EM DEBATE

O programa De Braços Abertos, iniciado pela Prefeitura de São Paulo em janeiro, na Cracolândia, traz abordagens inovadoras e complexas para o problema da região. A iniciativa considera a humanidade do(a) usuário(a) de crack, superando as linhas convencionais de repressão e internação. Convidamos especialistas que atuam nos campos de saúde e direitos humanos para discutir o programa recém-implantado.

Começando a olhar de frente o problema

Caminhos para avançar nas políticas sobre drogas no Brasil

Da política da guerra e do medo à política da vida e da amizade

Começando a olhar de frente o problema

Na “Boca do Lixo”, no centro de São Paulo, região degradada e com uma cultura de rua onde eram comuns a prostituição e o uso e tráfico de drogas, teve início o constante uso e venda de crack no começo dos anos 1990. Rapidamente ganhou o nome “Cracolândia”. Passando seus primeiros dez anos de existência sem nenhuma proposta de intervenção urbana por parte dos governos, foi somente no meio da década passada, junto com um movimento de requalificação da região central, que se iniciaram algumas ações. De lá para cá, ano após ano e diversas gestões no governo estadual e municipal, temos acompanhado medidas que variam um pouco em seus métodos, mas apresentam em comum o desrespeito aos direitos dos usuários que ali frequentam, a violência humilhante usada contra eles, seu caráter pontual e a ausência de qualquer resultado positivo.

Além de usarem métodos repressivos e violentos, algumas foram desastrosas, como a operação repressiva deflagrada em conjunto pelos governos estadual e municipal em 2012, que prendeu parte dos usuários como traficantes, feriu muitos deles. Focadas em seu impacto midiático sobre os eleitores, todas as ações partiam mais da imagem idealizada dos usuários, do seu estigma, do que da realidade dura e sem perspectiva que vive cotidianamente esse grande contingente de pessoas que circulam ou habitam ali.

A Cracolândia é uma territorialidade móvel formada por pessoas vindas dos mais variados locais da região metropolitana. Da mesma forma como ocorre em outros polos de consumo especializados do centro da cidade, como a Rua 25 de Março ou a Santa Efigênia, pessoas dos mais diversos bairros da capital, das cidades metropolitanas, do interior paulista e de todo o Brasil vão à Cracolândia para consumir. Muitos apenas circulam por lá, por horas, dias ou semanas, voltando depois para seu bairro, tendo ainda algum vínculo, mesmo que desgastado, com sua região. Outros, já com vínculos totalmente esgarçados ou rompidos com qualquer outra parte, alguns egressos do sistema prisional, vivem lá o tempo todo.

Ao contrário, porém, do que pensa a opinião pública e propagam os meios de comunicação, as pessoas não vão lá apenas para fumar crack. Ele é um importante elemento desse ambiente, virando até moeda: pode-se comprar muitas outras coisas com ele. Mas, se pode ser encontrado nas mais diversas partes da metrópole, faz sentido as pessoas irem até o centro da cidade apenas para comprá-lo?

Circulando no imaginário dos usuários entre uma “Disneylândia” e um “buraco negro”, a Cracolândia é espaço de sociabilidade, negociação das mais diversas coisas, flerte, moradia e trabalho, como no caso de diversas pessoas que param ali para selecionar o material reciclável coletado durante o dia. Nas palavras dos usuários, “na Cracolândia cabe todo mundo, qualquer um”. Muitos que não se sentem mais pertencentes à cidade constroem com essa região uma relação de pertencimento.

Assim como o crack é apenas mais uma característica dessa complexa região, seu uso problemático é apenas mais um dos elementos que compõem a situação de extrema vulnerabilidade e falta de autocuidado em que está inserida a maioria dos usuários dali. Entre seus frequentadores, temos pessoas das mais diversas classes sociais, idades e origens. No entanto, as pessoas que passam mais tempo ou habitam ali apresentam os mais variados problemas em sua vida – familiares, de saúde, com a Justiça, falta de preparo para o mercado de trabalho, de educação formal, de moradia, de saúde mental, e por aí vai. Na maioria dos casos, muitos estão presentes conjuntamente na vida do indivíduo. Tudo isso, junto a todo o sofrimento cotidiano, conforma uma situação de falta de projeto de vida, de falta de perspectiva de futuro. Assim, o cuidado consigo mesmo, com a própria saúde, fica mais difícil, perdendo inclusive o sentido, para muitos deles.

