EM DEBATE

Quais devem ser os eixos do programa nacional de governo que o PT e as esquerdas apresentarão à sociedade nas eleições do próximo ano? Que peso deve ter na campanha o combate à corrupção e a luta pela democratização das instituições? Como combinar o tratamento prioritário à questão social com a retomada do crescimento econômico e o combate à inflação? Num mundo cada vez mais interdependente, como deve ser a política externa brasileira?

2001 vem se configurando cada vez mais, como afirmamos em nossa última edição, como a travessia para 2002. Para o PT, mais ainda que para os outros partidos, a definição das linhas programáticas centrais adquire caráter decisivo e merece um debate nacional amplo. Visando a contribuir com esse processo, convidamos para debater este tema quatro lideranças partidárias: o secretário de Formação do partido Joaquim Soriano, o deputado federal José Genoíno, o secretário de Cultura do município de São Paulo, Marco Aurélio Garcia, e o jornalista Wladimir Pomar.

O que está em jogo

PT: os desafios de 2002

Alternativa de esquerda

Crise e mudança

O que está em jogo

Quando, em 1993, o PT criou uma comissão encarregada de elaborar a proposta de programa de governo para a eleição presidencial do ano seguinte, a primeira tarefa que o grupo se deu foi a de elaborar uma análise das transformações ocorridas no Brasil e no mundo a partir de 1989 até aquela data. O Brasil de 89 era bem diferente daquele em que se daria a eleição de 94.

Em 1989 o Brasil vivia o fim de uma conjuntura excepcional. Os anos 80 haviam sido, do ponto de vista econômico e social, a "década perdida". Findo o regime militar e após o impacto da morte prematura de Tancredo, a sarneyzação do país lançou o sistema político em crise profunda, a ponto de não haver candidatura em 89 que reivindicasse a continuidade da "Nova República".

Os anos 80 foram no entanto uma "década ganha" do ponto de vista político. O país viveu um clima de efervescência sem precedentes, sobretudo devido à entrada de "novos personagens na cena política", para evocar a expressão do saudoso Eder Sader.

A derrota das esquerdas em 89 teve pesadas conseqüências. Collor deu início à abertura neoliberal da economia, que teve hesitante continuidade no governo Itamar Franco, ganhando impulso com a eleição de Fernando Henrique.

Se o Brasil de 94 diferia bastante daquele de 89, que dizer do Brasil de 2002 em relação ao momento em que FHC iniciou seu governo? Cinco anos de sobrevalorização cambial, associada a taxas de juros elevadíssimas e à abertura comercial e financeira irresponsáveis, desestruturaram e desnacionalizaram o sistema produtivo, ao mesmo tempo que provocaram profundas alterações na área financeira. A crise fiscal agravou-se com o crescimento exponencial da dívida interna e o aumento da dívida externa, e não foi resolvida pela venda massiva de ativos no celebrado "maior programa de privatização do mundo", que, por sua vez, retirou do Estado capacidade de planejamento estratégico, como se pode ver da catástrofe energética atual. O equilíbrio fiscal imposto pelo FMI estrangula estados e municípios, sacrifica investimentos fundamentais de infra-estrutura, corta os gastos sociais do orçamento, agravando mais a situação dos pobres.

<img class="wysiwyg-break drupal-content" title="" src="http://antigo.teoriaedebate.com.br/sites/all/modules/contrib/wysiwyg/plugins/break/images/spacer.gif" alt="" data-cke-saved-src="/sites/all/modules/contrib/wysiwyg/plugins/break/images/spacer.gif">

Esse quadro não permite o crescimento da economia. A competitividade internacional não arranca, nem mesmo depois das mudanças na política cambial. A vulnerabilidade externa mantém a economia em permanente sobressalto, tendo em vista as incertezas que rondam os mercados financeiros mundiais.

Todas essas mudanças alteraram o perfil das classes dominantes. Setores da burguesia industrial desapareceram ou se viram confinados à condição de rentistas. Aventureiros assumiram um papel de surpreendente preeminência no mundo econômico e financeiro. Médios, pequenos e microempresários quebraram ou se encontram sem perspectivas. Um programa alternativo tem de levar em conta a nova realidade do país, sob pena de propor transformações para um país que não mais existe.

As esquerdas e o PT têm duplo desafio. Devem apresentar um programa de efetiva e radical mudança para o novo Brasil. Ao mesmo tempo, devem fazer com que sua proposta, além de coerência e solidez internas, seja capaz de interpelar os corações e mentes de uma ampla maioria da sociedade. O programa tem de ser importante instrumento para vencer as eleições mas, sobretudo, para governar de forma distinta.

