A tendência hegemônica no PT acredita que o Estado é o principal instrumento da ação política transformadora, e por isso concentra sua energia na disputa por poder e espaço no governo/Estado. Sua estratégia é eleitoral, visando ganhar o governo com o qual viabilizaria a transformação social entendida como efetivação de direitos sociais. A participação política da classe trabalhadora se resume aos processos eleitorais e, quando o partido assume o governo, aos canais institucionais temáticos de consulta (conferências) ou de representação (conselhos).
A teoria mais refinada dessa tendência hegemônica (de ideias, registro) é a tese da revolução democrática. Em sua expressão mais consequente fala em radicalizar a democracia e na sua expressão mais centrista na efetivação de direitos sociais, quase todos constitucionalizados ou expressos em leis. Marginalmente, alguns desinformados acreditam que isso é socialismo.
Essa tendência dialoga fortemente com a formação cultural brasileira que vê o Estado como promotor e garantidor de direitos sociais, donde seu sucesso eleitoral e governamental. E tem pouco ou nada a ver com a perspectiva autônoma, autoeducativa e empoderadora da conquista e garantia de direitos e espaços de poder pela luta social, política e cultural da classe trabalhadora. Enfim, essa tendência tem a ver com democracia e nada a ver com revolução e, menos ainda, com socialismo.
Essa tendência hegemônica conduziu o PT a vitórias importantes, haja vista as conquistas dos últimos doze anos. Virou a cara do partido para a sociedade. Resistiu bravamente quando o principal alvo da direita foi o partido, em 2005, no episódio do chamado “mensalão”, ao preço de ver cortadas suas principais cabeças pensantes e de assistir ao superdimensionamento do protagonismo de Lula e seu papel carismático de falar diretamente para as massas – o que na visão hegemônica desobrigava o partido de organizar as massas trabalhadoras não incorporadas nas organizações sindicais e populares e promover encapsulamento destas à luta de classes econômica –, combinado com a ampliação da frente de classes e de partidos políticos de sustentação do governo. É o lulismo.
Quando o projeto de governo entrou em crise, em 2014, o arcabouço político-social lulista se quebrou de alto a baixo. No andar de cima, do capital financeiro, que em 2012 e 2013 se sentiu afrontado com a política econômica de Dilma de redução da taxa Selic e do spread bancário e, depois, com a redução do superávit primário; do agronegócio, com perda de apoio; da grande mídia, com o aguçamento do ativismo político etc. No andar do meio, pela sensação de perda das camadas médias tradicionais, que se radicalizaram no antipetismo. E no andar de baixo, pela debandada da Força Sindical.
No plano político perdeu força à direita (divisão do PMDB) e à esquerda, com a apartação do PSB e do PDT, com visões críticas ao governo, criando condições difíceis de enfrentamento no terreno eleitoral. A direita cresceu, alavancada pelas denúncias de corrupção da Operação Lava Jato, e Dilma só foi vitoriosa em 2014 em função da memória das conquistas sociais do governo no seio da classe trabalhadora de menor renda e de um discurso mais à esquerda no enfrentamento dos candidatos da direita, retendo parte da classe média e dos trabalhadores organizados, atraindo a militância petista arredia e a militância dos movimentos sociais.
Mudou-se a qualidade da luta de classes, em desfavor do PT e da classe trabalhadora; e aqueles e aquelas que se guiavam pela tendência hegemônica, e os que a guiavam, não perceberam que ela tinha perdido eficácia, gastando um tempo precioso na disputa de espaço no governo, na ilusão de que assim, como antes, teriam condições de enfrentar a crise sem mobilização popular.
Por sua vez, a presidente Dilma, seguindo a tendência hegemônica, tenta se recompor com o mercado financeiro, o agronegócio e o grande capital, cedendo-lhes postos importantes no ministério e baixando um ajuste fiscal que reduz direitos trabalhistas. Sofre a crítica das esquerdas, do movimento sindical e popular de que tentara se aproximar. A direita dobra a aposta, isola o PT e coloca o governo em minoria no Congresso Nacional, sob a batuta direitista do PMDB, e chama a manifestação de rua do dia 15 de março, repicada no dia 12 de abril, pondo na ordem do dia o impedimento da presidenta Dilma.
Sobre pressão intensa, a direção do PT adota a proposta de uma frente de partidos e movimentos sociais que fica tensionada com o pacote fiscal de Dilma. Foi quando a tendência sindicalista, via CUT, tomou a iniciativa de convocar a manifestação do dia 13 de março, em aliança com outros movimentos sociais, especialmente o MST e a UNE, combinando a crítica ao pacote fiscal do governo e a defesa da constitucionalidade. A partir daí a tendência hegemônica tende a não ser mais hegemônica. E agora?