Distante de tudo isso e sem compreender esse contexto tão específico e complexo, não tinha como qualquer ação anterior dar certo. A atual gestão, do prefeito Fernando Haddad, inova nesse quesito. Abriu um serviço na região, escutou, dialogou com os usuários, e a partir disso propôs o programa De Braços Abertos, que teve início neste janeiro. Em vez de violência e repressão, ofereceu vaga em hotel e frente de trabalho aos habitantes dos barracos da Cracolândia (que na gestão anterior eram removidos a cada dois dias pela limpeza urbana junto com a Guarda Civil Metropolitana e remontados a cada dois dias). Inova também ao não olhar a questão apenas como problema de “dependência de drogas”, não sendo o tratamento ou internação a primeira nem a única coisa a ser ofertada.

Ao não se calcar na abstinência como único caminho, deixando essa escolha a cargo de cada usuário, a prefeitura tenta se nortear pelos princípios da redução de danos, perspectiva pragmática e humana de lidar com os problemas associados ao consumo e venda de drogas mundialmente reconhecida por sua potência e eficiência em lidar com contextos de vulnerabilidade e de difícil acesso. Isso é importante não só para a região, mas para o Brasil como um todo: mostra que é possível oferecer a esses usuários algo diferente de internação e violência, que é importante tentar novas estratégias, em vez de continuar insistindo no mesmo erro.

Frente aos desastres do passado, algo avançou. O desafio, porém, é muito grande. Uma característica de um problema complexo é que um fator não é causa do outro, mas retroage sobre o outro – assim, tudo está interligado. As ações e atividades precisam estar articuladas com a dinâmica do território e entre si. Fácil de dizer, mas, frente ao tamanho, complexidade e diversidade de São Paulo, é preciso um esforço constante e um investimento adequado. Articular as ações na Cracolândia, com uma diversidade de iniciativas governamentais, não governamentais e religiosas, é se complementar, e acima de tudo não se atrapalhar.

É preciso que as políticas das áreas de saúde, assistência social, trabalho, transporte, moradia ajudem, conjuntamente, a construir um projeto de vida. Caso isso não ocorra, as ações terão suprido momentaneamente as necessidades dessas pessoas, não construindo, porém, uma outra inserção na sociedade. Aqueles já contemplados pelo programa na frente de trabalho precisam ser incluídos em projetos de médio e longo prazo que os insiram no mercado de trabalho, dando-lhes alguma estabilidade na vida. Assim como cada um teve um caminho de fracassos e desilusões muito singular para chegar ali, a construção de um caminho para sair dali é único, tendo várias idas e vindas, recaídas, rompimentos, tentativas... É necessário que profissionais acompanhem essa trajetória, e isso leva tempo. Será que se consegue construir políticas públicas estáveis para acompanhá-los nessas tentativas instáveis, em meio a tantas disputas político-partidárias em torno do crack?

Desafio maior que esse é o da articulação entre as ações de acolhimento e integração do usuário com as de segurança e limpeza urbana. Como fazer com que as ações da polícia, em geral violentas, não atrapalhem os outros agentes, como vergonhosamente se viu na ação da Polícia Civil em 23 de janeiro?

Outro ponto que resta sem solução é a qualidade da atenção frente ao enorme contingente populacional que o necessita. O censo da população em situação de rua de São Paulo contou, em 2011, 14.478 pessoas em situação de rua ou albergues. Como fornecer vagas em hotéis sociais para toda essa gente em lugar dos precários albergues, com quartos para dezenas de pessoas, horários restritos, dificultando a organização cotidiana para uma saída da rua?

São todos problemas que já existiam na cidade, mas era mais fácil não olhar. É fundamental tratar de toda essa complexidade com coragem e seriedade para monitorar e modificar o que for necessário. É preciso olhar de frente e buscar de forma ativa o diálogo na construção das políticas, para que essa não seja apenas mais uma ação entre tantas outras que já passaram por lá.