A frustrada experiência argentina da Alianza, que rifou as esperanças populares, realizando um governo tão conservador como o de Menem, deve servir de alerta para os que aspiram abrir um novo ciclo histórico para o país.

Tornou-se hábito à direita, mas inclusive em setores de centro-esquerda, afirmar que o PT "não está preparado para governar", posto que não possuiria programa e quadros, além de estar preso ao passado e desconhecer os constrangimentos internacionais. Esse sentimento, apoiado em uma visão apocalíptica da globalização, tem até mesmo uma vertente teórica de ultra-esquerda que considera ingênua a possibilidade do PT vir a realizar um programa de transformações mais radical.

Ora, a política, não desconhecendo a teoria, não se deduz dela. Nem do facilitário ideológico do neoliberalismo, nem de elaborações mais sofisticadas fundadas em análises sobre a "implacável lógica do capital". As grandes transformações históricas são obra de sujeitos que se movem "sobre condições dadas", mas que atuam e alteram essas condições. Por essa razão, a discussão programática reúne de forma inseparável a formulação de idéias e a criação de condições para a ação. Tudo isso supõe aprofundar o debate sobre as forças sociais capazes de sustentar o programa.

Um sentimento de mudança atravessa o país. Os que anunciavam o fim da "era Vargas" e o início de um novo ciclo histórico, beneficiando-se de um suposto Renascimento em curso no mundo, viram rapidamente seu sonho desvanecer-se. A aventura neoliberal tornou a América Latina e o Brasil mais pobres, afastou mais o país e o continente do sonho basbaque de participar do banquete do Primeiro Mundo.

O "governo dos intelectuais" amesquinhou o debate de idéias, tentou desqualificar seus oponentes, mediocrizou seus próprios ideólogos. Os atuais governantes lançaram mão dos expedientes mais tradicionais do cambalacho político, toleraram e encobriram a corrupção. Obstruem sua investigação e tentam apresentar os que a denunciam como vulgares moralistas.

Assim, o sentimento de mudança é profundo e complexo. Atinge as raízes de um modelo que não comporta remendos. A agenda programática das esquerdas no Brasil exige o debate de três grandes questões: um novo modelo econômico para enfrentar os grandes desafios sociais, a radicalização da democracia política a partir de um novo enfoque da democracia econômica e social e a redefinição do lugar do Brasil no mundo.

O novo modelo econômico, distante do nacional-desenvolvimentismo – concentrador de renda e de poder e oposto ao neoliberalismo –, deve partir da necessidade de uma forte retomada do crescimento, alavancada pela distribuição de renda que será função de reformas sociais capazes de viabilizar um amplo mercado de bens de consumo de massas. Essa política terá efeito irradiador sobre a economia e exigirá uma discussão aprofundada sobre um novo padrão de financiamento. Redistribuição dos sacrifícios e retomada pelo Estado de seu papel regulador exigirão amplo debate e mobilização nacionais, tendo em vista as alterações que provocarão nas relações de força. Um plano de transição se impõe. Não só para não produzir desequilíbrios macroeconômicos, como para atender fortes demandas sociais, muitas das quais deverão ser objeto de políticas compensatórias até que as reformas estruturais produzam seus efeitos.

O novo modelo econômico será comandado pelas demandas sociais, o que não se confunde com populismo. Difere radicalmente, no entanto, da atual política econômica, dominada pela obsessão do ajuste não importando os sacrifícios sociais que impõe, ou os graves comprometimentos que traz para uma estratégia de desenvolvimento.

Do ponto de vista político, o país necessita de uma sucessão de choques democráticos. É necessário ampliação e garantia dos direitos humanos. Uma reforma política e eleitoral viabilizará mecanismos de representação mais consistentes, como fidelidade partidária, combate à interferência do poder econômico nas eleições, respeito aos legislativos, com a limitação de medidas provisórias. Mas ao mesmo tempo é necessário criar mecanismos de controle social do Estado, seja por meio dos orçamentos participativos, seja por intermédio de conselhos que regulem e controlem a formulação e implementação de políticas públicas. O mundo do trabalho deverá ter maior participação na regulação da vida econômica, seja na perspectiva macro, seja na micro. Deverá ser democratizado o acesso aos meios de comunicação. A ampliação da cidadania passa pela garantia de direitos sociais, como aqueles outorgados por meio de políticas públicas de educação, saúde, habitação, cultura etc.

