EM DEBATE

A identidade, o perfil ideológico, a composição orgânica, as relações com os movimentos de massas, as estratégias, a organização do poder. A discussão sobre o caráter do Partido dos Trabalhadores dá um salto de qualidade e volta a se colocar na ordem do dia. A seguir, os artigos dos três debatedores convidados: Francisco Weffort, Wladimir Pomar e Tarso Genro

Consolidar o partido, construir a democracia

Atos de hoje constroem o amanhã

Um novo partido socialista e de massas

Consolidar o partido, construir a democracia

"E o PT, a que veio?" Esta é uma pergunta não apenas de militantes mas também, e talvez principalmente, dos simpatizantes do partido. Inquieta também as demais forças políticas, nossos eventuais aliados e, por certo, nossos adversários. E uma indagação que surge tanto da história particular do PT quanto do quadro mais amplo da crise econômica e da transição conservadora.

As definições do 5º Encontro Nacional, de modo mais claro que as dos Encontros anteriores, ligam a concepção do PT como partido de massas às tarefas democráticas e populares do momento atual. Isso nos permite perspectivas de políticas de aliança e, portanto, de crescimento da luta democrática e popular junto com outras forças políticas, como momento de afirmação (não de perda) da identidade política e social do nosso partido. Isso já é algo como definição do perfil do PT. Mas seria ingênuo imaginar que definições de nível de direção possam ser mais do que indicações e diretrizes gerais. Elas valem como ponto de partida de um processo de definição que, porém, só se realiza de modo pleno no debate partidário e só se completa nas lutas que o partido desenvolve junto às massas dos trabalhadores, em favor das propostas que têm a apresentar para a solução dos problemas econômicos e políticos do país.

Que fique claro, portanto, desde logo, que o perfil político e ideológico de um partido político, por mais nítido que seja, não pode ser definido com a precisão do alfaiate recortando o tecido, na risca do figurino. Enganam-se os que abusam das metáforas militares para falar das lutas políticas. Com as possíveis exceções dos partidos fascistas, cujos perfis dependem quase que exclusivamente da palavra do duce (do führer), ou dos partidos stalinistas, caracterizados pela submissão a direções habituadas a um centralismo sem democracia, o perfil político e ideológico de um partido é sempre geral. Linhas políticas, próprias de partidos democráticos, são coisas muito diferentes das diretrizes militares (ou quase), próprias de partidos fascistas e stalinistas. Toda determinação militar é estrita e imperativa, toda linha política é geral e sempre dependente da persuasão. Por muito definida que possa (e deva) ser, uma linha política está sempre carregada de proposições que são apenas aproximações à realidade. Se é difícil definir um arco de alianças políticas e sociais para um período histórico determinado - e esta foi uma das principais tarefas do 5ºEncontro - mais difícil ainda é definir o perfil ideológico (ou organizatório) de um partido que, como é o caso do PT, tem que se esforçar por estabelecer perspectivas históricas que vão muito além do período atual.

Algumas polêmicas fora de foco

Se o caráter de massas do PT não fosse desejável, seria em todo caso inelutável. Os partidos de massa são os que melhor se adequam às necessidades da representação e da participação dos trabalhadores na política das sociedades modernas. Mas é mais do que isso: ou o PT se torna um partido de massas, aberto e democrático, no espírito da sua proposta original de 1979/1980 (que o 5ºEncontro em boa hora reafirma), ou não chegará a ser partido. Se negar a sua intenção inicial de partido de massas, acabará negando a sua própria razão de ser. E, portanto, desmobilizará os seus próprios criadores.

As idéias que estão em nossa origem como partido são as que temos a retomar, agora, para dar um novo passo adiante. É preciso, portanto, passar rápido sobre certas polêmicas que proliferam no interior do nosso partido. Entre estas menciono uma: partido de massas versus partido de quadros. Esta polêmica trazia embutida uma outra, também igualmente equivocada, a de partido de massas versus partido de lutas. E, recentemente, surgiu do mesmo bouquet uma nova flor diante da necessidade de definir melhor o perfil ideológico do PT, surgem por aí os que querem que ele se defina como um partido marxista-leninista. Como se vê, sempre existem os que insistem nos mesmos erros, embora com novas palavras.

Tudo isso já deveria estar muito claro entre nós. Partidos de massas têm que contar com uma significativa contribuição de quadros. E não podem, evidentemente, deixar de ser partidos de lutas. E têm que ter horizontes ideológicos definidos o bastante para permitir alguma unidade de perspectiva, não apenas aos seus quadros, mas também aos seus militantes de base e ao conjunto dos que aderem ou simpatizam com ele.

Torna-se inevitável, entretanto, anotar algumas palavras sobre a idéia despropositada que, no momento, persegue a cabeça de alguns companheiros: a de se definir o PT como um partido marxista-leninista. Chego até a duvidar de que haja alguém que pense nisto a sério. Trata-se de uma idéia que atropela a originalidade da experiência do PT, na intenção marota (e definitivamente não-marxista) de pretender definir a ideologia por decreto. Querem se aproveitar, de modo oportunista, de uma angústia de identidade que o partido vive neste momento, como parte necessária do seu processo de formação. Ao invés de insistirem em conquistar o poder no partido por decreto (poder apenas teórico, é verdade), não seria melhor que se empenhassem em ajudar o partido, com as luzes do marxismo ou com quaisquer outras de que possam dispor, a entender melhor o processo histórico do qual nasceu e no qual lhe é dado atuar?(1)