Bruno Ramos Gomes é psicólogo, mestre em Saúde Pública pela USP, coordenador do Centro de Convivência É de Lei

Caminhos para avançar nas políticas sobre drogas no Brasil

O nome do programa De Braços Abertos, lançado em janeiro pelo prefeito Fernando Haddad para tentar dar conta da complexa dinâmica das cenas abertas de consumo de crack em São Paulo, foi dado pelos próprios usuários. Esse é um aspecto simbólico que marca uma mudança em relação às tradicionais abordagens empreendidas pelo poder público na região da chamada “Cracolândia”. Há seis meses, a partir de um equipamento-piloto da saúde instalado pela prefeitura nos arredores da Rua Helvétia, teve início o estabelecimento de vínculos com os usuários, com a oferta de comida, acesso a banheiros, além de atividades terapêuticas, festivas e culturais. Orientadas pelos princípios das estratégias de redução de danos, as equipes da prefeitura, para além dos possíveis encaminhamentos às redes de atenção, oferecem ali importante espaço de escuta para os usuários.

A confiança mútua resultante dessa convivência pôde ser verificada já nos primeiros momentos da nova etapa de ações, que expande a gama de apoios ofertada e marca o início oficial do programa: foram os próprios usuários que, em conjunto com agentes da prefeitura, desmontaram seus barracos para ser acolhidos nas pensões e hotéis contratados na região. Não houve violência. No dia seguinte, começaram as atividades de trabalho, formação, além de prosseguirem as ações das equipes da assistência social, dos direitos humanos, do trabalho e da saúde, esta com a missão de desenvolver projetos individualizados de tratamento não compulsório.

Tanto as cenas da retirada dos barracos como as de usuários uniformizados e em ação nos dias seguintes têm surpreendido a população e a imprensa, sobretudo quando contrapostas às intervenções anteriores, comandadas pela administração Kassab e Alckmin, que em 2012 propôs como estratégia, publicamente e sem pudor, visar proporcionar “dor e sofrimento” insuportáveis aos usuários. Por vários dias, além de sofrer ações truculentas da cavalaria da PM, os dependentes químicos foram deliberadamente impedidos de sentar, ficar parados ou dormir. A teoria era que isso os afastaria da droga. O então coordenador de políticas sobre drogas do estado afirmava ser impossível dialogar com um usuário de crack ou convencê-lo de qualquer coisa. A tortura lhes pareceu o caminho. Fracassaram.

As avaliações sobre os primeiros quinze dias do programa atual apontam: redução do uso, adesão voluntária de boa parte dos participantes a tratamentos de saúde, movimentos de reintegração familiar, demandas expressas por reinserção ou inserção qualificada no mercado de trabalho e por formação escolar, busca por outras formas de lazer e prazer além das possíveis pelo uso de drogas legais ou ilegais.

Ao receber o primeiro pagamento pelo trabalho, a maioria revelou projetos de economizar para adquirir objetos de uso pessoal, como roupas, material de limpeza e cosméticos, ou fez planos de poupança para aquisição de eletrodomésticos etc. Não houve corrida coletiva ao crack. E assim, de suposto único desejo-opção, a pedra começa a deixar de ser central para o conjunto dos participantes, ainda que não tenham interrompido seu consumo, como também era esperado.

Em setembro de 2013, o governo federal liberou os dados da maior e mais confiável pesquisa já realizada sobre o crack no país, coordenada pela Fiocruz. O levantamento traz importantes indicações sobre o real tamanho do problema, além de caminhos claros de abordagem.

Entre tantas constatações interessantes está a de não ser a Região Sudeste a que concentra o maior número de usuários, e sim a Nordeste. A pesquisa indica não ter havido, nos últimos anos, uma explosão do consumo médio da cocaína fumada ou aspirada no país, como afirmaram levantamentos pouco confiáveis, mas bastante discutidos na imprensa. O drama do crack, forma fumável da cocaína, reside sobretudo na chegada dessa droga a um público extremamente vulnerável, que, justamente por sua maior fragilidade, não foi, ou não pôde ser, incluído no amplo processo de avanços sociais dos últimos anos, desafiando os gestores públicos.

A Fiocruz verificou ainda, ao questionar sobre os desejos dos usuários e suas expectativas sobre as políticas públicas, demandas expressas por trabalho, alimentação, moradia e tratamento de forma majoritária entre os usuários de todo o país.

Temos, portanto, importantes indicações de que a abordagem sobre drogas no Brasil precisa consolidar caminhos centrados na promoção de direitos, retirando o foco sobre a substância consumida.

