana e remontados a cada dois dias). Inova também ao não olhar a questão apenas como problema de “dependência de drogas”, não sendo o tratamento ou internação a primeira nem a única coisa a ser ofertada.
Ao não se calcar na abstinência como único caminho, deixando essa escolha a cargo de cada usuário, a prefeitura tenta se nortear pelos princípios da redução de danos, perspectiva pragmática e humana de lidar com os problemas associados ao consumo e venda de drogas mundialmente reconhecida por sua potência e eficiência em lidar com contextos de vulnerabilidade e de difícil acesso. Isso é importante não só para a região, mas para o Brasil como um todo: mostra que é possível oferecer a esses usuários algo diferente de internação e violência, que é importante tentar novas estratégias, em vez de continuar insistindo no mesmo erro.
Frente aos desastres do passado, algo avançou. O desafio, porém, é muito grande. Uma característica de um problema complexo é que um fator não é causa do outro, mas retroage sobre o outro – assim, tudo está interligado. As ações e atividades precisam estar articuladas com a dinâmica do território e entre si. Fácil de dizer, mas, frente ao tamanho, complexidade e diversidade de São Paulo, é preciso um esforço constante e um investimento adequado. Articular as ações na Cracolândia, com uma diversidade de iniciativas governamentais, não governamentais e religiosas, é se complementar, e acima de tudo não se atrapalhar.
É preciso que as políticas das áreas de saúde, assistência social, trabalho, transporte, moradia ajudem, conjuntamente, a construir um projeto de vida. Caso isso não ocorra, as ações terão suprido momentaneamente as necessidades dessas pessoas, não construindo, porém, uma outra inserção na sociedade. Aqueles já contemplados pelo programa na frente de trabalho precisam ser incluídos em projetos de médio e longo prazo que os insiram no mercado de trabalho, dando-lhes alguma estabilidade na vida. Assim como cada um teve um caminho de fracassos e desilusões muito singular para chegar ali, a construção de um caminho para sair dali é único, tendo várias idas e vindas, recaídas, rompimentos, tentativas... É necessário que profissionais acompanhem essa trajetória, e isso leva tempo. Será que se consegue construir políticas públicas estáveis para acompanhá-los nessas tentativas instáveis, em meio a tantas disputas político-partidárias em torno do crack?
Desafio maior que esse é o da articulação entre as ações de acolhimento e integração do usuário com as de segurança e limpeza urbana. Como fazer com que as ações da polícia, em geral violentas, não atrapalhem os outros agentes, como vergonhosamente se viu na ação da Polícia Civil em 23 de janeiro?
Outro ponto que resta sem solução é a qualidade da atenção frente ao enorme contingente populacional que o necessita. O censo da população em situação de rua de São Paulo contou, em 2011, 14.478 pessoas em situação de rua ou albergues. Como fornecer vagas em hotéis sociais para toda essa gente em lugar dos precários albergues, com quartos para dezenas de pessoas, horários restritos, dificultando a organização cotidiana para uma saída da rua?
São todos problemas que já existiam na cidade, mas era mais fácil não olhar. É fundamental tratar de toda essa complexidade com coragem e seriedade para monitorar e modificar o que for necessário. É preciso olhar de frente e buscar de forma ativa o diálogo na construção das políticas, para que essa não seja apenas mais uma ação entre tantas outras que já passaram por lá.
Bruno Ramos Gomes é psicólogo, mestre em Saúde Pública pela USP, coordenador do Centro de Convivência É de Lei