Neste momento, uma das poucas unanimidades remanescentes no PT refere-se ao diagnóstico da crise da estrutura partidária. Observamos a defasagem entre a expressão política pública alcançada pelo PT e a inexistência de qualquer correspondência no plano da participação e funcionamento das instâncias partidárias. Este diagnóstico não é novidade. Já no 5º Encontro Nacional, em 1987, salientávamos a necessidade de fazer uma revolução nesta estrutura partidária. Três anos depois, no 7º Encontro Nacional, voltamos a afirmar a necessidade da "revolução", afirmando que o partido atravessava "uma encruzilhada no plano da construção partidária, da sua organização e do seu funcionamento. "Face à antiguidade" deste diagnóstico, pode-se afirmar que os desafios de agora são muito superiores aos detectados em 1987.
As teses e documentos do 5º e 7º Encontros Nacionais, ao tratarem da gestão do núcleo, apontaram exaustivas razões para explicar seu funcionamento praticamente nulo. Propuseram ampliação e diversificação dos tipos de núcleos, combinação de estruturas e atividades, tanto para militantes "freqüentes" como para uma ampla base de filiados. Para remediar a falta de poder do núcleo na base do seu não-funcionamento, propuseram os conselhos municipais de núcleo com poder de eleição direta de um terço do total de integrantes dos diretórios municipais. Ainda avançaram políticas específicas para superar a introversão do núcleo, projetando-o como instrumento de diálogo com amplos setores sociais. O 5º Encontro também propôs a criação de outras instâncias partidárias avaliando - corretamente - que a estrutura de núcleo é capaz de dar conta apenas da participação de "uma parcela" de filiados; surgiu a proposta de reuniões ampliadas, setoriais, regionais, com tarefas de coordenação e igualmente com poderes deliberativos. Foi reconhecida a necessidade de mecanismos mais amplos de consulta e deliberação, abrangendo as bases partidárias como plebiscitos e referenduns.
Em suma, são propostas amplas, variadas e inventivas, tratando da criação de organismos setoriais em diversos níveis, com caráter dirigente, de distintos projetos de jornal e imprensa partidária, da criação de uma escola nacional de formação política com projetos em distintos níveis e com atuação regionalizada, de novas formas de Encontro que garantam discussão política e real poder decisório às bases, rompendo com seu burocratismo e, muitas vezes, com a mera homologação de acordos entre distintas forças políticas. Incluem-se propostas que privilegiam a militância organizada, que garantem participação de setores sociais discriminados nas instâncias dirigentes partidárias, rotatividade e limite à reeleição para organismos partidários, métodos coletivos e solidários de direção partidária nas instâncias regionais intermediárias, campanhas de filiação/refiliação/recadastramento, centros de elaboração de políticas públicas e sociais etc.
Estas são algumas das muitas propostas já surgidas e que - independente do juízo sobre os motivos de sua não aplicação ou sobre seus resultados - exigem uma reflexão: o processo da reelaboração de uma concepção de partido é realmente coletivo, consciente, orgânico, construído a partir das demais elaborações programáticas gerais, com ousadia na experimentação, ou poderemos chegar ao Encontro de 1993, incluindo as resoluções do 1º Congresso na longa lista de propostas não encaminhadas e, até mesmo, desconhecidas do conjunto do partido. Quer dizer, ou somos capazes de buscar em nossa própria história e experiência, a referência e fonte para as reformulações que se fazem cada vez mais necessárias, urgente e inadiáveis, ou voltaremos a incorrer no esboço de "soluções" que jamais serão absorvidas pelo conjunto partidário.
O PT aparece com o propósito de intervir na vida social e política para transformá-la, construindo um poder que evoluísse no rumo de uma sociedade sem explorados e sem exploradores. Dentro desta proposta geral, a sua estrutura básica destinava-se à atuação e intervenção nas lutas sociais organizadas, expressando e projetando suas reivindicações no sentido de uma democratização política, social e econômica, enfatizando a participação nos processos decisórios. Construímos assim, a partir das demandas específicas dos setores oprimidos, um programa global de transformação, com o objetivo de constituir-se em referência e alternativa concreta para toda a sociedade. Evoluímos no sentido de conceber e compreender as tarefas democrático-populares. Superamos a visão clássica da tomada do poder em favor de uma visão da construção do poder. Adquirimos experiência na prática institucional dos Executivos e Parlamentos.
Enfim, nestes onze anos, nosso partido percebeu a dimensão da chamada "sociedade civil".
No curso deste processo de progresso programático, não se verificou uma evolução correspondente da estrutura partidária, que nos dotasse de mecanismos amplos e diversificados para uma disputa global e simultaneamente setorizada, ampla e extremamente complexa, necessária para um partido que já se constitui em alternativa de governo e quer ser alternativa de poder.