A temática do crack foi trazida ao debate eleitoral em 2010, sendo absorvida pelo governo Dilma como prioridade política e administrativa. Em 2011, foi lançado o programa Crack, É Possível Vencer, que inclui investimentos federais nas áreas de saúde, assistência e segurança. Apesar da enorme mobilização produzida, o plano nacional, ainda que represente avanços nas redes de atenção, revelou pouquíssimo apreço por iniciativas, tanto de prevenção como de reabilitação, com foco no trabalho ou promoção de outros direitos, como moradia. Também jamais deixou claro sua tônica política para o tema, abstendo-se de condenar abordagens eminentemente coercitivas empreendidas Brasil afora – salvo iniciativas e reações do campo de saúde mental no governo, que, valendo-se da legítima história antimanicomial, manteve-se alerta e expressou suas preocupações, partilhadas com os movimentos sociais da saúde e dos direitos humanos naquele período.

As reações violentas contrárias ao programa De Braços Abertos, como a invasão truculenta da Polícia Civil do estado de São Paulo na região já na primeira semana, deixam claro quais são os campos políticos em disputa. Apresentam-se na arena visões historicamente divergentes sobre pobreza e sofrimento.

Vivemos uma grande oportunidade. O debate sobre exclusão, criminalização da pobreza e direitos sociais ganha maior concretude para a temática das drogas no Brasil, sendo incontornável que adquira centralidade na retórica e nas ações federais.

Aldo Zaiden é psicanalista e membro da Rede Pense Livre. Foi coordenador Nacional de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e representante do Ministério da Saúde no Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas durante o governo Dilma.

Da política da guerra e do medo à política da vida e da amizade

A política sobre drogas adotada pelo Estado brasileiro e aplicada nos mais diferentes pontos do país revela-se como mera repetição de escolhas equivocadas, comprovadamente ineficazes e mortíferas. Orientado pela utopia de um mundo sem drogas, pelo lema de guerra contra elas e de uma incisiva e alarmante campanha de enfrentamento ao crack, esse projeto esconde uma verdade: a droga faz parte da natureza e da cultura humana, e é mero objeto. Portanto, a guerra proposta não se dirige às drogas, mas às pessoas; o combate é contra os que usam, produzem e comercializam substâncias consideradas ilícitas pela sociedade.

Mesmo distante da realidade e causador de mortes e violência, esse eixo continua a orientar a imensa maioria das ações públicas nesse campo e faz da reverberação do medo e da insegurança pública uma estratégia de sustentação e continuidade. Uma receita falida, questionada por organismos internacionais, que continua a ser prescrita como solução para a problemática das drogas, reeditando sempre o mesmo discurso e a mesma fórmula: aumento da repressão, recrudescimento das penas, segregação e exclusão.

Também nesse sentido, o Poder Legislativo junta-se a esse discurso em tristes e lamentáveis intervenções. Empenhados na luta contra o crack, parlamentares de praticamente todos os partidos, em todo o país, das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional, constituíram comissões especiais para enfrentar a pedra, e declararam guerra à democracia. O Parlamento brasileiro apressou-se em dar respostas ao drama nacional, e compreendeu ser necessário revisar a lei de drogas de 2006 (Lei nº 11.343), cujo resultado foi tornar ainda pior o que já não era bom! O projeto de lei induz à construção de um regulamento legal ainda mais arcaico e punitivo, colocando o Brasil na contramão das diretrizes internacionais e das experiências mais inovadoras e exitosas nessa área, além de introduzir uma novidade: a privatização da assistência em saúde, ao explicitar e incorporar como artigo dessa lei o evidente interesse em criar mecanismos legais para justificar o financiamento de instituições privadas e de caráter religioso.

Num mesmo gesto, Parlamento e governo desrespeitam o princípio constitucional da laicidade do Estado e comprometem o avanço de importantes políticas públicas, dentre as quais a saúde e a assistência social, alimentando uma campanha de produção do medo cujo mote central foi a construção, ilusória, da existência de uma epidemia de consumo de crack.

Durante pelo menos três anos o país conviveu com a fantasia de estar submetido à expansão do consumo de crack. E o que se verificou, em pesquisa realizada em todo o país pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), desautoriza tal afirmação. Mesmo que expressivo e preocupante o número de usuários (370 mil), não se pode afirmar a existência de uma epidemia, tendo em vista a inexistência de indicadores que confirmem essa hipótese, não ser essa a substância mais consumida e não possuir o crack a capacidade de autopropagação.