Finalmente está o problema do lugar do Brasil no mundo. Os níveis atingidos pelo tipo de globalização econômica desenvolvido nas últimas décadas criaram constrangimentos que não podem ser desconsiderados. Um projeto nacional exige claras definições da política externa, ao mesmo tempo que a política externa supõe a sua existência.

O Brasil tem de pensar seu crescimento no marco de uma nova política de regionalização que privilegie a área sul-americana, com ampliação e redefinição do Mercosul, de maneira a transformá-lo em ponto de convergência de políticas de desenvolvimento que permitam à região enfrentar melhor os constrangimentos internacionais. A Alca, tal como desenhada, não nos interessa. Um governo de esquerda deverá apresentar uma agenda alternativa ao projeto atual, colocando os EUA em situação defensiva.

Ao mesmo tempo, o Brasil desenvolverá uma política de reaproximação com a África, especialmente com a África do Sul, e reforçará relações bi e multilaterais com países como Índia, China, Irã e Rússia, independentemente das diferenças que possua com os regimes políticos aí imperantes.

Trata-se de contribuir para o surgimento de um mundo mais equilibrado, onde tenham um curso importante as políticas de paz, de respeito aos direitos humanos, ao meio ambiente à diversidade étnica e cultural.

Marco Aurélio Garcia é secretário de Cultura do município de São Paulo e membro da Comissão Executiva Nacional do PT.

PT: os desafios de 2002

Para enfrentar os desafios de 2002, devemos primeiro reconhecer que o neoliberalismo foi vitorioso em nosso país. Sua ideologia ainda detém a hegemonia. Sua política de privatizações, desemprego, pauperização e fragmentação crescente da classe trabalhadora e da classe média, concentração da riqueza nas elites burguesas e destruição do meio ambiente foi vitoriosa. E o capitalismo corporativo transnacional conquistou a supremacia no rearranjo do pacto de dominação sobre nossa sociedade.

O neoliberalismo, ou o capitalismo em sua forma neoliberal, elevou as forças produtivas a um alto nível e tornou o mercado mundial um oligopólio corporativo e um cassino especulativo. No Brasil, ele concentrou suas empresas de alta tecnologia em alguns pólos, quebrou o antigo parque industrial e tecnológico, causou regressão nas cadeias produtivas, destruiu imensas forças produtivas e criou um exército industrial de reserva miserável, de dimensões até então desconhecidas em nossa história.

Fez tudo isso sem uma resistência séria, em virtude do seu sucesso ideológico. Agora, porém, sucumbe sob seu próprio peso. De sustentado pelo trabalho dos operários, o capital se vê diante da necessidade de sustentar seus ex-escravos ou deixá-los morrer de fome epidêmica.

O absurdo de riquezas colossais coexistindo com imensas massas proletárias pauperizadas tinha que colocar os miseráveis ante a opção de morrer no desamparo ou resistir e lutar.

Esse outro lado do sucesso neoliberal empurra as classes populares para a luta e a esquerda para a esquerda. São trabalhadores que assumem empresas falidas em autogestão para reproduzir-se. Ou setores da sociedade em grandes manifestações contra o neoliberalismo e/ou contra o capitalismo, como o Fórum Social Mundial. Ou governos pobres que se articulam regional, nacional e internacionalmente para desenvolver-se. Ou o eleitorado que leva partidos de esquerda a governar municípios e estados, num fenômeno também desconhecido na história brasileira.

As eleições de 2000 expressaram esse crescimento da resistência política das classes populares. São sinais promissores que podem diluir-se, porém, se não forem catalisados por uma estratégia adequada às possibilidades históricas da sociedade brasileira, e por táticas capazes de mudar a correlação de forças vigente.

Não há saída para a crise social dentro do capitalismo. Este pode até encontrar um substituto para o neoliberalismo, mas não solucionará o desemprego e a miséria, duas chagas funcionais do capital corporativo. Mesmo que ingresse em nova via, esta acabará por reproduzir os mesmos graves problemas. Paralelamente, a destruição do parque produtivo nacional e a necessidade de criar milhões de empregos e acabar com a miséria, exigem a utilização de todas as formas de propriedade capazes de desenvolver as forças produtivas do país.