Ser hoje alternativa de governo significa dizer que o PT serve de referência para milhões de eleitores, gerando diferentes níveis de adesão ao seu projeto global. Conseqüentemente, a estrutura partidária precisa dar conta e garantir espaço de mais participação combinando-se com uma proposta de partido orgânico. Deve abrir espaço para atuação e militância do cidadão pleno e consciente de seus direitos individuais e coletivos mas também do indivíduo em luta pela sua sobrevivência e que ainda não teve a possibilidade de desenvolver plenamente a sua consciência. Precisamos de instâncias diferenciadas para os distintos níveis de adesão. Instâncias que sejam pólos ativos em condição de contribuir para a construção de uma proposta global, possibilitando a cada cidadão ligado ao partido, transitar por distintas instâncias, superando o abismo entre massas e quadros, dirigentes e dirigidos, instâncias de concepção e de execução.
Umberto Cerroni (Teoria do partido político. Livraria Editora Ciências Humanas: São Paulo, 1982; História e Política, 15), reportando-se a Gramsci, adverte que "ser um partido de massas ou um partido de quadros não se reduz a uma opção dos dirigentes de um determinado partido político mas é, isto sim, expressão de um mecanismo histórico". Qual o partido que não deseja ser "de massas"? Qual partido não desejaria ter sob sua influência, direta e indireta, dezenas de milhares, milhões de cidadãos? E qual partido não desejaria contar, dentre tais milhões, com dezenas de milhares de ativistas e decididos militantes, com conhecimento acurado da realidade do seu povo e de cada região do seu país?
Neste quadro, a formulação realizada pelo no 5º Encontro, saudada coletivamente como um avanço, afirmava que "superando a falsa oposição entre partido de massas e partido de quadros (...) precisamos de um partido organizado e militante, o que implica a necessidade de quadros organizadores. Um partido que seja de massas porque organizará milhares, centenas de milhares ou até milhões de trabalhadores ativos...'. Tal formulação, no limite - ainda que positiva e necessária - não foi além da afirmação de intenções pois não encontrou ressonância, seja em termos de aprofundamento de políticas setoriais, seja na formação política e, principalmente, em novas estruturas partidárias que permitissem realmente às amplas massas participação no partido. Na realidade, continuamos apenas com a estrutura de núcleos, garantindo exclusivamente espaço de participação à militância organizada e formada politicamente, isto é, para os quadros.
Falar de instâncias que sejam capazes de dar conta de "vontades" distintas de participação, tornando-se expressão de indivíduos e cidadãos em momentos diversos de consciência e atuação como membro de coletivos e comunidades, é afirmar a idéia de instâncias "fluxos". Voltemos mais uma vez a Cerroni. Este apresenta, de forma esquemática, três fases na história da organização do movimento dos trabalhadores. Chama uma primeira fase de "pré-política", quando a idéia básica é a da agregação corporativa: os trabalhadores assumem sua autonomia e consciência. Surgem as caixas de auxílio mútuo, de assistência, sindicatos, organizações de resistência. Numa segunda fase, denominada "política intrauterina" começa a dar um avanço sobre um patamar político geral, porém de maneira ainda subalterna em relação ao Estado; surgem desse modo, os primeiros partidos políticos de trabalhadores, contesta-se a pseudo universalidade do Estado, denuncia-se seu caráter de classe, define-se uma contraposição a este Estado, porém ainda como parte que não se coloca como um todo. E, finalmente, um terceiro momento, chamado de fase "política extra-uterina", na qual os trabalhadores expressam a sua capacidade hegemônica em relação ao conjunto da sociedade e percebem a necessidade de substituir por inteiro o Estado burguês. Então se combinam os interesses dos trabalhadores com interesses de caráter geral, ligando-os a outros extratos da sociedade. Confrontam-se valores, idéias, novas formas de organização etc.
Considerando-se o inevitável reducionismo das esquematizações e ressalvados os limites da reflexão de um autor imerso em outra realidade, é inegável que o nosso partido apresenta, em linhas gerais, características da chamada "terceira fase". A campanha presidencial e a candidatura de Lula foram a expressão maior deste novo momento. Tal constatação, porém, se tomada de forma absoluta, pode nos levara profundos equívocos pois, neste novo patamar, reforça-se a tendência de considerar apenas o Brasil dos grandes centros urbanos, da vida sindical ativa e mobilizadora, dos movimentos sociais amplos e reconhecidos, da complexidade dos interesses e opiniões de uma sociedade civil articulada e organizada. Ora, esta é apenas parte da realidade de um país, onde 44 % de sua população vive em condição de pobreza absoluta, onde uma em cada três crianças sofre algum tipo de desnutrição, um país com 20% de analfabetos, onde 27,2 % da população economicamente ocupada recebe até um salário-mínimo por mês.