Além disso, a pesquisa revela um dado dramático: a sétima economia mundial deixa de fora dos benefícios civilizatórios milhares de brasileiros. O retrato que nos apresenta desvela a face, sempre cruel e ainda atual, do abandono e da miséria. E, quando cruzamos os dados dessa realidade com os da população carcerária e com os das mortes violentas, encontramos os mesmos: eles são jovens, pobres e negros e têm baixa escolaridade. Diante disso, não há como negar que a desigualdade de acesso continua a estruturar as relações sociais e a determinar destinos no Brasil.

Lufada de ar que dissipou muitas brumas, a pesquisa fez um achado precioso: a “Cracolândia” é uma ficção. Antes dela, imprensa e governos nos levavam a crer na existência real e concreta desses territórios. Ou melhor, escondiam sob essa nomeação o esquecimento e o descaso públicos com as vidas que ali se encontravam e se expunham, localizadas nas metrópoles do Sudeste, onde, é preciso lembrar, não se encontra o maior percentual de consumidores dessa substância.

Além de abandono e descaso, as cracolândias foram palco de ações truculentas, autoritárias e policialescas. Todas, justificadas pelo horror ao crack, pela incapacidade de decisão e pensamento supostamente ocasionada pelo uso dessa substância – e desmentida pelos usuários, conforme apurou a pesquisa –, disseminaram-se país afora e ensejaram a produção de pedidos judiciais de internação, transformando um procedimento terapêutico excepcional, a internação, em política e prática punitiva. Um grave e prejudicial equívoco, cujo impacto social foi, tão somente, o aumento da dor e o desrespeito à democracia. Não é possível esquecer a morte por atropelamento do menino carioca durante ação da Secretaria Municipal de Assistência Social: é efeito, direto, da ação pública. Ele não morreu de overdose, mas de pânico e horror. Seu encontro com a morte foi precipitado pela ação pública que deveria proteger sua vida.

“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta, esfria, aperta e afrouxa. E, sobretudo, pede-nos coragem.” Ensinamento que recolhemos da lírica rosiana sobre o lugar do sertão, sobre a experiência do abandono, do sofrimento, da morte à espreita da vida, e do frescor cristalino que toda vereda esconde e oferta.

No sertão moderno e urbano, em um de seus pontos mais áridos, a Cracolândia, a vida é encoberta pela visibilidade extrema e preconceituosa. Congeladas em referências marginais, as vidas aí presentes desaparecem sob o peso das nomeações que desenham o rosto da monstruosidade, do risco e do perigo.

Algo precisa mudar, de fato. Não é possível seguir adiante, como sociedade, mantendo a exclusão como elemento estruturante. E será preciso lembrar que na Cracolândia encontram-se sujeitos de direitos, e o acesso a estes deve ser propiciado pelo Estado e pela sociedade também para eles.

E, enfim, surge uma boa novidade. Eis que o município de São Paulo nos surpreende e constrói uma saída diferente, de braços abertos. Vale registrar: esse mesmo solo já nos deu um dos piores exemplos – a operação dor e sofrimento –, e numa virada inesperada sugere que a dignidade deve e pode orientar a relação de um gestor com a cidade e os cidadãos. Fica o desejo de indagar, mais uma vez com Guimarães Rosa, ao prefeito Haddad: “Tiveste medo?” E com ele responder: sim! “O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem.” E, no desafio ao medo, redescobrir que a coragem é invenção e instrumento, às vezes único, de que dispomos para enfrentar o medo.

O gesto paulistano tem, para expectadores de seu desenrolar, um dado absolutamente singular e audaz. Nessa empreitada, ao contrário do prescrito, até pelas mais belas almas, o tratamento não é requisito nem porta de entrada na experiência. Está localizado noutro ponto, num outro momento, no instante da descoberta, possível, de uma pergunta que angustia e abre a perspectiva para outras construções. Mas, sobretudo, o tratamento, como bem de cidadania que deve ser, vem incluído no acesso a direitos e à dignidade. Não é prescrito para normatizar e adequar, mas, ao longo de cada percurso subjetivo, ajudar os cidadãos a se constituírem como donos de sua subjetividade e autores de seu destino.