<img class="wysiwyg-break drupal-content" title="" src="http://antigo.teoriaedebate.com.br/sites/all/modules/contrib/wysiwyg/plugins/break/images/spacer.gif" alt="" data-cke-saved-src="/sites/all/modules/contrib/wysiwyg/plugins/break/images/spacer.gif">É essa peculiaridade que coloca na ordem do dia da estratégia tanto a necessidade do socialismo para superar o capitalismo, quanto o aproveitamento de formas capitalistas para o desenvolvimento das forças produtivas. O socialismo, relacionado às formas sociais de resistência contra o capital, não pode ser desligado da reconstrução agrícola e industrial, da superação do desemprego e da miséria, da defesa da independência nacional e da democratização do poder. Sem ter uma perspectiva desse tipo, estaremos fadados a vagar nos labirintos das vias puramente capitalistas.

Por outro lado, a conjuntura evolui para uma situação idêntica à de 1989. Há os mesmos sinais de divisão na burguesia, de perda da iniciativa política do governo e de uma clara tendência de votação na esquerda, com a adição de movimentações esporádicas, mas crescentes, das camadas populares. E, como então, a conquista do voto das grandes massas trabalhadoras e marginalizadas ainda é o desafio maior, embora a presente fragmentação dessas classes leve muitos a supor que a conquista do voto e da simpatia da classe média e de setores burgueses seja o fundamental em 2002.

A classe média e setores da burguesia adotam a neutralidade ou são atraídos pela esquerda apenas quando esta tem força social e política. Embora programas amplos ajudem, o fator decisivo para compor alianças com esses setores é a força dos setores populares. É isso que coloca diante do PT e da esquerda a necessidade imediata de reconstituir a força social dos trabalhadores, como condição para a mudança da correlação de forças. Com a classe trabalhadora e os marginalizados fragmentados não é possível travar uma batalha séria pelo governo no Brasil.

Hoje contamos, para essa reconstituição, com um instrumento e uma novidade histórica que não dispúnhamos há dez anos: muitos governos populares. Estes, a não ser que queiram apenas administrar o capitalismo, deveriam ter como tarefa imediata implementar modelos alternativos massivos de desenvolvimento, com base na economia familiar rural e na economia informal urbana, de modo a estimular tanto experiências embrionariamente socialistas (autogestão, associativismo, cooperativismo, gestão democrática de estatais etc), quanto a criação de um vasto capitalismo democrático de micro e pequenos empresários, ambos gerando um grande contingente de trabalhadores capazes de resgatar sua dignidade de classe social independente.

No entanto, se essa é uma tarefa imprescindível, ela não é suficiente. Desde agora, o PT e seu candidato mais provável precisam ter um discurso e uma ação cujos eixos operem, no simbolismo das grandes camadas populares, seu desejo de mudança e o sentido que pretendem para essas mudanças.

Um discurso e uma ação que correspondam, em primeiro lugar, à necessidade de um novo modelo de desenvolvimento, propondo assentar um milhão de famílias rurais a curto prazo, combinando reforma agrária, colonizações agrícolas populares, fomento à agricultura e à agroindústria familiares e ao cooperativismo rural e outras ações que a iniciativa popular aponte. E liberar e ajudar os milhões de microempresários e trabalhadores que sobrevivem na clandestinidade da economia informal, fazendo-os desenvolver-se, aumentar sua produção, criar novos empregos e ampliar o mercado interno.

<img class="wysiwyg-break drupal-content" title="" src="http://antigo.teoriaedebate.com.br/sites/all/modules/contrib/wysiwyg/plugins/break/images/spacer.gif" alt="" data-cke-saved-src="/sites/all/modules/contrib/wysiwyg/plugins/break/images/spacer.gif">Um discurso e uma ação que correspondam, em segundo lugar, à necessidade de reconquistar nossa independência nacional, com a negativa de participar da Alca, o reforço do sistema financeiro público para estimular o desenvolvimento interno, a suspensão do pagamento da dívida externa, o estabelecimento de contratos de benefício mútuo para os investimentos estrangeiros, a reconstrução das estatais nos setores estratégicos da economia e a luta por uma nova ordem política e econômica mundial de igualdade e de paz.

Um discurso e uma ação, em terceiro lugar, que correspondam à profunda aspiração de democracia, com mecanismos de participação popular e a substituição do monstrengo jurídico em que foi transformada a atual Constituição. A convocação de uma Assembléia Constituinte, eleita exclusivamente para debater e aprovar uma nova Constituição, é condição essencial para um governo de mudanças democráticas e populares.