Nosso partido precisa retomar sua capacidade de indignar-se, combinando a responsabilidade de apresentar alternativas globais e realizáveis com a denúncia contundente, com uma boa pitada de impertinência e insolência. A capacidade de combinar a disputa política e ideológica, no mais sofisticado nível, com a presença dirigente no encaminhamento direto da luta com aparência exclusivamente "corporativa" é vital para o futuro partidário.
É preciso conhecer e participar das lutas do Brasil pré-cidadania. Nossa sensibilidade se expressará na exata medida que soubermos combinar a luta por "interesses" com a luta por "idéias", combinando estruturas que dêem conta, simultaneamente, de um partido e de um povo que estão - para voltar a Cerroni - tanto na fase política "intra-uterina" quanto "extra-uterina".
Merece também atenção no debate do 1º Congresso a noção, excessivamente simplista, de "Partido Dirigente". Apesar de unanimemente saudada como avanço, no 5º Encontro, pois teria superado a noção de "Partido Expressão/Reflexo" dos movimentos sociais - que nos reduziria a "representantes no campo institucional e parlamentar" destes movimentos -, tal formulação necessita ser relativizada e situada numa visão mais abrangente da disputa política que travamos. A formulação "Partido Expressão/Reflexo" era incapaz de dar conta da acirrada disputa com as classes dominantes, seus partidos e seus aparelhos de dominação. Trazia também uma idéia - equivocada - de que nosso partido conseguiria traduzir "naturalmente"o conjunto das lutas sociais e de que seus participantes, ao identificarem suas lutas expressas em nosso partido, a ele se incorporariam.
Neste quadro preciso, a concepção de "Partido Dirigente", formulada no 5º Encontro foi positiva. O problema é que a formulação limita-se à função dirigente. Se é verdade que os movimentos sociais expressam, simultaneamente, distintos níveis de consciência e participação, se concordamos que existem outros partidos nos campos democrático, popular e socialista, temos então que concluir que inúmeros setores sociais, ativistas e cidadãos estarão "sintonizados" com estas outras propostas partidárias. Mas, se admitimos uma sociedade civil complexa, com movimentos sociais diversos, a visão única e exclusiva de partido "dirigente" pode nos levar à incapacidade de dialogar com diferentes setores e movimentos. Discordo da visão de que as formas associativas, desenvolvidas por distintos movimentos sociais, expressam momentos "anteriores" - e "inferiores" - de participação política, e de que o grande e "superior" momento se concretizaria na adesão ao "Partido Dirigente".
O acúmulo de onze anos de construção partidária, as mudanças profundas que surgiram do Leste Europeu, com a derrocada do chamado socialismo real, e a posição defensiva política e ideológica em que se encontra a esquerda, pedem um esforço redobrado de reflexão e elaboração na construção de novas formas de participação e decisão para milhões de não filiados, e para milhares de filiados.
Neste quadro, toda e qualquer medida organizativa a ser adotada será, necessariamente, limitada e experimental. De maneira geral, devemos traçar políticas e formas organizativas que levem a uma maior centralização e unificação da militância que está participando diretamente dos movimentos sociais, reelaborando, aprofundando e atualizando nossas linhas políticas. "Nas relações com seus membros que ocupam espaços nos parlamentos e nos Executivos, o PT terá de operar uma profunda revolução, assumindo de vez sua face institucional, redefinindo o caráter do mandato e transformando essas esferas de atuação em verdadeiras instâncias deliberativas, onde o partido possa se reintegrar e se reencontrar, superando as diferenças de natureza e de ritmos de procedimento, que marcam instâncias partidárias, bancadas e Executivos" (Jornal do Congresso nº3, texto "Reconstrução").
A estas medidas centralizadoras de caráter geral e que reforçam uma estrutura de direção vertical, é preciso combinar, como necessária e complementar contra-parte, a total ampliação e flexibilidade das formas de organização de base. Seja por "grupo de trabalho, de estudo, de ação, de atuação; por plenárias de membros de uma região ou de um setor social ou profissional; por reuniões e encontros mais ou menos formais e periódicos de pessoas que se interessam por ecologia, ou por teatro, por defesa dos direitos humanos etc..." Não importa que o partido não tenha a todos "registrados" e "oficializados", que alguns se sobreponham, que surjam, cresçam e até desapareçam. Queremos clube de leitores, círculos, grupos de amigos, seja lá o nome que se dê. Esta é a questão central e imediata.