Uma ousadia que choca e causa perplexidade. Alguns tentam reduzir o gesto à mera e ingênua caridade; outros afirmam que não passa de uma resposta institucional, planejada dentro de um modelo que busca, apenas de uma forma diferente, limpar e retirar as pessoas do local. De nossa parte, entendemos que ali se vislumbra a possibilidade de resgate do pressuposto de uma clínica cidadã: o acesso a direitos é condição prévia a qualquer tratamento. E propõe mais: a aposta na restituição da delicadeza no trato como motor da construção terapêutica. Para tratar, efetivamente, o sofrimento humano e urbano que as adições tão bem expressam em nossas ruas, há que ser delicado, cuidadoso e, portanto, capaz de construir o invisível laço, o vínculo transferencial, por onde circulam a suposição de um saber e a confiança no cuidado, o alívio para o sofrimento e a construção de outras soluções para o mal-estar. Sem isso, a prática psi e sanitária nada mais é que intervenção autoritária, higienista.

E ainda que não se conclua nos moldes dos filmes hollywoodianos, com final feliz para todos, a ação em si é vitoriosa. Demonstra ousadia e coragem, soube inovar e estabelecer uma diferença possível no trato da questão ao apostar nos sujeitos e no vínculo, e não em remédios idealizados, em internações milagrosas, na força e na violência.

Outro dado importante que a experiência reverte é a aposta e exigência da abstinência como indicador de resultado e condição de entrada e participação no projeto. Nunca é demais lembrar: abstinência é excesso de privação, e quando imposta por outro, e não escolhida pelo sujeito, torna-se uma medida severa, irreal e punitiva.

A temporalidade veloz da modernidade não permite aos sujeitos estabelecer referências, laços que o atem a um passado, à memória, e a construção de um futuro que não seja mera repetição de cenas fugazes, instantâneos desarticulados. Sujeitos, nos dizeres de Maria Rita Kehl, “esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo (...), incapazes de imaginar um devir que não seja a reprodução da temporalidade encurtada, característica do capitalismo contemporâneo”. Neste tempo, no qual homens e coisas são descartáveis, vidas tão insignificantes – vidas matáveis, diria Agamben – tiveram, na oferta de “braços públicos abertos”, a possibilidade de instaurar um intervalo, sair da cena pública, conquistar, de novo, a privacidade, cuidar de si, enlaçar-se a um projeto de trabalho e vida, ou seja, um intervalo não só do consumo, mas da falta de cidadania e suas duras consequências.

Na contramão da engrenagem, trava-se, com essa e tantas outras microexperiências de resistência, um embate no campo da cultura que busca desconstruir verdades ditas científicas e jurídicas, mas, acima de tudo, morais, para humanizar as drogas. Tão recente, pouco mais de cem anos de criminalização, mas tão danosa é essa escolha que faz de simples substâncias fontes de perigo e ameaça e dos que as utilizam, produzem e vendem os párias de uma sociedade que busca formas instantâneas de felicidade, de evitação de qualquer expressão de sofrimento e angústia e experimentação da alegria e do prazer. Uma sociedade que investe nas estratégias de alienação e anestesia, que não sonha com futuros e quer que os sujeitos sigam o que dita o capital: simples mercadoria.

Drogas são vias de acesso ao conhecimento. Nem todo uso é prejudicial; a imensa maioria dos que usam não são dependentes. E o traficante não é o menino pobre que foge todos os dias da polícia. Ele não mora em nenhuma favela. Esconde-se atrás de outro véu: o do poder econômico e político.

Atravessada a prova, inaugura-se a experiência que optou, pelo menos até o momento, em recusar o medo como estratégia de poder, que está indo além das receitas óbvias de intimidação, repressão e sequestro, rompendo com essa cadeia de transmissão para abrir as vias e cantos de uma cidade ao pertencimento e circulação de todos. Onde a dor encontra endereço e lugar, mas é a vida que ganha e merece destaque. E nos ocorre concluir com Riobaldo, reafirmando, nas palavras do jagunço-filósofo, que “enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero – é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim".

Que os braços de São Paulo continuem a sustentar a abertura que dá acesso à vida e à cidadania, a tecer os laços e superar a política do medo para instaurar a cidade como espaço do viver e da amizade.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

FIOCRUZ. Fundação Oswaldo Cruz. “Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do país”. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em http://www.casacivil.gov.br/noticias/estimativa-capitais.pdf.

KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo Editora, 2009.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.

Miriam Abou-Yd é psiquiatra, psicóloga e militante do Fórum Mineiro de Saúde Mental e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila).

Rosimeire Silva é psicóloga, trabalha no Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é militante do Renila e mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

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