Temos necessidade de melhor definição do partido no sentido ideológico, sim; mas isso não significa que tenhamos qualquer necessidade de definição do partido no sentido teórico ou filosófico. Não percebem estes pretensos marxistas que estão confundindo teoria (e filosofia) com ideologia? Supondo que cometêssemos esta lamentável confusão e que adotássemos a teoria (e a filosofia) marxista como pensamento oficial do partido, o que faríamos a seguir com os socialistas não-marxistas que se encontram no PT? O que faríamos por exemplo com os católicos do PT? Expulsaríamos todos ou passaríamos a dizer que o nosso marxismo acredita em Deus? O que faríamos com muitos de nossos militantes de base operária, que nem mesmo chegaram a uma convicção ideológica de tipo socialista? E os líderes operários, magníficos lutadores que ocupam posições de direção no partido sem que jamais tenha ocorrido a ninguém pedir-lhes certificados de marxismo? Demitiríamos todos de suas funções de direção até que estudassem teoria marxista, ou passaríamos a mentir, dizendo que eles são marxistas sem terem lido Marx? Substituiríamos todos eles pelos quadros que se acreditam intelectuais orgânicos do proletariado apenas porque leram meia dúzia de livros e manejam um jargão arrevezado e pretensamente científico? Felizmente, o PT conta em suas fileiras com muitos marxistas verdadeiros, que sabem distinguir entre teoria e ideologia e, portanto, sabem que é insensato pedir ao PT que se defina no sentido teórico. Como bons marxistas, aprendem com a experiência histórica e sabem que o mais difícil de tudo na política é que os partidos se encaminhem, de modo correto, no sentido prático. Como bons marxistas, sabem que o PT não nasceu de nenhuma definição teórica, mas de uma intuição prática que se revelou teoricamente correta, a respeito da condição dos trabalhadores na sociedade capitalista e a respeito da afirmação política independente dos trabalhadores como classe.

Como imaginar que um partido como esse se construa sem quadros ou sem lutas? Como imaginar que um partido como esse se construa sem um horizonte ideológico socialista? O PT é, portanto, um partido de perfil ideológico definido. Mas é um partido laico do ponto de vista teórico e filosófico. Nele cabem socialistas dos mais diversos matizes, sejam marxistas, católicos, protestantes, umbandistas, agnósticos etc. Nele cabem, enfim, todos os que estejam dispostos a lutar por uma sociedade sem explorados e exploradores, uma sociedade socialmente igualitária e politicamente livre, ou seja, uma sociedade socialista na qual, como diria Marx, "o livre desenvolvimento de cada um seja a condição para o livre desenvolvimento de todos".

Qual é o problema real?

Voltemos ao que interessa. Por que passou a ser tão importante voltar a discutir o perfil do PT e a que vem o PT na política brasileira? Isso tudo não nos parecia tão claro quando participamos da fundação do PT em 1979/1980? O que mudou que nos obriga a voltar a discutir as razões maiores da nossa existência?

Creio que há dois motivos sérios para isso. O primeiro é, digamos, de natureza subjetiva; diz respeito ao partido, não à realidade externa a ele. Embora tenhamos uma concepção própriade partido, depois das eleições de 1982, tomamos atalhos no caminho e acabamos por deixar esta questão um pouco de lado. Isso tem a ver tanto com polêmicas mal colocadas, quanto com a maneira como resolvemos tratar circunstâncias criadas pelo processo político e que nos lançaram, como aos demais partidos, em uma sucessão de lutas eleitorais e de questões de alcance estritamente institucional. O segundo motivo é, digamos, objetivo: diz respeito a realidades que se impõem a nós. A primeira e mais importante é o prolongamento dá crise econômica que, convém não esquecer, começa em 1974 junto com a política de distensão de Geisel, isto é, junto com a chamada transição conservadora. Isso significa que nascemos diretamente das lutas de resistência: resistência econômica contra os efeitos da crise e resistência política contra os efeitos da ditadura. Nascemos, portanto, de uma luta de caráter basicamente defensivo. Dois comentários a respeito. Em primeiro lugar, é importante registrar uma autocrítica que, penso, vale para todos nós: de algum momento para cá, deixamos a bola correr solta quanto a nossa concepção de partido. Foi o mal estar que veio depois das eleições de 1982? Foi o nosso modo de encarar a campanha das diretas? Ou foi o nosso modo de encarar as eleições de 1985? É uma questão a examinar. Por exemplo, quando foi que paramos as nossas campanhas de filiação? Pode-se discutir a data, mas não vejo como se possa negar o fato, aliás lamentável. Quando foi que deixamos as nossas políticas de nucleação?

Não estou pretendendo sugerir que o partido não cresceu neste período. Nem pretendo negar algumas importantes conquistas organizatórias no campo da democracia partidária; ou na área das relações do partido com a sua frente parlamentar. Sustento, porém, que se o PT cresceu como imagem junto às massas, não cresceu no mesmo ritmo nem na mesma proporção como organização. Os 1300 municípios (somando perto de 85% do eleitorado) nos quais lançaremos candidatos a prefeito em 1988 dão uma imagem do nosso crescimento como legenda. Aparecemos nas pesquisas como o segundo partido depois do PMDB, alcançando uma expectativa de votos em torno dos 15%, mais do que o dobro daquilo que agora temos. Crescemos também como imagem de luta junto à população e como influência difusa sobre os movimentos sociais. Mas continuamos, enquanto organização política, como reflexo dos movimentos sociais, em especial do movimento sindical. A CUT (Central única dos Trabalhadores), que, embora concebida desde o início como organização independente, nasceu do impulso do PT, cresce num ritmo mais rápido do que o nosso.

