EM DEBATE

Com a trajetória de partido e governo alcançada até agora, o PT precisa atualizar seu programa, seu conhecimento e sua compreensão da sociedade brasileira, das forças políticas e sociais emergentes e da situação do país no cenário internacional. E precisa traduzir esse processo que clama por mudanças em política efetiva. Essa questão fundamental está colocada nos debates do V Congresso.

As tendências e a crise

O partido precisa de mudanças profundas

As tendências e a crise

A tendência hegemônica no PT acredita que o Estado é o principal instrumento da ação política transformadora, e por isso concentra sua energia na disputa por poder e espaço no governo/Estado. Sua estratégia é eleitoral, visando ganhar o governo com o qual viabilizaria a transformação social entendida como efetivação de direitos sociais. A participação política da classe trabalhadora se resume aos processos eleitorais e, quando o partido assume o governo, aos canais institucionais temáticos de consulta (conferências) ou de representação (conselhos).

A teoria mais refinada dessa tendência hegemônica (de ideias, registro) é a tese da revolução democrática. Em sua expressão mais consequente fala em radicalizar a democracia e na sua expressão mais centrista na efetivação de direitos sociais, quase todos constitucionalizados ou expressos em leis. Marginalmente, alguns desinformados acreditam que isso é socialismo.

Essa tendência dialoga fortemente com a formação cultural brasileira que vê o Estado como promotor e garantidor de direitos sociais, donde seu sucesso eleitoral e governamental. E tem pouco ou nada a ver com a perspectiva autônoma, autoeducativa e empoderadora da conquista e garantia de direitos e espaços de poder pela luta social, política e cultural da classe trabalhadora. Enfim, essa tendência tem a ver com democracia e nada a ver com revolução e, menos ainda, com socialismo.

Essa tendência hegemônica conduziu o PT a vitórias importantes, haja vista as conquistas dos últimos doze anos. Virou a cara do partido para a sociedade. Resistiu bravamente quando o principal alvo da direita foi o partido, em 2005, no episódio do chamado “mensalão”, ao preço de ver cortadas suas principais cabeças pensantes e de assistir ao superdimensionamento do protagonismo de Lula e seu papel carismático de falar diretamente para as massas – o que na visão hegemônica desobrigava o partido de organizar as massas trabalhadoras não incorporadas nas organizações sindicais e populares e promover encapsulamento destas à luta de classes econômica –, combinado com a ampliação da frente de classes e de partidos políticos de sustentação do governo. É o lulismo.

Quando o projeto de governo entrou em crise, em 2014, o arcabouço político-social lulista se quebrou de alto a baixo. No andar de cima, do capital financeiro, que em 2012 e 2013 se sentiu afrontado com a política econômica de Dilma de redução da taxa Selic e do spread bancário e, depois, com a redução do superávit primário; do agronegócio, com perda de apoio; da grande mídia, com o aguçamento do ativismo político etc. No andar do meio, pela sensação de perda das camadas médias tradicionais, que se radicalizaram no antipetismo. E no andar de baixo, pela debandada da Força Sindical.

No plano político perdeu força à direita (divisão do PMDB) e à esquerda, com a apartação do PSB e do PDT, com visões críticas ao governo, criando condições difíceis de enfrentamento no terreno eleitoral. A direita cresceu, alavancada pelas denúncias de corrupção da Operação Lava Jato, e Dilma só foi vitoriosa em 2014 em função da memória das conquistas sociais do governo no seio da classe trabalhadora de menor renda e de um discurso mais à esquerda no enfrentamento dos candidatos da direita, retendo parte da classe média e dos trabalhadores organizados, atraindo a militância petista arredia e a militância dos movimentos sociais.

Mudou-se a qualidade da luta de classes, em desfavor do PT e da classe trabalhadora; e aqueles e aquelas que se guiavam pela tendência hegemônica, e os que a guiavam, não perceberam que ela tinha perdido eficácia, gastando um tempo precioso na disputa de espaço no governo, na ilusão de que assim, como antes, teriam condições de enfrentar a crise sem mobilização popular.