Um discurso e uma ação, em quarto lugar, que correspondam ao arraigado desejo popular de combate férreo à corrupção, através da democratização das estatais, do controle social sobre os órgãos públicos – executivos, legislativos e judiciários – e de uma legislação que torne as penas tão mais pesadas quanto mais elevados forem os postos ocupados pelos corruptores e corrompidos.

Desenvolvimento para criar empregos, reduzir a miséria e a violência e dar segurança a todos; soberania nacional para defender os interesses da nação e de seu povo; democracia com participação popular e uma Assembléia Constituinte, para ter uma Constituição que defenda os pobres e oprimidos; e, combate à corrupção com leis mais severas contra os delitos dos ricos e poderosos. Esses os quatro eixos que deveriam marcar o discurso e a ação tática do PT e orientar nosso programa de governo, de modo a contribuir real e praticamente para conquistar o coração e a mente dos trabalhadores e marginalizados, os que verdadeiramente decidem as eleições no Brasil.

Finalmente, há uma crise séria no horizonte e é preciso impedir as tentativas de resolvê-la com a mesma receita do FMI que está destruindo nossa economia e nossas classes populares. Aprendendo com 1994 e com a experiência argentina, deveríamos apresentar um plano emergencial anticrise, tendo como base justamente os eixos acima, que permita ao PT manter a iniciativa política e estar preparado para cenários turbulentos.

Wladimir Pomar é jornalista, membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate

Alternativa de esquerda

O Brasil vive uma crise de governabilidade que decorre da conjugação de vários fatores. Trata-se de uma crise de modelo combinada com crise econômica, crise do modo de governar, crise político-institucional e crise moral. Crise de modelo, no sentido de que o eixo estruturante do projeto de poder do governo FHC se assentou apenas sobre as reformas liberalizantes e sobre as privatizações. Esgotado este ciclo, o governo não tinha mais nada a oferecer à sociedade.

É neste contexto que o PT está desafiado a oferecer uma alternativa de esquerda, capaz de diferenciar-se de outras alternativas de oposição que estão se gestando. A premissa é a de que o Brasil, no seu desenvolvimento, não conseguiu maturar a constituição plena de um Estado nacional. Na Europa e nos EUA, já no início do século 19, os contornos dos projetos nacionais estavam definidos pelas suas elites. No Brasil, somente a partir da década de 30, com o getulismo, se esboçaram alguns elementos de projeto nacional. Subentende-se aqui por projeto nacional o conjunto de vetores sociais, políticos, econômicos e culturais que articulam as noções de sentido e de destino de uma sociedade unida e organizada num Estado independente, num ambiente internacional formado por individualidades estatais.

Alguns dos principais pilares do Estado nacional autárquico, erguidos na era Vargas, foram demolidos pelas reformas neoliberais implementadas pelos governos Collor e FHC. À medida que chegamos ao século 21, caracterizado por uma realidade na qual as figurações tradicionais do Estado nacional mudaram profundamente, o desafio é se o nosso projeto se articula com a reconstituição de premissas inatas do Estado-Nação, ou se um projeto de esquerda deve transcendê-las, lançando as bases de um novo modelo de Estado. Há que se considerar que estamos inseridos no contexto de uma economia internacionalizada e de uma realidade na qual a resposta a uma série de problemas que antes estavam subjacentes ao Estado nacional hoje precisa ser dada a partir de uma relação de interdependência, numa coletividade de Estados associados em formas complexas.

A caducidade dos parâmetros tradicionais do Estado-nação – no qual podem se inserir as experiências do reformismo social-democrata, do liberalismo tradicional, do socialismo real, dos nacionalismos, do nacional- desenvolvimentismo, entre outras – e o aparente impasse do modelo neoliberal indicam que a esquerda deve formular as bases de um novo modelo de Estado. No cenário que está se configurando para 2002, pode se articular um conjunto de forças suscetível de tangenciar um programa nacional-desenvolvimentista. A eventual candidatura de Itamar Franco poderá ser seu foco aglutinador. A de Ciro Gomes, ao que tudo indica, ficará num meio-termo entre o nacional-desenvolvimentismo e o projeto neoliberal.

Um projeto de esquerda deve articular cinco grandes eixos estruturantes: 1) definição de uma concepção de Estado; 2) um projeto de desenvolvimento econômico e de repactuação social; 3) inserção e relação do Brasil na economia internacionalizada; 4) reforma do sistema tributário e federativo; 5) reforma política e institucional. A crise do Estado nacional e a perda de parcelas de soberania, tanto para agências de governabilidade internacionais quanto para estruturas de poder e agências intra-estatais, estabelecem a exigência de redefinir o papel do Estado. Outro fator que enfraquece sua ação e a efetividade das normas diz respeito ao amplo processo de desregulamentação e de orientação da economia para o mercado. Restaurar a autoridade do Estado como centro legítimo de definição de normas e reconstituir a governabilidade sobre várias esferas que hoje caíram sob o domínio de poderes privados e particularistas são necessidades que se impõem para recuperar o sentido civilizatório do processo social.

Por outro lado, se é verdade que o Estado já não dispõe de instrumentos poderosos de intervenção na economia, isto não significa que não haja necessidade de regulação. Num contexto em que a produção econômica se define pela intervenção dos insumos do conhecimento e da tecnologia, em que se caracteriza pela mobilidade do capital e pela desregulamentação das relações de trabalho, o Estado deve desempenhar novas funções. Mediar conflitos, impedir que a modernização desestruture coletividades e estabelecer contrapartidas ao capital são algumas das novas tarefas. Nesses processos de modernização da produção, o Estado deve desempenhar um novo papel de indutor, gerindo programas de qualidade, principalmente para as pequenas e médias empresas, requalificando a mão-de-obra e buscando estabelecer uma nova regulamentação das relações de trabalho. Adensar as cadeias produtivas existentes, estruturar novas, coordenar a competição, impedindo que ela seja destrutiva, são novas esferas de articulação da ação do Estado. Numa economia internacionalizada, este passa a cumprir um papel decisivo na articulação e inserção dos setores dinâmicos da produção no contexto dos mercados globais. Definir interesses nacionais, articulá-los internacionalmente e apoiá-los com uma diplomacia comercial competente passaram a ser novas atividades estratégicas. O Estado deve também apoiar, orientar e financiar projetos de produção cooperativa, incentivando as variadas formas de economia solidária. Deve cumprir, ainda, um papel estratégico no financiamento da ciência e da tecnologia e na modernização da infra-estrutura.

O novo modelo econômico deve ter no desenvolvimento sustentável e no crescimento com distribuição de renda os seus eixos. Este modelo implica a diminuição da vulnerabilidade e da dependência externas, a orientação dos investimentos externos para o setor produtivo e para as exportações, um novo padrão de investimentos públicos e de financiamento da produção e a renegociação da dívida pública em parâmetros compatíveis com as necessidades do nosso desenvolvimento. A distribuição de renda e o combate à pobreza não podem ser pensados fora do eixo do desenvolvimento: crescer e distribuir renda deve ser um movimento combinado com a recuperação da capacidade do Estado de oferecer políticas públicas, principalmente saúde e educação universal básica e de qualidade. Adotar programas de renda mínima, de recuperação dos salários, alimentares, entre outros, compõe um conjunto de medidas que articulam o desenvolvimento econômico e social.

Para que o Brasil tenha uma relação adequada com o mundo globalizado, devemos definir interesses e objetivos estratégicos e operar instrumentos e forças políticas e econômicas para realizá-los. Os atuais termos da globalização são desfavoráveis aos países em desenvolvimento. Por isso, além de defender nossos interesses, somente uma nova correlação de forças internacional poderá redefinir os parâmetros das relações internacionais. Construir um bloco de forças capaz de exigir contrapartidas e de condicionar a agenda de negociações constituiu-se fator decisivo para o desenvolvimento das economias atrasadas. É a partir deste enfoque que o Brasil deve definir sua relação com a Alca e com as agências internacionais como OMC, FMI etc. Ao mesmo tempo que não pode aceitar uma relação de dependência e de subalternidade, o Brasil não deve se isolar do movimento de internacionalização da economia e das agências internacionais de governabilidade.

Um dos pressupostos imprescindíveis do desenvolvimento sustentado com distribuição de renda consiste na reforma tributária e do pacto federativo, que elimine o caráter regressivo da tributação e as distorções centralistas e assimétricas da federação. Impõe-se acabar com os impostos cumulativos, racionalizar o sistema tributário, desonerar de cargas tributárias excessivas o trabalho, a produção e as exportações e introduzir o princípio da justiça fiscal com a progressividade. A repactuação federativa é necessária para acabar com as conseqüências destrutivas da guerra fiscal, para conferir mais autonomia aos entes federados, favorecer o desenvolvimento regional e democratizar mais o poder, colocando-o mais próximo e sob o controle dos cidadãos.