Há no PT uma diversidade de tendências não hegemônicas que reflete a luta de classes, as lutas da cidadania, a luta cultural e comportamental. Essas tendências estão no jogo. Identifico dois grupos: as tendências não hegemônicas críticas (à tendência hegemônica) que se referenciam nas ideias fundantes do PT: autodefinição socialista e estratégia combinando ação do Estado e ação das massas; e as tendências não hegemônicas que se referenciam nas lutas sociais e da cidadania hegemônica (sindicalista, camponesa, feminista, LGBT, de igualdade racial, ecossocialista etc.), algumas críticas e outras não críticas à tendência hegemônica. Sobre algumas dessas tendências farei breves referências.
A principal tendência não hegemônica crítica é a que afirma os conceitos socialistas fundantes do PT e a estratégia transformadora que combina ação via Estado e ação autônoma da classe trabalhadora. Afirma o processo eleitoral e também a pressão de massa. Afirma a democracia, sem igualá-la à revolução, e não separa revolução de socialismo. O sucesso da tendência hegemônica (no âmbito eleitoral e governamental) determinou sua perda de influência tanto na sociedade quanto no partido. E sua tentativa de disputar no terreno eleitoral e partidário fez diminuir sua potência política. Mesmo seu segmento que não fez essa disputa também se viu reduzido.
A principal tendência não hegemônica não crítica é a sindicalista, que já foi hegemônica no passado. Defende o sindicato como principal instrumento de luta da classe trabalhadora, no qual disputa direção e burocracia e garante sua reprodução independente do Estado. Sua estratégia política é a greve geral. Em sua visão mais à esquerda, o Estado/governo deveria cumprir seu programa mínimo; e, mais ao centro, o Estado/governo deve atender à conquista de suas reivindicações ou favorecê-las – e o partido apoiar ou assumir suas lutas. Com a iniciativa da CUT de chamar a manifestação do dia 13 de março, essa tendência sindical atravessou o Rubicão que a manteve distanciada do protagonismo político por submissão à tendência hegemônica, e muitos, como eu, torcem para que juntos “marchemos sobre Roma”.
A segunda tendência não hegemônica do PT mais importante é a tendência feminista, antipatriarcal, anti-hegemônica, acrítica na política. Sua ala mais à esquerda se reúne sob o signo de “socialismo sem feminismo não é socialismo” e sua ala mais centrista visa conquistar igualdade de direitos na sociedade capitalista. Tem conquistas a comemorar, na esfera da sociedade, do Estado e do partido. Neste, particularmente, sua conquista da participação paritária em todas as instâncias e órgãos partidários foi a maior mudança operada no interior do PT nos últimos quinze ou vinte anos, até agora não bem digerida por alguns agrupamentos.
A terceira tendência não hegemônica que destacaria é a LGBT. Anti-hegemônica, conseguiu maior avanço na sociedade do que no partido, quebrou barreiras. Com a feminista, está realizando uma verdadeira revolução cultural na esfera dos costumes, dos valores da identidade humana, que ainda não se refletiu na devida proporção na política e no partido.
A quarta tendência não hegemônica que gostaria de ressaltar é a socioambientalista. Sua versão mais elaborada, ecossocialista, é anti-hegemônica na sociedade, no Estado e no partido. Mas não consegue se expressar enquanto tal no PT.
Isso tudo tem a ver com a crise e com a saída da crise.
É justo e correto identificar e criticar a tendência hegemônica e os agrupamentos internos que lhe dão sustentação como os principais responsáveis pela crise do partido e em parte pela crise de governo – sem descurar da responsabilidade solidária de todos e todas. Essa crítica não pode se resumir à perda de sua eficácia, porque seria um modo de afirmá-la. Há que criticar o que centralmente tem de errado, para negá-la: o não reconhecimento do protagonismo da classe trabalhadora na estratégia transformadora da sociedade, como fala o Manifesto de fundação do PT, e a negação de que se possa construir uma sociedade socialista apenas pela via das instituições do Estado, como afirma a resolução do VII Encontro Nacional sobre o Socialismo Petista.
E o partido, também, como espelho incompleto mas verdadeiro da classe trabalhadora, se expressa nessa diversidade de tendências de ideias, comportamentos, falas, modos de ser, não adequadamente valorada pelo PT. Nem adequadamente representada por agrupamentos que, quase todos, são mesclas de ideias, comportamentos, falas e teses que às vezes não guardam coerência interna e nem sempre correspondem às suas práticas. Não se muda facilmente tudo isso, mas há sinais de mudança no ar, ou melhor, nas ruas.
Gilney Amorim Viana é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo