EM DEBATE

Tudo o que era sólido parece se desmanchar no ar e as perguntas preenchem o vácuo: qual a democracia que devemos adotar? Ela é um valor universal ou proletário? Como deve ser a organização de base do partido? Qual o espaço reservado aos filiados? Como articular a pluralidade de opiniões com a unidade de ação? Como deve ser a relação entre o partido e seus militantes nas administrações, no parlamento e nos sindicatos? Leia os artigos de Cezar Alvarez e Raul Pont

Modelo esgotado

Ajustar a sintonia

Modelo esgotado

Neste momento, uma das poucas unanimidades remanescentes no PT refere-se ao diagnóstico da crise da estrutura partidária. Observamos a defasagem entre a expressão política pública alcançada pelo PT e a inexistência de qualquer correspondência no plano da participação e funcionamento das instâncias partidárias. Este diagnóstico não é novidade. Já no 5º Encontro Nacional, em 1987, salientávamos a necessidade de fazer uma revolução nesta estrutura partidária. Três anos depois, no 7º Encontro Nacional, voltamos a afirmar a necessidade da "revolução", afirmando que o partido atravessava "uma encruzilhada no plano da construção partidária, da sua organização e do seu funcionamento. "Face à antiguidade" deste diagnóstico, pode-se afirmar que os desafios de agora são muito superiores aos detectados em 1987.

As teses e documentos do 5º e 7º Encontros Nacionais, ao tratarem da gestão do núcleo, apontaram exaustivas razões para explicar seu funcionamento praticamente nulo. Propuseram ampliação e diversificação dos tipos de núcleos, combinação de estruturas e atividades, tanto para militantes "freqüentes" como para uma ampla base de filiados. Para remediar a falta de poder do núcleo na base do seu não-funcionamento, propuseram os conselhos municipais de núcleo com poder de eleição direta de um terço do total de integrantes dos diretórios municipais. Ainda avançaram políticas específicas para superar a introversão do núcleo, projetando-o como instrumento de diálogo com amplos setores sociais. O 5º Encontro também propôs a criação de outras instâncias partidárias avaliando - corretamente - que a estrutura de núcleo é capaz de dar conta apenas da participação de "uma parcela" de filiados; surgiu a proposta de reuniões ampliadas, setoriais, regionais, com tarefas de coordenação e igualmente com poderes deliberativos. Foi reconhecida a necessidade de mecanismos mais amplos de consulta e deliberação, abrangendo as bases partidárias como plebiscitos e referenduns.

Em suma, são propostas amplas, variadas e inventivas, tratando da criação de organismos setoriais em diversos níveis, com caráter dirigente, de distintos projetos de jornal e imprensa partidária, da criação de uma escola nacional de formação política com projetos em distintos níveis e com atuação regionalizada, de novas formas de Encontro que garantam discussão política e real poder decisório às bases, rompendo com seu burocratismo e, muitas vezes, com a mera homologação de acordos entre distintas forças políticas. Incluem-se propostas que privilegiam a militância organizada, que garantem participação de setores sociais discriminados nas instâncias dirigentes partidárias, rotatividade e limite à reeleição para organismos partidários, métodos coletivos e solidários de direção partidária nas instâncias regionais intermediárias, campanhas de filiação/refiliação/recadastramento, centros de elaboração de políticas públicas e sociais etc.

Estas são algumas das muitas propostas já surgidas e que - independente do juízo sobre os motivos de sua não aplicação ou sobre seus resultados - exigem uma reflexão: o processo da reelaboração de uma concepção de partido é realmente coletivo, consciente, orgânico, construído a partir das demais elaborações programáticas gerais, com ousadia na experimentação, ou poderemos chegar ao Encontro de 1993, incluindo as resoluções do 1º Congresso na longa lista de propostas não encaminhadas e, até mesmo, desconhecidas do conjunto do partido. Quer dizer, ou somos capazes de buscar em nossa própria história e experiência, a referência e fonte para as reformulações que se fazem cada vez mais necessárias, urgente e inadiáveis, ou voltaremos a incorrer no esboço de "soluções" que jamais serão absorvidas pelo conjunto partidário.

O PT aparece com o propósito de intervir na vida social e política para transformá-la, construindo um poder que evoluísse no rumo de uma sociedade sem explorados e sem exploradores. Dentro desta proposta geral, a sua estrutura básica destinava-se à atuação e intervenção nas lutas sociais organizadas, expressando e projetando suas reivindicações no sentido de uma democratização política, social e econômica, enfatizando a participação nos processos decisórios. Construímos assim, a partir das demandas específicas dos setores oprimidos, um programa global de transformação, com o objetivo de constituir-se em referência e alternativa concreta para toda a sociedade. Evoluímos no sentido de conceber e compreender as tarefas democrático-populares. Superamos a visão clássica da tomada do poder em favor de uma visão da construção do poder. Adquirimos experiência na prática institucional dos Executivos e Parlamentos.

Enfim, nestes onze anos, nosso partido percebeu a dimensão da chamada "sociedade civil".

No curso deste processo de progresso programático, não se verificou uma evolução correspondente da estrutura partidária, que nos dotasse de mecanismos amplos e diversificados para uma disputa global e simultaneamente setorizada, ampla e extremamente complexa, necessária para um partido que já se constitui em alternativa de governo e quer ser alternativa de poder.

Ser hoje alternativa de governo significa dizer que o PT serve de referência para milhões de eleitores, gerando diferentes níveis de adesão ao seu projeto global. Conseqüentemente, a estrutura partidária precisa dar conta e garantir espaço de mais participação combinando-se com uma proposta de partido orgânico. Deve abrir espaço para atuação e militância do cidadão pleno e consciente de seus direitos individuais e coletivos mas também do indivíduo em luta pela sua sobrevivência e que ainda não teve a possibilidade de desenvolver plenamente a sua consciência. Precisamos de instâncias diferenciadas para os distintos níveis de adesão. Instâncias que sejam pólos ativos em condição de contribuir para a construção de uma proposta global, possibilitando a cada cidadão ligado ao partido, transitar por distintas instâncias, superando o abismo entre massas e quadros, dirigentes e dirigidos, instâncias de concepção e de execução.

Umberto Cerroni (Teoria do partido político. Livraria Editora Ciências Humanas: São Paulo, 1982; História e Política, 15), reportando-se a Gramsci, adverte que "ser um partido de massas ou um partido de quadros não se reduz a uma opção dos dirigentes de um determinado partido político mas é, isto sim, expressão de um mecanismo histórico". Qual o partido que não deseja ser "de massas"? Qual partido não desejaria ter sob sua influência, direta e indireta, dezenas de milhares, milhões de cidadãos? E qual partido não desejaria contar, dentre tais milhões, com dezenas de milhares de ativistas e decididos militantes, com conhecimento acurado da realidade do seu povo e de cada região do seu país?

Neste quadro, a formulação realizada pelo no 5º Encontro, saudada coletivamente como um avanço, afirmava que "superando a falsa oposição entre partido de massas e partido de quadros (...) precisamos de um partido organizado e militante, o que implica a necessidade de quadros organizadores. Um partido que seja de massas porque organizará milhares, centenas de milhares ou até milhões de trabalhadores ativos...'. Tal formulação, no limite - ainda que positiva e necessária - não foi além da afirmação de intenções pois não encontrou ressonância, seja em termos de aprofundamento de políticas setoriais, seja na formação política e, principalmente, em novas estruturas partidárias que permitissem realmente às amplas massas participação no partido. Na realidade, continuamos apenas com a estrutura de núcleos, garantindo exclusivamente espaço de participação à militância organizada e formada politicamente, isto é, para os quadros.

Falar de instâncias que sejam capazes de dar conta de "vontades" distintas de participação, tornando-se expressão de indivíduos e cidadãos em momentos diversos de consciência e atuação como membro de coletivos e comunidades, é afirmar a idéia de instâncias "fluxos". Voltemos mais uma vez a Cerroni. Este apresenta, de forma esquemática, três fases na história da organização do movimento dos trabalhadores. Chama uma primeira fase de "pré-política", quando a idéia básica é a da agregação corporativa: os trabalhadores assumem sua autonomia e consciência. Surgem as caixas de auxílio mútuo, de assistência, sindicatos, organizações de resistência. Numa segunda fase, denominada "política intrauterina" começa a dar um avanço sobre um patamar político geral, porém de maneira ainda subalterna em relação ao Estado; surgem desse modo, os primeiros partidos políticos de trabalhadores, contesta-se a pseudo universalidade do Estado, denuncia-se seu caráter de classe, define-se uma contraposição a este Estado, porém ainda como parte que não se coloca como um todo. E, finalmente, um terceiro momento, chamado de fase "política extra-uterina", na qual os trabalhadores expressam a sua capacidade hegemônica em relação ao conjunto da sociedade e percebem a necessidade de substituir por inteiro o Estado burguês. Então se combinam os interesses dos trabalhadores com interesses de caráter geral, ligando-os a outros extratos da sociedade. Confrontam-se valores, idéias, novas formas de organização etc.