O segundo comentário diz respeito a algo mais importante. A continuidade da crise explica algumas das nossas dificuldades, mas pode também oferecer o terreno para uma perspectiva de saída. Nascemos como partido no quadro de uma crise que obrigava (e continua obrigando) os trabalhadores a uma política de caráter defensivo. Nada de espantoso portanto se temos encontrado dificuldades para desenvolver uma concepção política de caráter ofensivo. Assim como outras forças políticas que buscam enraizamento popular, temos encontrado dificuldade para desenvolver uma estratégia política para a época em que nos encontramos.E aí que retoma importância a questão da relação entre a construção do PT e o quadro político e econômico geral.

Seja por força de nossos erros passados, seja por imposição do quadro econômico e político, o fato é que, depois de oito anos de luta,não podemos ainda falar de um partido consolidado em plano nacional. Se do ponto de vista dos outros partidos podemos hoje ser considerados um partido feito, do nosso próprio ponto de vista somos ainda uma proposta partidária. Uma grande proposta, com enorme força social - aliás com mais força social do que força política -, mas que tem um bom pedaço de caminho a andar para alcançar a sua identidade. Nosso problema não é o de uma crise de identidade que pode, eventualmente, acometer um partido maduro. Nosso problema é tomar realidade no conjunto do país a proposta partidária. No plano nacional, o PT não é ainda um partido de massas (com a possível exceção de São Paulo, isto é, capital e alguns municípios da Grande São Paulo). Nem é também um partido de quadros. No conjunto do país, apesar do avanço já feito, o PT é ainda uma proposta de construção partidária e uma proposta de luta.

É esta perspectiva de construção partidária e de luta que oferece o ponto de partida de que necessitamos para melhor definirmos nossa estratégia política. Como dizíamos em 1980 e 1982, queremos um partido de massas não apenas para as eleições, para o parlamento, para a administração do Executivo. Um partido de massas deve ter existência permanente nas lutas sociais dos trabalhadores, nos movimentos populares, nos debates culturais, na defesa dos direitos das minorias etc. etc. Deve ter presença nas escolas, nas universidades, nos sindicatos, nas sociedades de amigos de bairro, nos movimentos culturais etc. Temos que voltar não apenas a dizer isso, mas a tomarisso a sério. Temos que levar de novo estas idéias à prática.

A nossa concepção de partido de massas é essencialmente correta. Na realidade, é bem mais do que apenas uma concepção de partido. Ela se acha de tal modo enraizada nas necessidades reais das lutas dos trabalhadores no país que pode vir a se converter no eixo que nos permitirá articular, na prática, a nossa plataforma de lutas na atual etapa histórica. A sociedade moderna, no capitalismo e, mais ainda, no socialismo, cria demandas de participação que vão além dos mecanismos clássicos da democracia representativa (parlamentar), exigindo a criação de novas instituições políticas, inspiradas nos princípios da democracia direta. Foi precisamente por isso que sempre acreditamos que o partido deveria se organizar de baixo para cima, contra as concepções elitistas prevalecentes na sociedade brasileira, e que o PT deveria ser construído a partir dos núcleos de base, entendidos não como aparelhos de militantes mas organismos abertos para a participação da sociedade. Foi precisamente por isso que evoluímos para uma concepção de conselhos populares e para uma concepção do poder como algo que não apenas se toma (no Estado), mas também se cria (na sociedade). Nossa visão do partido é o ponto de partida de uma visão nova do Estado e da sociedade.

Estou de acordo com a crítica que muitos fizeram, nos primeiros anos, a nossa estreiteza e ao nosso internismo. Creio que, com freqüência, substituímos a falta de uma visão mais clara do processo econômico e político por uma plataforma que era, no essencial, a de construir o PT. Mas não creio que se deva levar esta crítica muito longe. Apesar dos nossos erros, tínhamos naqueles anos uma intuição basicamentecorreta, não apenas sobre o PT mas sobre o conjunto da situação política e econômica do país. Nosso único erro foi o de não termos percebido com toda clareza que o nosso processo de construção como partidonão se esgotava em si próprio mas se ligava a todo processo geral da luta pela democracia e por uma nova política econômica. Ou seja, ao invés de nos puxar para dentro, o processo de construção partidária deveria nos empurrar para fora. Isto porque temos que conceber o processo de construção como abertura.

E acredito também que era (e continua sendo) essencialmente correto afirmar que organizar os trabalhadores em um partido independente (bem como nos sindicatos e nos movimentos populares) é o nosso modo, e o modo mais conseqüente, de lutar pela democracia e por uma política econômica que atenda aos interesses dos trabalhadores e do conjunto do povo brasileiro.

Depois das experiências dos últimos anos, esta perspectiva se torna muito mais concreta. Organizar o partido pela base junto aos trabalhadorese construir a democracia pela base da sociedadenão são proposições sinônimas, mas estão muito próximas. E quem se coloca estes dois temas está muito perto de se propor também o tema do socialismo. No fundamento da nossa concepção de partido está uma concepção democrática radical sobre a sociedade e a política em geral: "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Quem entenda o que isso significa deve entender também que a emancipação dos trabalhadores é a raiz da emancipação social em geral. Ou seja, a organização autônoma dos trabalhadores é ocaminho não apenas da construção da democracia política mas também o da transformação da sociedade.