Por sua vez, a presidente Dilma, seguindo a tendência hegemônica, tenta se recompor com o mercado financeiro, o agronegócio e o grande capital, cedendo-lhes postos importantes no ministério e baixando um ajuste fiscal que reduz direitos trabalhistas. Sofre a crítica das esquerdas, do movimento sindical e popular de que tentara se aproximar. A direita dobra a aposta, isola o PT e coloca o governo em minoria no Congresso Nacional, sob a batuta direitista do PMDB, e chama a manifestação de rua do dia 15 de março, repicada no dia 12 de abril, pondo na ordem do dia o impedimento da presidenta Dilma.

Sobre pressão intensa, a direção do PT adota a proposta de uma frente de partidos e movimentos sociais que fica tensionada com o pacote fiscal de Dilma. Foi quando a tendência sindicalista, via CUT, tomou a iniciativa de convocar a manifestação do dia 13 de março, em aliança com outros movimentos sociais, especialmente o MST e a UNE, combinando a crítica ao pacote fiscal do governo e a defesa da constitucionalidade. A partir daí a tendência hegemônica tende a não ser mais hegemônica. E agora?

Há no PT uma diversidade de tendências não hegemônicas que reflete a luta de classes, as lutas da cidadania, a luta cultural e comportamental. Essas tendências estão no jogo. Identifico dois grupos: as tendências não hegemônicas críticas (à tendência hegemônica) que se referenciam nas ideias fundantes do PT: autodefinição socialista e estratégia combinando ação do Estado e ação das massas; e as tendências não hegemônicas que se referenciam nas lutas sociais e da cidadania hegemônica (sindicalista, camponesa, feminista, LGBT, de igualdade racial, ecossocialista etc.), algumas críticas e outras não críticas à tendência hegemônica. Sobre algumas dessas tendências farei breves referências.

A principal tendência não hegemônica crítica é a que afirma os conceitos socialistas fundantes do PT e a estratégia transformadora que combina ação via Estado e ação autônoma da classe trabalhadora. Afirma o processo eleitoral e também a pressão de massa. Afirma a democracia, sem igualá-la à revolução, e não separa revolução de socialismo. O sucesso da tendência hegemônica (no âmbito eleitoral e governamental) determinou sua perda de influência tanto na sociedade quanto no partido. E sua tentativa de disputar no terreno eleitoral e partidário fez diminuir sua potência política. Mesmo seu segmento que não fez essa disputa também se viu reduzido.

A principal tendência não hegemônica não crítica é a sindicalista, que já foi hegemônica no passado. Defende o sindicato como principal instrumento de luta da classe trabalhadora, no qual disputa direção e burocracia e garante sua reprodução independente do Estado. Sua estratégia política é a greve geral. Em sua visão mais à esquerda, o Estado/governo deveria cumprir seu programa mínimo; e, mais ao centro, o Estado/governo deve atender à conquista de suas reivindicações ou favorecê-las – e o partido apoiar ou assumir suas lutas. Com a iniciativa da CUT de chamar a manifestação do dia 13 de março, essa tendência sindical atravessou o Rubicão que a manteve distanciada do protagonismo político por submissão à tendência hegemônica, e muitos, como eu, torcem para que juntos “marchemos sobre Roma”.

A segunda tendência não hegemônica do PT mais importante é a tendência feminista, antipatriarcal, anti-hegemônica, acrítica na política. Sua ala mais à esquerda se reúne sob o signo de “socialismo sem feminismo não é socialismo” e sua ala mais centrista visa conquistar igualdade de direitos na sociedade capitalista. Tem conquistas a comemorar, na esfera da sociedade, do Estado e do partido. Neste, particularmente, sua conquista da participação paritária em todas as instâncias e órgãos partidários foi a maior mudança operada no interior do PT nos últimos quinze ou vinte anos, até agora não bem digerida por alguns agrupamentos.