Os principais pontos de uma reforma política e institucional democratizadora são: adoção do financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais; fidelidade partidária; mudança no sistema eleitoral com a adoção do voto proporcional em lista partidária; redefinição da representação dos estados na Câmara Federal; fim da imunidade parlamentar para crimes comuns; limitação da edição de medidas provisórias; reforma do Judiciário com controle externo e transformação dos Tribunais de Contas em auditorias contábeis subordinadas aos legislativos. Alargar a esfera da democracia participativa e de outras formas de controle do Estado pela sociedade também é imprescindível à radicalização da democracia, com novas instituições transparentes, capazes de inibir as práticas da corrupção. A participação dos consumidores nas agências de regulação e sua completa reformulação são exigências que visam universalizar serviços e garantir sua acessibilidade e qualidade. Estas são preliminares de um programa para que um governo de esquerda, apoiado por uma nova maioria política e social, realize as mudanças que o Brasil precisa.

José Genoino é deputado federal pelo PT/SP.

Crise e mudança

A crise do governo Fernando Henrique é parte de um cenário mundial de impasses e crescente contestação do projeto neoliberal, que está alterando a correlação de forças e o quadro geral das lutas políticas em benefício dos setores populares.

Não estamos frente a um simples desgaste eleitoral do governo, mas perante a crise da expressão nacional de um projeto internacional. Nosso programa e nosso discurso devem, para vencermos em 2002, estar balizado por estes dois aspectos.

Devemos ecoar e amplificar a contestação internacional da legitimidade da globalização neoliberal. Revoltas populares sucedem-se em diversos países, a instabilidade crescente da economia mundial retira legitimidade do projeto neoliberal e é visível desde fins de 1999, com as manifestações de Seattle, que começa a se organizar uma resistência internacional às políticas regressivas. Tudo isso já levou a vitórias importantes, como o bloqueio do "Acordo Multilateral de Investimentos" e da abertura de uma nova rodada de liberalização do comércio internacional na Organização Mundial do Comércio. A globalização das resistências ao neoliberalismo abre também a oportunidade para o desenvolvimento de um novo internacionalismo e, no interior deste movimento, para a reconstrução de uma alternativa socialista.

O processo é desigual, e os militantes que animam suas diversas frentes têm perspectivas distintas, mas o lema "o mundo não é uma mercadoria" ganha cada vez mais força. O Fórum Social Mundial mostrou que há amplas possibilidades de convergência deste movimento em torno da idéia de que um outro mundo é possível. A realização do Fórum Social em 2002 representará um maior esforço na formulação de alternativas e estas terão, certamente, incidência no debate eleitoral brasileiro.

Devemos catalisar as aspirações de mudança de vastos setores da população, ampliadas pela crise de projeto do bloco no poder. As políticas neoliberais têm perdido espaço desde que a crise financeira internacional atingiu o país em 1998-99. A crise cambial abalou definitivamente a imagem de que a economia estava sob controle e o desgaste que isto representou para FHC não foi mais revertido, solapando a legitimidade do governo. Desde então, as mobilizações sociais têm crescido, com a retomada das lutas sindicais e no campo, a Marcha dos Cem Mil a Brasília em 1999, os protestos populares durante as comemorações dos 500 anos e as manifestações contra a corrupção e o "apagão" em junho deste ano. O resultado das eleições municipais do ano passado, quando o PT obteve importantes vitórias, já expressava este novo quadro político.

Neste ano aumentou o descrédito dos partidos que sustentam FHC, cada vez mais identificados com a corrupção. A crise energética assumiu o primeiro plano: o país descobriu que o governo ignorou sucessivos alertas para a gravidade da situação e toda a população está tendo que pagar o preço disso. E como a economia brasileira está cada vez mais vulnerável aos humores dos capitais especulativos, o cenário econômico internacional apenas promete dificuldades.

O governo está colhendo o que plantou. A corrupção, a dependência econômica e o enfraquecimento dos serviços públicos estatais são características centrais do modelo vigente.

O bloco no poder oferece a continuidade do modelo, visível na discussão sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Com a Alca o Brasil perderá tudo que acumulou em meio século de construção nacional.

Nestes marcos, nosso programa e nosso discurso devem evidenciar os impasses a que as elites nos conduziram e mostrar que outro Brasil é urgente. Defender um outro Brasil significa, portanto, manter o ataque em toda escala ao neoliberalismo, ao governo federal, às forças que lhe dão sustentação e aos compromissos que firmou. Mas denunciar também os limites das oposições burguesas, seus compromissos conservadores e sua incapacidade de atender aos interesses das maiorias nacionais.