É neste rumo que vejo as indicações gerais do 5º Encontro. Consolidar o processo da construção do PT no conjunto do país, ligado ao processo de luta pela democracia e por uma política econômica que atenda aos interesses dos trabalhadores. A pergunta "A que veio o PT?" não deve nos assustar. Esta é a célebre indagação que se coloca aos partidos com verdadeira vocação para o poder, nos momentos de grandes viradas históricas. Temos uma grande oportunidade de oferecer a nossa resposta na campanha do Lula para a presidência, que de fato tem que começar agora, nas campanhas municipais deste ano. As lutas de resistência contra a ditadura criaram uma frente eleitoral e um partido político. A frente é o PMDB, que fracassou em suas propostas de mudança da sociedade. O partido é o PT, que terá que ser capaz de retomar o sentido radical da sua origem e de aprender com as experiências do seu próprio processo de formação - não para a missão impossível e inglória de confinar a luta dos trabalhadores em um gueto, mas para a tarefa histórica grandiosa de buscar, junto com os trabalhadores e com a maioria do povo, os caminhos da democracia e do socialismo no processo de transformação da sociedade brasileira. Só assim fará justiça ao seu signo de origem: PT nossa vez, nossa voz.

Francisco Weffort é professor da USP e membro da Executiva Nacional do PT.

Nota

1 Lenin não tem muito a ver com tais propostas, de partido marxista-leninista. Em primeiro lugar, a expressão marxismo-leninismo é coisa do período de Stalin, que foi quem codificou o que se chama por aí de princípios do leninismo. Segundo: Lenin sabia que era democracia ("ilegibilidade para todos os cargos e publicidade para todas as teses"); sua teoria do partido (que fazer?) nos moldes de um "exército de revolucionários profissionais" tinha diante de si um dos mais terríveis despotismos da história, o czarismo na velha Rússia do início deste século. Quem pretenda reproduzir esta idéia de partido no Brasil de fins do século XX deveria, antes de tudo, preocupar-se em estudar um pouco de história e também teoria.

Atos de hoje constroem o amanhã

Ruptura com os limites impostos pela distensão do regime militar; ruptura com os tipos tradicionais de partidos existentes no Brasil. E, do ponto de vista das concepções sobre partidos operários, ruptura com os esquemas até então predominantes na esquerda revolucionária brasileira - para quem um partido só poderia consolidar-se de vanguarda e revolucionário caso se proclamasse marxista ou marxista-leninista, se fosse composto de quadros, tivesse clareza das perspectivas históricas e de seu projeto político e se mantivesse clandestino, para resguardar-se dos golpes repressivos da burguesia.

Rompendo com esses esquemas, que no Brasil já haviam demonstrado esterilidade, o PT surge como um partido de massas, democrático e socialista. E surge com tal suporte social que arrasta para suas fileiras diversos grupos e organizações revolucionárias comprometidos com a luta popular, obrigando-os a rever diversos aspectos das concepções de partido até então vigentes. Alguns abandonam o esquema da clandestinidade; outros admitem no PT um caráter estratégico, embora se considerem o núcleo de vanguarda capaz de garantir tal caráter. Mesmo os que não arredam pé de suas concepções se vêem na necessidade de justificar seu ingresso no PT por considerá-lo uma frente e um instrumento tático por meio do qual podem desenvolver seu próprio projeto político.

O PT convive assim, desde sua origem, com uma condição inerente a suas próprias características de partido de massas, democrático e socialista. Sem haver acertado as contas com os erros históricos da esquerda, várias das tendências do PT, organizadas como partidos dentro do partido, resistem em aceitar a idéia de que um partido com as características do partido dos Trabalhadores possa dirigir o processo de transformação socialista no Brasil. Lembram e relembram que todo partido socialista que adotou o lema democrático e institucionalizou-se como partido de massas resvalou para a social-democracia ou para o socialismo legalista.

É possível que isso tenha ocorrido em alguns casos. Do mesmo modo, aliás, que vários partidos considerados revolucionários etc. tornaram-se caudatários de partidos e governos burgueses, como há exemplos vivos no Brasil. O perigo existe, portanto. Mas existe para todos os partidos socialistas, sejam de massas ou de quadros, sejam democráticos ou centralistas.

 Resgate do socialismo

Ao reafirmar o socialismo como uma de suas características básicas, o PT resgatou uma das principais vertentes do movimento social brasileiro. As idéias socialistas aparecem no Brasil na segunda metade do século XIX, ligadas aos setores progressistas e radicais da sociedade. Constituem, durante muito tempo, uma marca distinta em relação aos projetos reformadores e liberais. E representam, sempre, o alvo predileto da luta dos latifundiários e da burguesia contra os trabalhadores.

Apesar dos pesados ataques da propaganda burguesa contra o socialismo, aproveitando-se dos problemas enfrentados pelos diversos partidos que empreenderam a construção da nova sociedade, o ideal socialista permaneceu vivo e forte entre consideráveis camadas dos trabalhadores e da intelectualidade brasileira. Nesse sentido, o esforço do PT em definir o caminho do socialismo no Brasil a partir das condições históricas geradas pela própria sociedade brasileira, contrapondo-se a cópias das experiências externas, representa uma contribuição positiva para firmar o perfil socialista do partido e ajudar os trabalhadores a se libertarem das manifestações da propaganda burguesa contra o socialismo.

Ao mesmo tempo, para ser conseqüente nesse processo de resgate histórico, o PT precisa levar em conta os aspectos negativos da luta pelo socialismo no Brasil. Não pode ignorar que somente em raros momentos as correntes que o defendem conseguiram alcançar certa base de massas. O socialismo não conseguiu transbordar os círculos mais avançados dos trabalhadores e da intelectualidade, nem transformar-se numa aspiração de grandes parcelas da população em virtude da contra-propaganda ideológica e política da burguesia, ou em decorrência dos longos períodos de repressão política ou, ainda, pela estreiteza e sectarismo com que as correntes socialistas se apresentam.

O socialismo jamais conseguiu transformar-se, no Brasil, numa força política suficientemente forte para colocar em xeque o sistema burguês. Embora tenha sido positiva sua persistência como ideal, ele não conseguiu até hoje fazer parte do universo, das aspirações e dos objetivos das grandes massas de trabalhadores.

O PT é a primeira corrente socialista brasileira que apresenta potencialidade real de dar caráter massivo ao ideal socialista. Primeiro porque o Partido dos Trabalhadores surge e se desenvolve como um partido que sintetiza as aspirações e reivindicações das camadas mais amplas da população trabalhadora; porque surge, portanto, como expressão direta e imediata de grandes massas, que o identificam como seu partido. Segundo porque o PT procura construir a idéia e a prática socialista a partir daquelas aspirações e reivindicações, em lugar de querer moldar tais aspirações e reivindicações num modelo preconcebido de socialismo.

Talvez por isso o PT estreite sua base social toda vez que seus quadros e militantes conclamam as massas para a luta por um socialismo que não entendem. Nossa própria experiência tem nos indicado que a ampliação da base social do PT só ocorre quando ele consegue exprimir fielmente as reivindicações imediatas das grandes parcelas trabalhadoras. A experiência mostra também que essa ampliação é uma das principais condições para desenvolver as idéias socialistas como desdobramento daquelas reivindicações na luta contra a burguesia. O estreitamento da base de massas do partido restringe a base social do socialismo e nos coloca mais longe de alcançá-lo.

Socialismo de massas

Por tudo isso, embora seja válida a preocupação em definir os objetivos socialistas do PT, é fundamental considerar que tal definição não pode atrapalhar ou impedir a consolidação do caráter de massas do partido. Só teremos condições de aprofundar a luta pelo socialismo no Brasil se a transformarmos num objetivo e num movimento de milhões de trabalhadores. Nessas condições, o discurso político do PT deve privilegiar a grande maioria da população, aquelas camadas que, postas em movimento, serão realmente capazes de colocar em risco o domínio do capital. E no terreno das medidas organizativas, deve criar canais, espaços e mecanismos que permitam a participação na vida do partido não só dos quadros e militantes, mas também do conjunto de filiados, simpatizantes e apoiadores.

Desse modo, o caráter de massas do Partido dos Trabalhadores não é somente uma condição para ampliar a base para a conquista do socialismo, mas também uma condição para ampliar a participação democrática dos trabalhadores na vida política do país. Nas condições do Brasil, um partido operário e socialista, verdadeiramente enraizado em enormes parcelas da população, que se torne uma instituição nacional contra a qual a burguesia não possa adotar, sem consequências, medidas antidemocráticas e repressivas, é ainda um freio às constantes tentativas de recaídas reacionárias e autoritárias da burguesia.

O caráter democrático do PT impregna suas lutas atuais pela ampliação dos espaços de participação popular e pelo socialismo, resgatando a idéia de que o socialismo não pode nem deve restringir-se à socialização da propriedade dos meios de produção e da riqueza. Também a política deve ser socializada: as grandes maiorias devem ter o direito real de participação no poder. E isso admitindo que essa participação se dê por meio de diferentes expressões políticas ou partidos. Em qualquer sociedade socialista onde subsistam segmentos sociais diferenciados, é necessário que tais segmentos possuam representações políticas próprias e que tais representações tenham espaço de participação no poder, sem o que a democracia não passará de palavra vazia.

Mas o democratismo petista não é somente uma atitude para efeito externo, embora seja da maior importância sua clareza de propósito ante a democracia agora e no socialismo. O espírito democrático do PT rebate sobre sua própria vida interna, valorizando a participação e a crítica das bases partidárias e das massas, como forma não só de demonstrar a coerência de suas propostas democráticas para a sociedade, mas também de criar condições para tornar o PT verdadeiramente um partido de massas.

A definição do Partido dos Trabalhadores como partido de massas, democrático e socialista não é, pois, uma questão formal ou de efeito propagandístico. E a necessidade de tratar corretamente cada um desses aspectos, isoladamente ou de modo combinado, no processo da luta de classes e de construção do partido, também não é um problema de segunda ordem. São elementos estratégicos que devem ser tratados como tais. A ênfase exagerada no caráter de massas pode desfibrar o partido, tornando-o um aglomerado de pessoas com pouca ou nenhuma unidade de ação. O acento exclusivo no caráter democrático, sem incorporar a esse princípio a subordinação da minoria às decisões da maioria, pode transformar o PT numa organização frouxa e inativa. E a ânsia em definir desde já o caminho do socialismo, desligando essas definições do desenvolvimento da luta de classes concreta enfrentada pelas grandes massas trabalhadoras, pode nos conduzir a uma irremediável separação entre as direções e as bases e entre o partido e as massas.

O Partido dos Trabalhadores só se tornará o instrumento fundamental das classes trabalhadoras para a realização das transformações socialistas no Brasil se suas direções e bases souberem combinar, em cada momento, o desenvolvimento e a consolidação de cada uma daquelas características básicas. Agora, concretamente, após as definições estratégicas e programáticas do 5º Encontro, que avançaram na perspectiva da conquista do poder e do início da construção socialista no Brasil pela via democrático-popular, é de suma importância retomar o esforço para ampliar a base massiva do PT.

Massas e quadros também

A adoção de políticas que permitam ao partido capitalizar o sentimento de descontentamento e protesto da grande maioria da população brasileira, seja para superar sua apatia e mobilizá-la para a luta econômica, social e política, seja para impor à Nova República, ao PMDB, ao PFL e ao PDS uma esmagadora derrota eleitoral nas eleições municipais de novembro de 1988, tornou-se um dos problemas-chave para o PT enfrentar com êxito a transição conservadora e mudar a atual correlação de forças. Descobrir as reivindicações mais sentidas das grandes parcelas trabalhadoras, apoiar decididamente tais reivindicações e engajar-se na luta pela sua conquista transformou-se hoje, mais do que antes, numa tarefa crucial para nosso partido. Ao mesmo tempo, unificar as lutas econômicas e eleitorais locais por meio da candidatura Lula e do programa alternativo de governo do PT deve representar um teste de capacidade política inigualável para os petistas que se propõem a assumir o poder e construir uma nova sociedade.

Esse desafio faz com que nos deparemos com contradições de diferentes tipos. Para ampliar o caráter de massas do PT não basta que saibamos adotar políticas mobilizadoras; é preciso, além disso, que saibamos criar canais mais largos de participação massiva nas instâncias partidárias e que formemos rapidamente um conjunto de quadros capazes de relacionar-se com as bases e as massas, captar seus sentimentos, transformar tais sentimentos em propostas mobilizadoras e contribuir para elevar seu grau de organização. E ao formar quadros, corremos o risco de formar uma parcela de militantes que se considere acima das bases e capaz de substituí-las. Neste caso, cavamos um fosso entre direções e bases e entre partido e massas.

Por isso, entre outras coisas, é essencial discutir e repisar uma e mil vezes o significado do caráter de massas do PT, sem o qual ele corre o perigo de não ser democrático nem socialista, não tanto por falta de vontade, mas por inviabilizar-se como força política real.

Evidentemente, o partido tende a firmar outras características. Mesmo tendo por base seu caráter de massas, democrático e socialista, o Partido dos Trabalhadores será, também, um partido de quadros, com um perfil ideológico mais definido, preparado para enfrentar os diversos tipos de luta que a burguesia e seu Estado lhe impuserem e com um elevado grau de unidade política e de ação.

Entretanto, a afirmação desses elementos vai demandar um processo relativamente longo e dependerá, em grande medida, do nível de enraizamento do PT nas grandes massas trabalhadoras urbanas e rurais e do grau de participação crescente dessas camadas no próprio partido. Em vista disso, não são somente prematuras e irreais as discussões sobre a necessidade de o Partido dos Trabalhadores definir-se como marxista, marxista-leninista, proletário ou revolucionário.

Elas são irresponsáveis. Tais problemas não estão no horizonte da compreensão e das necessidades vividas pela base partidária e pelos setores de trabalhadores e populares que potencialmente podem incorporar-se ao partido. E a vida já demonstrou que tais definições de nada valem se a esmagadora maioria dos trabalhadores não se mobilizar para a luta por propostas que entenda.

Mais uma vez vale relembrar que não é a autoproclamação que torna alguém proletário, revolucionário, marxista-leninista ou marxista. Os homens e os partidos, dizia um grande pensador, valem por seus atos e não pelo que proclamam. E os atos, para os petistas, só têm conseqüência se forem atos com respaldo de massa.

Wladimir Pomar é secretário Nacional de Formação Política, membro da executiva Nacional do PT e membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate.

Um novo partido socialista e de massas

Alguns pressupostos desta discussão exigiriam, por si só, uma exposição mais profunda do que permite este artigo e exigiriam também um debate que precede a própria concepção de partido. Não se pode abdicar, porém, de enumerá-los para que as discordâncias possam ser orientadas a partir de uma visão do conjunto das opiniões do autor e não simplesmente por meio de teses que se opõem, sem que fiquem lembradas as suas raízes teóricas.

Em primeiro lugar é preciso que a teoria deste partido seja uma resposta à pergunta: "Para que um partido?". Sem definir qual o objeto da organização partidária dificilmente passar-se-á para um debate de fundo. O primeiro pressuposto, portanto, é que as opiniões aqui expostas têm o partido como organicidade, que se expressa como "mediação entre a teoria e a prática"(1), cuja finalidade é a conquista do poder para determinar uma alteração radical nas relações de classe, visando com isso a construção da sociedade socialista.

Esta possibilidade, a construção do socialismo, só será realizada por meio de uma inversão da dominação, o que exige um novo tipo de Estado. O objeto do partido - a revolução socialista - é a própria razão de ser da teoria que "deve basear-se numa elaboração teórica mínima a respeito do processo através do qual seu objeto, o socialismo, pode se constituir".

Se tenho claro que o socialismo será construído por meio de um processo seqüencial de mudanças no interior da ordem burguesa, eu terei um determinado tipo de partido. A visão histórica de que a revolução socialista é uma ruptura, que só poderá se dar contra o desenvolvimento natural da sociedade capitalista, exige uma outra concepção de partido.

O segundo pressuposto é que o partido, como forma superior de organização que se contrapõe à forma ordinária e alienante por meio da qual o capitalismo concentra e organiza os operários e os demais trabalhadores, é a forma histórica(2) que possibilita que as massas passem de meras executoras dos atos de trabalho no processo produtivo a organizadoras de uma nova relação entre as classes. E isto só pode se dar por meio da política planejada e pensada como ação específica. De fundamentalmente braços, as massas passam a ser também cérebros, subjetivando o próprio comportamento acima e afora da rotina alienante que lhe reserva a sociedade capitalista.

O partido, portanto, que, consoante o primeiro pressuposto, deve ser construído em função do seu objeto, a revolução socialista, é também um sujeito da atualidade. Atualidade esta que passa a ser pensada na história. Não mais uma atualidade que apenas reproduz as formas alienadas de convívio e atividade que a rotina impõe; mas uma atualidade que se propõe a expressar um nível de consciência futura, que já se manifesta de maneira germinar nas suas relações internas e nas relações do próprio partido com o movimento de massas. Por isso, o partido intervém, igualmente, em outras esferas por meio das quais se realiza a hegemonia burguesa, com uma política cultural, com a luta por uma nova ética e uma nova moral, opostas às estratificações ideológicas da dominação burguesa, tensionando a consciência das massas contra a globalidade dos valores do capitalismo. Sem a intervenção nesta esfera, no tipo de sociedade em que vivemos o partido será absorvido como partido integrado à ordem, por mais radical que ele se presuma.

O terceiro pressuposto é geral: parte da afirmação de que há uma crise no marxismo. E que esta se expressa na contradição flagrante entre as suas propostas teóricas e a sua realidade histórico-concreta, através da qual, com o porte de filosofia oficial, o marxismo transforma-se numa normatividade apologética do socialismo real, com toda a sua perversão burocrática. Esta crise, que também é uma crise da teoria leninista do partido de vanguarda formulada pelo stalinismo é fundamental para ser pensada, de forma encadeada e integrada com o primeiro pressuposto: a luta pela revolução socialista com as suas particularidades, num país específico, num momento de desprestígio do socialismo e do comunismo, carente de uma crítica filosófica radical do marxismo soviético, que é urna deformação positivista da dialética marxista(3).

Com base nestes pressupostos, o partido socialista a ser construído não o será apenas na esteira de todas as experiências anteriores, mas deverá ser uma ruptura que conserva e supera todas essas experiências, à medida que a dominação burguesa é cada vez mais complexa e o seu objeto - o socialismo - é cada vez mais difícil e as consciências são cada vez mais manipuladas. O partido de novo tipo deve responder a esta nova situação histórica.

A evolução do debate

Nos primórdios do Partido dos Trabalhadores há, ao mesmo tempo, uma recusa e uma crítica do sindicalismo como arma fundamental de luta contra o capital, porque é, no início, uma ideologia do sindicalismo que quer se expressar como universalidade, por meio da política partidária. E há também a afirmação do espírito sindicalista, em oposição à universalidade da política, pois na gênese do PT expressa-se um repúdio velado, mas enérgico, a uma teoria que rompa com os particularismos do movimento sindical e se apresente como um projeto global da sociedade. Ainda hoje permanecemos no socialismo do dia-a-dia, sem um projeto que tenha abrangência e responda às próprias questões colocadas pela modernidade, embora estejamos começando a debater essas questões a partir da própria polêmica sobre a concepção de partido.

O novo movimento interno do PT, de compreender a necessidade de ter uma teoria, passou a qualificar minimamente o debate sobre as correntes de opinião e as organizações que o compõe. A maioria da base, sensível aos argumentos que dividiam o PT entre os petistas puros e os infiltrados, tornou-se mais exigente e passou a compreender que a questão é complexa e que da sua solução podem depender os destinos da revolução no país.

Em todas as oposições que pretendem pensar com honestidade, e sobretudo com humildade, a questão da revolução no Brasil, transita a convicção de que é preciso forjar uma estratégia da revolução e que esta estratégia implica em pensar o PT como partido estratégico - um partido de novo tipo para uma revolução original num período histórico novo.

Uma das discussões que iniciaram o processo de qualificação do debate, ainda que de maneira débil, foi aquela que versou sobre a construção de um partido de massas ou de um partido de vanguarda. Na verdade, ali, o que se interrogava era a necessidade de uma vanguarda, pois nenhuma corrente expressiva defendeu que o PT fosse um partido de vanguarda, na acepção lenineana anterior a 1905, que se referia concretamente a um partido de quadros. E isso ocorreu porque na revolução européia, Rosa Luxemburgo e Lenin respondiam a questões absolutamente diversas, na Alemanha e na Rússia, respectivamente... Rosa supervalorizava a espontaneidade porque se enfrentava com o burocratismo e conservadorismo do sindicalismo alemão, que enquadrava a iniciativa das massas no oportunismo parlamentar: Lenin torcia o bastão na defesa da organicidade e na qualificação dos quadros, porque brigava contra o liberalismo organizativo de um "conglomerado informe de organizações locais", que impossibilitava uma intervenção orgânica do proletariado na revolução democrática que estava em curso na Rússia(4).

Partido de massas x partido de vanguarda

A polaridade absoluta entre partido de massas e partido de vanguarda do ponto de vista do leninismo é falsa. Em primeiro lugar, porque não existe uma teoria integral de Lenin a respeito do partido revolucionário socialista. O que existe são alguns princípios teóricos que podem ser extraídos da sua praxis político-organizativa. Esta praxis contrapõe-se a uma divisão esquemática entre as suas opções. Os textos de Lenin sobre o partido, reservados alguns princípios fundamentais - como a necessidade permanente de profissionais (mas não só de profissionais), a necessidade de manter o trabalho conspirativo (mas não só o trabalho conspirativo) e o centralismo democrático (mas com estímulo às iniciativas individuais) apresentam propostas diferentes em função da conjuntura histórica e da correlação de forças entre as classes. Estes textos são de 1905:

 "Com maior amplitude e audácia, com maior audácia e amplitude, mais uma vez com a maior audácia, sem ter medo de fazê-lo (...) abandonem todos os velhos hábitos de imobilidade, de respeito à hierarquia (...) concedam a todo subcomitê o direito de redigir e publicar manifestos, sem multas delongas É preciso unir e pôr para trabalhar, com extraordinária rapidez, todos os elementos que possuam iniciativa revolucionária (...)". "Devemos saber adaptarmos a uma dimensão totalmente nova do movimento (...). É preciso aumentar substancialmente os efetivos de todas as possíveis organizações do partido ou próximas do partido, para caminhar, de qualquer modo, pari passu com a torrente de energia revolucionária do povo, que cresceu cem vezes (...). Devemos criar, sem perder um só instante, centenas de novas organizações".