A terceira tendência não hegemônica que destacaria é a LGBT. Anti-hegemônica, conseguiu maior avanço na sociedade do que no partido, quebrou barreiras. Com a feminista, está realizando uma verdadeira revolução cultural na esfera dos costumes, dos valores da identidade humana, que ainda não se refletiu na devida proporção na política e no partido.

A quarta tendência não hegemônica que gostaria de ressaltar é a socioambientalista. Sua versão mais elaborada, ecossocialista, é anti-hegemônica na sociedade, no Estado e no partido. Mas não consegue se expressar enquanto tal no PT.

Isso tudo tem a ver com a crise e com a saída da crise.

É justo e correto identificar e criticar a tendência hegemônica e os agrupamentos internos que lhe dão sustentação como os principais responsáveis pela crise do partido e em parte pela crise de governo – sem descurar da responsabilidade solidária de todos e todas. Essa crítica não pode se resumir à perda de sua eficácia, porque seria um modo de afirmá-la. Há que criticar o que centralmente tem de errado, para negá-la: o não reconhecimento do protagonismo da classe trabalhadora na estratégia transformadora da sociedade, como fala o Manifesto de fundação do PT, e a negação de que se possa construir uma sociedade socialista apenas pela via das instituições do Estado, como afirma a resolução do VII Encontro Nacional sobre o Socialismo Petista.

E o partido, também, como espelho incompleto mas verdadeiro da classe trabalhadora, se expressa nessa diversidade de tendências de ideias, comportamentos, falas, modos de ser, não adequadamente valorada pelo PT. Nem adequadamente representada por agrupamentos que, quase todos, são mesclas de ideias, comportamentos, falas e teses que às vezes não guardam coerência interna e nem sempre correspondem às suas práticas. Não se muda facilmente tudo isso, mas há sinais de mudança no ar, ou melhor, nas ruas.

Gilney Amorim Viana é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo

O partido precisa de mudanças profundas

Claro que o PT precisa mudar; sofreu um desgaste muito profundo, cuja recuperação exige mudanças igualmente profundas e nada fáceis de implementar.

O PT nasceu de uma proposta realmente nova no quadro político brasileiro. Nasceu marcado por um forte conteúdo ético, principalmente na ética dos fins, com o propósito de superar a injustiça e a imoralidade das desigualdades brasileiras valorizando o trabalho, mas também na ética dos meios, com o propósito de fazer política de um modo diferente, organizando os movimentos sociais, procurando a mobilização direta do povo, sem precisar de grandes recursos financeiros para realizar intermediações e artifícios de propaganda nessa mobilização.

Era um ser político diferente, consciente e proclamador dessa diferença. Nós outros, da esquerda mais antiga, não tínhamos simpatia pelo PT precisamente porque sentíamos uma certa arrogância nessa afirmação de exclusivismo nos métodos novos e puros.

Depois de três tentativas empreendidas em belas campanhas que elevaram o prestígio e o conceito do PT mas não lhe deram o poder, a direção do partido compreendeu que era necessária uma dose maior de pragmatismo na ação política, na convivência com o capital, para conquistar o poder e, com ele, a possibilidade de realizar seus fins políticos que eram eminentemente éticos: a justiça social, a valorização do trabalho.

Não sei até que ponto o PT avançou nessa rota do pragmatismo, mas é certo que aceitou um certo relaxamento na ética dos meios, em relação à rigidez de suas práticas anteriores. Não ouso dizer que tenha caído no princípio de que os fins justificam os meios, mas me parece claro que deu passos na direção dessa visão maldita.

Bem, tenho convicção de que o cidadão comum percebe que a política é uma atividade muito exigente de considerações realistas e que a própria opinião pública tem um grau maior de tolerância para com os comportamentos políticos, no que tange à rigidez dos princípios morais. E, com essa tolerância, compreendeu e aceitou o mergulho pragmatista do PT no início do século.

Vale lembrar que os heróis da história brasileira recente, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (para não falar de Pedro I em tempos mais antigos), nunca foram citados como exemplos de moralidade pública. E não só no Brasil isso se dá: o filme Lincoln, exibido há meses, mostra o grande presidente americano usando meios não muito confessáveis para obter seu tão almejado fim ético, a extinção da escravatura.

Toda a questão está na proporção entre o tamanho do desvio nos meios e a grandeza da realização nos fins. E essa apreciação não tem parâmetros definidos de aceitação: cada caso é julgado isoladamente, pela opinião pública e pela História. Sabe-se apenas que os extremos não são aprovados: nem o “rouba mas faz” de Ademar de Barros, nem a pureza vestalina e estéril de um Milton Campos, hoje esquecido.

O fato é que, no momento que vivemos, a apreciação da opinião pública tornou-se visivelmente desfavorável aos procedimentos do PT. Claro que os interesses em derrubar o PT são fortíssimos – no Brasil e, mais ainda, fora do Brasil – e comandam toda a catadupa de acusações e desmerecimentos que se estampam diariamente na mídia. Mas isso faz parte da realidade do momento, com suas razões claras e esconsas, e a política tem, obrigatoriamente, de se ligar na realidade. O PT desgastou-se profundamente e, se não mudar profundamente, não conseguirá se recuperar do trauma.

Como mudar? Cada um tem sua opinião, e opinião é opinião, não é verdade. A minha é que o PT desde logo precisa recuperar uma boa parte da sua chama original de idealismo, demonstrando com clareza um comportamento de indiscutível desapego e espírito público.

Exemplifico: acho que o PT, no poder, tem de reduzir substancialmente os cargos comissionados de livre nomeação e pôr em prática a ideia da profissionalização do segundo e do terceiro escalão, estabelecendo, definitivamente, que políticos são os cargos ministeriais e equivalentes, os que ditam as diretrizes que os funcionários, aperfeiçoados nas práticas de gestão, devem seguir e implementar. Os benefícios em termos de melhorias e economias no serviço público seriam enormes, e o reconhecimento da população a essa manifestação de desapego e espírito público faria crescer rápida e fortemente os níveis de aprovação do governo e do partido.

Ademais dessa mudança tão difícil quanto benéfica, o PT deveria, liberado dos deveres cotidianos dos escalões inferiores, retomar o diálogo frequente, honesto e profícuo com as organizações da sociedade, recuperando e manifestando sua postura idealista original, diretamente com a população interessada.

Essas duas atitudes políticas produziriam, a meu juízo, um rejuvenescimento e um arejamento do partido capazes de trazer de volta o prestígio daquele PT que elevou Lula à Presidência.

Mais, entretanto: o PT é governo e tem de ajudar por todos os meios a presidenta Dilma a superar a grave crise política que está vivendo, e que pode derrubá-la, a ela e ao partido. Isso significa pôr um fim a quaisquer divergências internas; apoiar a presidenta irrestritamente nos próximos meses, dando-lhe condições de governar enfrentando apenas o fogo do inimigo, que já é pesadíssimo e não deve ser reforçado por divergências internas, diariamente exploradas pela mídia em seu propósito de sangrar o governo.

Significa apoiar a política de reajuste fiscal, ajudar o ministro Joaquim Levy em sua execução, podendo evidentemente ponderar discretos ajustes com o fito de viabilizar politicamente sua implementação, nunca com o objetivo de mudar suas diretrizes para alavancar um desenvolvimentismo que demanda um tempo de espera. No momento, na gravidade da crise política que o governo enfrenta, qualquer enfraquecimento de suas diretrizes causado por divergências internas significaria um comportamento suicida.

Apoiar a presidenta significa também valorizar em todos os sentidos o lema escolhido por ela, da Pátria Educadora: no sentido da formação tradicional pela informação e no sentido político da educação para a cidadania, que o PT sabe muito bem desenvolver.

Em resumo, é isso. É simplesmente uma opinião, a minha, para ser debatida e confrontada com outras, que podem ser melhores.

Roberto Saturnino Braga é diretor-presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento

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