O PT estará tão mais preparado para o confronto eleitoral quanto mais definido e firme estiver em defesa dos interesses dos trabalhadores e dos setores populares, de uma política de alianças de esquerda e de um programa de reformas estruturais do país. Este programa só poderá ser realizado em confrontação com a aliança do latifúndio, dos oligopólios financeiros e do grande capital internacional, a base de sustentação do atual governo e do projeto neoliberal. Sua sustentação só pode ser assegurada pela participação política democrática de dezenas de milhões de homens e mulheres e seu envolvimento na implantação destas reformas, bem como pela solidariedade que despertar e puder catalisar no movimento contra a globalização neoliberal.

Abriu-se uma brecha para passarmos à ofensiva, derrotarmos o bloco no poder e assumirmos a direção do governo central e de um número maior de governos estaduais. O PT acumulou o patrimônio da resistência popular ao programa neoliberal, uma credibilidade que pode se expressar eleitoralmente na votação em nossos candidatos. Produzir uma alternativa de governo e mudar o país depende da aliança social e política que construirmos fundada num programa democrático e popular.

Lembremos que uma das conclusões extraídas do Fórum Social Mundial foi a de que "Davos e Porto Alegre representam dois projetos de civilização incompatíveis". Se não rompemos com a lógica atual do capitalismo, não apenas não poderemos resolver os problemas básicos sentidos pelo povo, como não evitaremos que se aprofundem.

Com o avanço das críticas ao neoliberalismo, a defesa do socialismo volta a encontrar espaço no debate político. Nossas propostas de transformação da sociedade se inscrevem em uma lógica coletiva, solidária, democrática, antimercantil e, portanto, socialista. Isso não é apenas uma perspectiva teórica, mas a lição decisiva que devemos tirar das experiências mais importantes que desenvolvemos aqui no Brasil.

Tem um caráter socialista a prática dos trabalhadores quando, por meio da luta, constroem formas de organização superiores, avançam em sua unidade e conquistam a independência política frente à burguesia. O mesmo se dá com a prática de participação popular das administrações petistas que colocam esta questão como central, onde o controle público sobre o Estado começa a ser exercido diretamente pela população. Nesta forma superior de democracia, o cidadão e a cidadã não mais limitam sua participação política ao ato de votar em dia de eleição, mas desenvolvem uma cidadania ativa em que, contra a lógica de uma sociedade capitalista, é reduzida a distância entre governantes e governados, são combatidos os preconceitos tecnocráticos e é criada uma nova cultura de participação e de responsabilidade coletivas no trato da coisa pública.

Temos, igualmente, desenvolvido experiências práticas de apropriação crítica dos frutos das inovações técnicas, por meio do controle do uso das plantas transgênicas ou da difusão generalizada dos softwares livres, através da conquista do acesso aos medicamentos necessários à vida ou do uso criativo da internet para a organização internacional da luta contra a globalização capitalista. E também tem um caráter socialista a prática de luta radical dos movimentos sociais, em que os excluídos atuam diretamente para transformar o mundo, mas onde também, quando vitoriosos em suas reivindicações imediatas, desenvolvem um aprendizado coletivo e constroem formas de economia solidária.

A síntese destas experiências exige um novo Estado para um novo país. Isso só será possível se formularmos claramente uma proposta de reorganização do Estado brasileiro segundo princípios democráticos, a partir de uma visão não liberal de democracia, assentada na garantia e na ampliação dos direitos, na crítica ao predomínio dos princípios mercantis, e na constituição de uma esfera pública cada vez mais estruturada por processos de democracia direta e participativa. Sem uma cultura que dignifique o que é público, sem questionar a fundo e abertamente os privilégios do grande capital e da grande propriedade fundiária, sem reconstruir as políticas sociais não é possível fazer um novo Brasil. É a partir de tudo isto que poderemos construir um novo modelo de desenvolvimento econômico e tecnológico sustentável, de crescimento com distribuição de renda e redução das desigualdades regionais.

Formulada para um país da periferia, nossa proposta tem de incorporar em seu centro os temas da soberania nacional e do apoio à construção de uma nova ordem internacional. A recusa à Alca deve dar o impulso para a retomada histórica de um projeto latino-americano independente do imperialismo norte-americano.

Joaquim Soriano é secretário nacional de Formação Política do PT.

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