Outra medida que se faz necessária é estruturar as instâncias dirigentes, combinando uma parcela eleita - a partir de teses e programas de cunho geral - com outra parcela eleita federativamente, que contemple representantes de categorias, setores sociais, regiões, zonas, estados. A curto prazo, esta é uma das poucas medidas capazes de superar o fosso entre as direções partidárias os filiados, bem como de diversidade cultural, social e política do país.
Onze anos de luta política construíram e consolidaram um partido, uma "instituição" com uma identidade política apreendida indistintamente pelos amigos e inimigos. Ser "petista" tornou-se referência e projeta valores, idéias e posturas. Neste sentido, estão maduras as condições para a constituição de direções setoriais, diferentemente do momento de fundação, quando o partido precisava se afirmar como um todo e não como federação de movimentos ou de partidos. A constituição de direções setoriais é hoje condição para aprofundar o conhecimento das distintas realidades e lutas específicas, reelaborar as propostas e diretrizes partidárias gerais num patamar superior. É compromisso de participação e organização de base.
Retomar, absorver, traçar diretrizes, construir "vontades políticas" é condição indispensável para o reerguimento dos núcleos. Não como visão idealizada e exclusivista de participação partidária, mas sim como instrumentos concretos na disputa de propostas políticas e canais de diálogo e interlocução com os setores sociais organizados e, principalmente, com as amplas massas desorganizadas. A base para esta retomada, definida como prioritária, é dada pelas teses aprovadas no 5º e 7º Encontros Nacionais.
É preciso criatividade e flexibilidade de nossa estrutura partidária para os momentos específicos das disputas eleitorais. Todos concordamos que os momentos de maior vitalidade e participação partidária são os de campanhas eleitorais. Essa participação ampla e intensa deve ser entendida como um momento privilegiado - e concentrado - onde a chamada "grande política" aparece de maneira clara e global para amplos setores da população. Onde a maioria dos petistas, filiados, simpatizantes e eleitores, tem a oportunidade de se tornar ativa em sua contribuição ao projeto partidário estratégico. Pois bem, quem não leu e muitos redigiram - intermináveis relatórios de avaliação, onde, no infalível item "Construção Partidária" aparecia a frase: "apesar dos inegáveis avanços em termos eleitorais, é preciso reconhecer que, mais uma vez, não fomos capazes de traduzir esta votação em avanço e ampliação das estruturas partidárias, pelo contrário, o Diretório não funcionou, o núcleo desarticulou, o jornal parou" etc.
Se não mudarmos urgentemente, estes balanços, mais uma vez, proliferarão, no final do próximo ano. Mas, além de expressarem uma visão quantitativa, organicista e parcial da construção partidária, no fundo, mostram uma face, cuja matriz está na concepção de "Partido Dirigente" de intervenção. Somos incapazes de perceber a riqueza e potencialidade dos processos eleitorais, onde todo um setor da sociedade se reagrupa, se organiza e se referência em torno das candidaturas. Ao insistirmos, nestes períodos, em nossas estruturas insuficientes e formais, acabamos por estabelecer uma relação elitista e fechada com estes milhões que se aproximam do partido. Nos processos eleitorais devemos ser capazes de promover inflexões e de redimensionar nossas estruturas, por exemplo, reconhecendo os comitês eleitorais como legítimas instâncias partidárias. Somente assim seremos capazes de estabelecer relação com estes milhares ou milhões, num plano político mais geral, e que não se extinguirá após a contabilização dos boletins de uma.
É preciso construir uma "cultura" que garanta às instâncias dirigentes uma atuação coletiva e solidária e, ao mesmo tempo, uma profissionalização das funções e assessorias.
Diante do "descolamento" observado entre o perfil social dos quadros dirigentes em relação à nossa base, devemos construir normas que garantam composição heterogênea e diversificada para a eleição de dirigentes, inclusive com obrigatoriedade de rotatividade nas principais funções, bem como limites a reeleições consecutivas.
Sem dúvida, dezenas e dezenas de propostas surgirão ao longo do debate até o 1º Congresso.
Busquemos em nossa história as novas formas organizativas que precisam surgir. Nosso modelo esgotou-se. É todo um período, um ciclo histórico que se esgota. Prepararmo-nos para o novo milênio garantirá a afirmação plena de que "o Partido dos Trabalhadores não é o último partido comunista, mas sim o primeiro partido socialista de um novo momento da história" 1. "História que não chegou ao fim e que tampouco está pré-escrita, que será projeto consciente e livremente construído por homens e mulheres livres."
Cezar Alvarez é membro da Executiva da Nacional do PT.
Nota:
1. Marco Aurélio Garcia.