Considerando-se o inevitável reducionismo das esquematizações e ressalvados os limites da reflexão de um autor imerso em outra realidade, é inegável que o nosso partido apresenta, em linhas gerais, características da chamada "terceira fase". A campanha presidencial e a candidatura de Lula foram a expressão maior deste novo momento. Tal constatação, porém, se tomada de forma absoluta, pode nos levara profundos equívocos pois, neste novo patamar, reforça-se a tendência de considerar apenas o Brasil dos grandes centros urbanos, da vida sindical ativa e mobilizadora, dos movimentos sociais amplos e reconhecidos, da complexidade dos interesses e opiniões de uma sociedade civil articulada e organizada. Ora, esta é apenas parte da realidade de um país, onde 44 % de sua população vive em condição de pobreza absoluta, onde uma em cada três crianças sofre algum tipo de desnutrição, um país com 20% de analfabetos, onde 27,2 % da população economicamente ocupada recebe até um salário-mínimo por mês.

Nosso partido precisa retomar sua capacidade de indignar-se, combinando a responsabilidade de apresentar alternativas globais e realizáveis com a denúncia contundente, com uma boa pitada de impertinência e insolência. A capacidade de combinar a disputa política e ideológica, no mais sofisticado nível, com a presença dirigente no encaminhamento direto da luta com aparência exclusivamente "corporativa" é vital para o futuro partidário.

É preciso conhecer e participar das lutas do Brasil pré-cidadania. Nossa sensibilidade se expressará na exata medida que soubermos combinar a luta por "interesses" com a luta por "idéias", combinando estruturas que dêem conta, simultaneamente, de um partido e de um povo que estão - para voltar a Cerroni - tanto na fase política "intra-uterina" quanto "extra-uterina".

Merece também atenção no debate do 1º Congresso a noção, excessivamente simplista, de "Partido Dirigente". Apesar de unanimemente saudada como avanço, no 5º Encontro, pois teria superado a noção de "Partido Expressão/Reflexo" dos movimentos sociais - que nos reduziria a "representantes no campo institucional e parlamentar" destes movimentos -, tal formulação necessita ser relativizada e situada numa visão mais abrangente da disputa política que travamos. A formulação "Partido Expressão/Reflexo" era incapaz de dar conta da acirrada disputa com as classes dominantes, seus partidos e seus aparelhos de dominação. Trazia também uma idéia - equivocada - de que nosso partido conseguiria traduzir "naturalmente"o conjunto das lutas sociais e de que seus participantes, ao identificarem suas lutas expressas em nosso partido, a ele se incorporariam.

Neste quadro preciso, a concepção de "Partido Dirigente", formulada no 5º Encontro foi positiva. O problema é que a formulação limita-se à função dirigente. Se é verdade que os movimentos sociais expressam, simultaneamente, distintos níveis de consciência e participação, se concordamos que existem outros partidos nos campos democrático, popular e socialista, temos então que concluir que inúmeros setores sociais, ativistas e cidadãos estarão "sintonizados" com estas outras propostas partidárias. Mas, se admitimos uma sociedade civil complexa, com movimentos sociais diversos, a visão única e exclusiva de partido "dirigente" pode nos levar à incapacidade de dialogar com diferentes setores e movimentos. Discordo da visão de que as formas associativas, desenvolvidas por distintos movimentos sociais, expressam momentos "anteriores" - e "inferiores" - de participação política, e de que o grande e "superior" momento se concretizaria na adesão ao "Partido Dirigente".

O acúmulo de onze anos de construção partidária, as mudanças profundas que surgiram do Leste Europeu, com a derrocada do chamado socialismo real, e a posição defensiva política e ideológica em que se encontra a esquerda, pedem um esforço redobrado de reflexão e elaboração na construção de novas formas de participação e decisão para milhões de não filiados, e para milhares de filiados.

Neste quadro, toda e qualquer medida organizativa a ser adotada será, necessariamente, limitada e experimental. De maneira geral, devemos traçar políticas e formas organizativas que levem a uma maior centralização e unificação da militância que está participando diretamente dos movimentos sociais, reelaborando, aprofundando e atualizando nossas linhas políticas. "Nas relações com seus membros que ocupam espaços nos parlamentos e nos Executivos, o PT terá de operar uma profunda revolução, assumindo de vez sua face institucional, redefinindo o caráter do mandato e transformando essas esferas de atuação em verdadeiras instâncias deliberativas, onde o partido possa se reintegrar e se reencontrar, superando as diferenças de natureza e de ritmos de procedimento, que marcam instâncias partidárias, bancadas e Executivos" (Jornal do Congresso nº3, texto "Reconstrução").

A estas medidas centralizadoras de caráter geral e que reforçam uma estrutura de direção vertical, é preciso combinar, como necessária e complementar contra-parte, a total ampliação e flexibilidade das formas de organização de base. Seja por "grupo de trabalho, de estudo, de ação, de atuação; por plenárias de membros de uma região ou de um setor social ou profissional; por reuniões e encontros mais ou menos formais e periódicos de pessoas que se interessam por ecologia, ou por teatro, por defesa dos direitos humanos etc..." Não importa que o partido não tenha a todos "registrados" e "oficializados", que alguns se sobreponham, que surjam, cresçam e até desapareçam. Queremos clube de leitores, círculos, grupos de amigos, seja lá o nome que se dê. Esta é a questão central e imediata.

Outra medida que se faz necessária é estruturar as instâncias dirigentes, combinando uma parcela eleita - a partir de teses e programas de cunho geral - com outra parcela eleita federativamente, que contemple representantes de categorias, setores sociais, regiões, zonas, estados. A curto prazo, esta é uma das poucas medidas capazes de superar o fosso entre as direções partidárias os filiados, bem como de diversidade cultural, social e política do país.

Onze anos de luta política construíram e consolidaram um partido, uma "instituição" com uma identidade política apreendida indistintamente pelos amigos e inimigos. Ser "petista" tornou-se referência e projeta valores, idéias e posturas. Neste sentido, estão maduras as condições para a constituição de direções setoriais, diferentemente do momento de fundação, quando o partido precisava se afirmar como um todo e não como federação de movimentos ou de partidos. A constituição de direções setoriais é hoje condição para aprofundar o conhecimento das distintas realidades e lutas específicas, reelaborar as propostas e diretrizes partidárias gerais num patamar superior. É compromisso de participação e organização de base.

Retomar, absorver, traçar diretrizes, construir "vontades políticas" é condição indispensável para o reerguimento dos núcleos. Não como visão idealizada e exclusivista de participação partidária, mas sim como instrumentos concretos na disputa de propostas políticas e canais de diálogo e interlocução com os setores sociais organizados e, principalmente, com as amplas massas desorganizadas. A base para esta retomada, definida como prioritária, é dada pelas teses aprovadas no 5º e 7º Encontros Nacionais.

É preciso criatividade e flexibilidade de nossa estrutura partidária para os momentos específicos das disputas eleitorais. Todos concordamos que os momentos de maior vitalidade e participação partidária são os de campanhas eleitorais. Essa participação ampla e intensa deve ser entendida como um momento privilegiado - e concentrado - onde a chamada "grande política" aparece de maneira clara e global para amplos setores da população. Onde a maioria dos petistas, filiados, simpatizantes e eleitores, tem a oportunidade de se tornar ativa em sua contribuição ao projeto partidário estratégico. Pois bem, quem não leu e muitos redigiram - intermináveis relatórios de avaliação, onde, no infalível item "Construção Partidária" aparecia a frase: "apesar dos inegáveis avanços em termos eleitorais, é preciso reconhecer que, mais uma vez, não fomos capazes de traduzir esta votação em avanço e ampliação das estruturas partidárias, pelo contrário, o Diretório não funcionou, o núcleo desarticulou, o jornal parou" etc.

Se não mudarmos urgentemente, estes balanços, mais uma vez, proliferarão, no final do próximo ano. Mas, além de expressarem uma visão quantitativa, organicista e parcial da construção partidária, no fundo, mostram uma face, cuja matriz está na concepção de "Partido Dirigente" de intervenção. Somos incapazes de perceber a riqueza e potencialidade dos processos eleitorais, onde todo um setor da sociedade se reagrupa, se organiza e se referência em torno das candidaturas. Ao insistirmos, nestes períodos, em nossas estruturas insuficientes e formais, acabamos por estabelecer uma relação elitista e fechada com estes milhões que se aproximam do partido. Nos processos eleitorais devemos ser capazes de promover inflexões e de redimensionar nossas estruturas, por exemplo, reconhecendo os comitês eleitorais como legítimas instâncias partidárias. Somente assim seremos capazes de estabelecer relação com estes milhares ou milhões, num plano político mais geral, e que não se extinguirá após a contabilização dos boletins de uma.

É preciso construir uma "cultura" que garanta às instâncias dirigentes uma atuação coletiva e solidária e, ao mesmo tempo, uma profissionalização das funções e assessorias.

Diante do "descolamento" observado entre o perfil social dos quadros dirigentes em relação à nossa base, devemos construir normas que garantam composição heterogênea e diversificada para a eleição de dirigentes, inclusive com obrigatoriedade de rotatividade nas principais funções, bem como limites a reeleições consecutivas.

Sem dúvida, dezenas e dezenas de propostas surgirão ao longo do debate até o 1º Congresso.

Busquemos em nossa história as novas formas organizativas que precisam surgir. Nosso modelo esgotou-se. É todo um período, um ciclo histórico que se esgota. Prepararmo-nos para o novo milênio garantirá a afirmação plena de que "o Partido dos Trabalhadores não é o último partido comunista, mas sim o primeiro partido socialista de um novo momento da história" 1. "História que não chegou ao fim e que tampouco está pré-escrita, que será projeto consciente e livremente construído por homens e mulheres livres."

Cezar Alvarez é membro da Executiva da Nacional do PT.

Nota:

1. Marco Aurélio Garcia.

Ajustar a sintonia

Modernos versus ortodoxos. Esta simplicação tem permeado boa parte dos argumentos em relação ao tema da construção partidária no debate preparatório ao 1º Congresso. Mais ainda, esta adjetivação tem criado problemas, pois estabelece preconceitos e até equívocos teóricos.

O PT é moderno ou ortodoxo? O que significam estes conceitos na teoria política sobre partidos?

Desde seu surgimento, em 1979-1980, o PT foi essencialmente inovador e nunca se colocou como herdeiro de qualquer experiência histórica do movimento socialista internacional. Jamais se reclamou de qualquer modelo partidário seja da II ou III Internacional. Ao contrário, a legalização, em 1980, obedecia aos padrões determinados pela Lei Orgânica dos Partidos (LOP), imposta pelo regime militar.

A elaboração de um Regimento Interno - que para nós tinha e tem mais valor que a LOP - serviu para democratizar a legislação autoritária e para se contrapor, parcialmente, à tendência eleitoral de subordinação dos critérios organizativos ao parlamento.

Na prática, descartamos duas exigências da LOP: a representação de delegados pelo critério de votos à Câmara Federal e o limite de 20% para alcançar representação nos diretórios. Evitamos, assim, a tendência ao eleitoralismo e instituímos a organização pela base, contrariando o espírito da LOP. O PT foi inovador e rebelde, no Regime Interno, ao elaborar a figura do Encontro como forma paralela e alternativa à lei. Porém, mostrou-se marcado por uma concepção, espontaneísta e basista, de construção orgânica. Consagramos o núcleo como objetivo ideal, mas a plenária era, e continua sendo, a instância de delegação e decisão.

Se recordarmos que um dos principais debates, dos primeiros anos, tratava da construção de um "partido dirigente das lutas" ou de um partido que fosse "a expressão dos movimentos sociais", o caráter empírico da construção aparece de modo transparente.

Mais tarde, a grande polêmica entre "partido de quadros" versus "partido de massas" exemplifica, igualmente, que o partido nunca reivindicou concepções monolíticas de construção orgânica como não adotou a tese do "partido único" classista.

A discussão polarizada em quadros versus massas era falaciosa, pois abordava a questão partidária pelo viés imposto pela longa clandestinidade da esquerda brasileira ou por uma determinada leitura acerca do que seria um partido de quadros, de acordo com a teoria leninista de organização, veiculada pelas correntes stalinistas.

Isto não fazia face nem à teoria liberal de partidos políticos. Um autor como Maurice Duverger, por exemplo, conceitua os partidos comunistas e socialistas europeus como "partidos de massas", reservando o conceito de "quadros" para os partidos de "notáveis", isto é, de figuras públicas com grande expressão eleitoral e sem pretensões de organizar num partido a base de eleitores ou correligionários.

No fundo, a acusação contra a concepção de um partido de vanguarda, com militantes, passando pela cotização regular, pela atuação numa frente de massas e pela vida orgânica na produção programática, funcionava como um biombo para escamotear a luta pela hegemonia das tendências dentro do partido. Pelo menos, até que a corrente majoritária superasse a sua visão oficialista e passasse a se reconhecer, também, como mais uma tendência dentro do partido.

O fato de o PT nunca ter assumido qualquer concepção baseada na III Internacional ou nas formas adquiridas pelos PCs, durante a longa hegemonia na esquerda mundial do stalinismo, não implica que sua construção tenha sido mero espontaneísmo.

Uma das vertentes formadoras do PT vem do conjunto de grupos de esquerda e de indivíduos que sobreviveram ao regime militar e, que, evidentemente, contribuíram com suas experiências e concepções partidárias como com avaliações críticas e autocríticas do que tinham vivenciado. O debate sobre a construção partidária incorporou tal contribuição e, ao longo destes anos, consolidou-se, entre nós, um conjunto de posições, responsável pelo perfil que possuímos hoje.

Concepção de construção partidária está intimamente ligada ao programa, aos objetivos estratégicos do partido. É inegável que, ao longo destes onze anos, o PT avançou bastante neste campo. Entre o discurso de Lula pronunciado no 1º Encontro, em Brasília, que refletia o grau inicial de coesão do partido, e a Resolução sobre o "socialismo petista", aprovada no 7º Encontro, encontra-se uma distância considerável como um grande avanço na elaboração programática.

Na primeira ocasião, falávamos, basicamente, de uma sociedade justa, "sem explorados nem exploradores". Nossa crítica às experiências européias era pela negativa: "somos contra a social-democracia que gerencia a crise do capitalismo e contra a burocratização do Leste Europeu". Já no 7º Encontro, o caráter positivo das definições é muito superior. Evidentemente, isto se dá sob impacto dos acontecimentos na União Soviética e demais países do Leste, mas reflete, principalmente, o nível do debate realizado, ao longo dos últimos onze anos, dentro do partido.

Assim, qualquer posicionamento ou evolução no campo da construção partidária, deverá contar com a consolidação deste processo, transcorrido na década de vida do PT.

Carecem, portanto, de razão, as teses que afirmam que o PT sofre de tendências burocratizantes, que o encaminharam para uma postura autoritária diante dos militantes e da sociedade, caracterizando um partido de sintomas monolíticos condenado a repetir os rumos burocráticos dos partidos sob a hegemonia do stalinismo, de acordo com o modelo da URSS, ou das experiências de pólos irradiadores de uma estratégia mundial, efetuadas pelo PC chinês e, em menor grau, pelo PC da Albânia.

Do ponto de vista orgânico, o que é ser moderno, neste momento? Será ampliar a autonomia dos parlamentares frente ao partido? Será concordar com a atual relação, vivida na maioria dos municípios, onde assumimos a administração e tem predominado o conflito entre o Executivo e o partido? Será não estabelecermos critérios nem de cotização nem de compromisso militante para os filiados?

Concepção Partidária

Há urgência de explicitar claramente estas propostas para que possamos travar o debate sobre divergências reais e não sobre pecados eventuais, que não possuímos ou não praticamos, ao longo destes onze anos de vida.

Entendemos que, no curso da sua experiência, o PT alcançou uma razoável coesão em torno de um conjunto de definições programáticas e orgânicas que já constituem uma consciência coletiva do partido. Um exemplo disso foi o longo debate sobre a regulamentação das tendências e o direito à proporcionalidade em todas as instâncias diretivas. Durante vários anos, essa proposta não foi aceita pela maioria.

Talvez por razões ou com nuances distintos, mas objetivamente, não era aprovada. Hoje, isto se consolidou e não há dúvidas de que, neste aspecto, é quase unânime que tenha significado um avanço e uma garantia positiva para a democracia interna e a coesão partidária.

Neste sentido, entendemos que, hoje, o PT já assimilou e se uniu em torno das definições do 7º Encontro, que podem ser sintetizadas pelas seguintes teses:

1) O PT é um partido socialista, que luta pelo estabelecimento de uma sociedade situada além do horizonte da exploração, da opressão e das desigualdades, geradas pelo capitalismo, e onde predomine a propriedade coletiva e o controle público e democrático dos principais meios de produção.

2) O PT é um partido profundamente democrático, que defende o pluralismo político e ideológico para a sociedade, e que também garante a sua democracia interna, através do direito de tendências e do princípio de proporcionalidade em suas esferas de direção.

3) O PT compreende que a exploração econômica não é a única forma de dominação entre os indivíduos e que a luta contra ela é simultânea com a luta contra as demais formas de opressão, culturais e ideológicas, sobretudo a discriminação racial e a opressão de gênero, tão mercantes numa sociedade patriarcal, machista e segregadora como a brasileira.

4) O PT é um partido que rompeu com o "cupulismo" e o elitismo dos partidos e da política brasileira. Sua profunda democracia interna se materializa no predomínio das bases na tomada de decisões, na elaboração da tática conjuntural e até nas definições programáticas congressuais. Neste sentido, o PT organiza sua militância para a ação de massas no conjunto da sociedade, visando a construção da hegemonia das classes trabalhadoras em toda a sociedade.

5) O PT é um partido que organiza os militantes para a construção e direção dos movimentos sociais, sem confundir sua estrutura com a autonomia e auto-organização necessárias à sociedade, em suas variadas formas de estruturação. A ação petista nos movimentos sindicais, comunitários, estudantis e outros rejeita a sua transformação em apêndices partidários ou a sua atrelagem às instituições estatais que venhamos a administrar como governo.

6) O PT busca estreitar e socializar as experiências dos trabalhadores do mundo inteiro. O partido sabe que a luta contra o capitalismo é, simultaneamente, contra o imperialismo e, neste sentido, a luta internacional dos trabalhadores tem os mesmos interesses. Neste momento de crise do movimento socialista internacional, o PT tem presente as grandes tarefas e o papel que deve cumprir para a retomada de uma unificação das lutas dos trabalhadores no plano internacional e, principalmente, na América Latina.

7) O PT é um partido que nasceu da crítica à burocracia do "socialismo real", do Leste Europeu, e da crítica à social-democracia, da Europa Ocidental. Desta forma, entende que a crise profunda, vivida por estes países, não é a "crise final" do socialismo como quer a propaganda neoliberal. Para a compreensão e análise dessas experiências, o PT reivindica as elaborações teóricas e a experiência prática de mais de um século de luta dos trabalhadores pela sua emancipação.

Nesse conjunto de teses, é claro que aparecem lacunas ainda não preenchidas pelo partido, mas que não comprometem o que já foi conseguido pela militância. A questão mais relevante, ainda pouco desenvolvida e, portanto, não conscientizada pelo conjunto do partido, trata da estratégia em relação ao poder. O programa democrático-popular, do 7º Encontro, indica que as tarefas de formulação não se esgotam nos limites do capitalismo, mas já engendram propostas de transição e formas para o socialismo. A tradução disso, na estratégia de construção e preparação do partido para tais tarefas, ainda é insuficiente e requer de nós uma formulação mais consensual.

A nossa tendência - Democracia Socialista - vem contribuindo para esse debate, buscando aprofundar uma estratégia que combine ações institucionais e não-institucionais. As últimas visando fortalecer mecanismos de auto-organização, conselhos que construam um poder popular.

Sobre a Nucleação

Independente das questões, todavia abertas, como a mencionada, podemos avançar em outros aspectos da construção partidária. É inegável que a questão da estratégia determina a construção orgânica, mas não é preciso completar todas as definições sobre o problema do poder para chegar a um consenso acerca de uma cotização entre os filiados para a sustentação material do partido.

Da mesma forma, já há quase uma unanimidade no partido sobre o impasse da nossa estrutura atual de organização, que não alcança, no cotidiano, centenas de milhares de filiados.

Neste aspecto, o 1º Congresso pode dar um salto de qualidade neste aspecto, uma reviravolta em nossa estrutura, sacudindo a militância para uma virada orgânica.

Como vimos, a organização da base partidária está na raiz do surgimento do PT. Nascemos como proposta alternativa ao elitismo da política brasileira e ao "cupulismo" de seus partidos. Este é um dos nossos compromissos.

Nos primeiros anos, quando a identidade programática em vários temas ainda era pequena, já havia unanimidade sobre a organização de núcleos no partido. Há, no entanto, uma grande distância entre uma tal posição consensual e a atual realidade orgânica do PT. O Regimento Interno aponta em tal direção. Consagra o núcleo como o elemento-chave da organização partidária e até estabelece uma tipologia de modos de organizar.

No Capítulo I do Regimento Interno essa primazia é evidente, mas, o partido não reflete isso. A nosso ver, isso é fruto de condições objetivas e não da má vontade ou do boicote dos militantes ou das tendências. Não negamos que o empenho em sua organização é desigual entre filiados e as correntes partidárias ou até de um estado para outro, mas temos a tese de que algo mais objetivo impede a nucleação.

No Artigo 3o. do Regimento Interno, que estabelece as funções do núcleo, encontra-se uma barreira intransponível. Ele tem inúmeras funções, mas não tem aquilo que é essencial numa estrutura partidária que queira se sustentar em uma organização de base ampla, massiva e militante: o de ser uma instância de delegação de poder.

A idéia da nucleação do PT segue a experiência histórica tradicional dos partidos de base operária e sindical, ou seja, das experiências dos partidos social-democratas e comunistas, europeus. Isto é, o enraizamento do partido nos movimentos sociais e na sociedade em geral, buscando disputar a hegemonia nas várias esferas da sociedade civil.

Segundo esses modelos, quando há uma delegação de poder para as instâncias de deliberação na forma de conferências ou congressos a organização celular ou das seções partidárias se estrutura através de representações setoriais e ou regionais.

Como vimos anteriormente, o PT nasceu sob as condicionantes históricas brasileiras, de 1979 e 1980, e também mediante reivindicação plena das experiências históricas européias. Desde a fundação, encontramo-nos premidos pela LOP que impõe aos partidos brasileiros um estatuto padrão, uma forma de organização, cuja instância básica de deliberação é a plenária de filiados, ou mais precisamente, o voto direto de todos os filiados na instância primeira de delegação: a municipal ou a zonal. Insisto no termo precisamente, porque mesmo no PT, onde o regimento consagra a plenária, em vários municípios acaba se praticando, apenas o voto na urna, aberta às nove horas e encerrada às dezessete horas, como manda a Lei. E nem a plenária, que envolve o debate, a controvérsia, é realizada.

É bom lembrar, inclusive, que apesar da Constituição de 1988 ter consagrado a plena de liberdade de organização partidária, o TSE, na ausência de outra legislação, continua acatando os dispositivos da antiga LOP.

O PT já rompeu com a Lei Orgânica em vamos aspectos, mas, o essencial está em ser ainda um partido cuja instância básica de delegação é a plenária de todos os filiados, sem maiores exigências de militância e acompanhamento da vida partidária.

Como exceção, o Regimento atual prevê e permite a escolha de delegados de núcleo, mas a hipótese possível nestes casos é muito complexa, de difícil realização e controle, devido ao caráter regional ou estadual. Portanto, na maioria esmagadora dos casos, acaba predominando a delegação via plenárias municipais e zonais.

Sabemos que uma mudança radical no Regimento, a fim do núcleo tornar-se a instância básica de delegação de poder, poderá não ser suficiente para uma virada orgânica no PT, mas, temos certeza, será um passo decisivo para dar uma nova qualidade à organização partidária.

Uma estrutura baseada em plenárias não responde ao cotidiano do filiado. Ele é chamado nos momentos convencionais, e nestes é comum a corrida para filiações sem critérios, o voto de cabresto e a agudização da luta interna, gerando desconfianças e sectarismos. Esta estrutura não consegue reagir nas frentes de massa, no dia-a-dia da sociedade.

O filiado não está organizado para agir nas lutas sociais, para ajudar a formar as entidades da sociedade civil e para pensar regularmente o partido como um todo, de modo a responder aos desafios de seu programa global.

Achamos que a organização no núcleo do partido rompe com a tendência corporativa da atuação, apenas numa categoria profissional, como com o horizonte estreito, paroquial, do vínculo comunitário, onde ou de algum movimento social específico. Fora isso, apenas os dirigentes partidários, os funcionários e assessores ou quem participa de alguma comissão têm acesso e podem visualizar como um todo a prática partidária.

Para superar tal situação e preparar o PT para grandes enfrentamentos, que os objetivos estratégicos exigem, o 1º Congresso deverá debruçar-se sobre a questão. É claro que a materialização da proposta, no Regimento ou no novo estatuto que iremos elaborar, levará em conta um país com enormes desigualdades regionais e distintos níveis de experiência e consciência política, que incidem também sobre o partido. Bem como, considerará um período de transição para a absorção desta mudança orgânica profunda.

Não é o caso, aqui, de desdobrar, do ponto de vista regimental, as novas regras que disciplinariam esta alteração; nem também abordar outras questões cruciais para a construção partidária, como um jornal nacional e uma política da formação. A preocupação central deste artigo é polemizar - e esperamos ter cumprido o objetivo -, apresentando uma alternativa concreta para o impasse atual de como incorporar ativamente o conjunto dos filiados no partido.

Raul Pont é professor, deputado federal e secretário nacional de Finanças.

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