Os termos formalmente opostos são na verdade partido de massas x partido (só) de quadros, não partido de vanguarda x partido de massas. Lenin salientou inúmeras vezes que as teses do Que fazer? eram específicas para responder a uma situação concreta e não uma teoria geral do partido revolucionário. O partido de quadros só se justifica de maneira pura em épocas de rigorosa clandestinidade e violenta repressão do Estado burguês. Um partido de massas pode ser de vanguarda e para sê-lo precisa contar com milhares de quadros.

O Partido dos Trabalhadores, que hoje já é vanguarda na luta contra a transição conservadora e nas lutas anticapitalistas - mas que carece de definições estratégicas -, dependendo da sua evolução programática e ideológica, poderá ser um partido socialista de vanguarda, ou seja, colocar-se à frente do movimento socialista, para dirigi-lo e orientá-lo. Para isso precisa uma maior homogeneidade ideológica, uma definição programática e uma estrutura organizativa que, mantendo a democracia, incida de forma mais abrangente sobre o cotidiano político de sua militância organizada. E também expresse a pretensão jacobina de constituir uma política de proteção e de autodefesa dos direitos democráticos das massas, sob pena de limitar-se aos enfrentamentos na esfera política das instituições da ordem, sendo inexoravelmente sugado por ela.

Traços estratégicos para uma concepção de partido

À medida que o PT reconhece a existência - fora de seu corpus orgânico de outras organizações socialistas, parece evidente que não só o Estado socialista que ele defende deverá garantir a pluralidade de partidos democrático-revolucionários, operários e socialistas, como também deverá afirmar suas diferenças com os demais projetos socialistas - quanto ao conceito de democracia socialista, bem como quanto ao tipo de Estado a ser construído e também sobre a própria organização da produção.

A integração completa da formação social brasileira no sistema imperialista-monopolista - sua associação e sua independência - constituíram nossa sociedade com pólos de alto grau de desenvolvimento capitalista, conjugados a regiões de capitalismo atrasado. Nosso processo histórico possibilitou a criação de um Estado tutelado pelo militarismo que cumulou duas características importantes, além de outras que aqui não vêm ao caso. A primeira delas é a disponibilidade aberta (sem maiores mediações jurídicas com o interesse público) em relação aos interesses gerais das classes dominantes, o que faz as instituições do Estado funcionarem, à semelhança dos partidos burgueses, como um mercado persa de corrupção e de venalidade. Isso proporciona a aversão das massas ao Estado, identificando-o como instrumento de negociatas e roubalheiras. A segunda característica atual e contraditória deste Estado é a sua complexidade e modernidade, a sua ligação estreita com os aparatos privados da burguesia, a utilização aberta dos meios de comunicação de massa, altamente modernizados, para fazer fluir a hegemonia burguesa sobre as amplas massas populares, a partir de iniciativas do próprio Estado.

É evidente que o pólo que vai decidir os destinos da revolução brasileira é o pólo capitalista altamente desenvolvido, por meio de lutas que se processam na sociedade civil e nos aparatos do próprio Estado burguês. Se estiver correta, tal afirmativa obriga a concluir que os agentes fundamentais de uma mudança revolucionária são o proletariado urbano e as amplas massas de trabalhadores urbanos braçais e intelectuais e das modernas empresas rurais. Esta mudança deverá passar por uma fase longa de acumulação política, de disputa pela hegemonia na sociedade civil e nas instituições do Estado, com a construção de uma cultura política e de uma ideologia socialista em bolsões altamente organizados daqueles setores revolucionários, em direção a uma ruptura com o Estado burguês.

Entendo que sem uma estratégia que leve em conta este eixo moderno e desenvolvido da economia, o socialismo no Brasil é mera ilusão. E esta ilusão poderá gerar seu subproduto na própria qualidade política e orgânica do Partido dos Trabalhadores, esgotando sua luta abstrata pelo socialismo e integrando-o à ordem, por meio do velho realismo de quem luta por reformas como um fim em si mesmo. Esta possibilidade já está posta, no plano ideológico, pelas concessões que o partido tem feito no seu relacionamento com parcelas da burguesia e que devem ser corrigidas imediatamente.

Quero deixar bem claro que não sou da opinião que empresários não podem entrar no partido. O que entendo ser equivocado no terreno dos princípios, porém, é tratar frações da burguesia como aliadas ou amigas do partido, adoçando seu socialismo na medida das exigências deste relacionamento(5). Quanto aos empresários que entrarem no PT, devem fazê-lo na exata medida que, como indivíduos, assumirem o programa e a política do partido.

Bases para o nosso projeto

O sujeito orgânico a ser formado, o partido, deve responder portanto às exigências de uma longa disputa pela hegemonia, num país que possui um Estado moderno militarizado, expressão dos interesses de uma burguesia altamente reacionária, que dispõe de modernos meios de manipulação da consciência das massas, e que é hoje aparelhado, sem maiores mediações jurídicas, pelos interesses dos grandes monopólios.

Este sujeito político (o partido), em conseqüência, além da disputa política permanente, só terá possibilidade de formar uma base de massas desprendida da hegemonia burguesa se fizer da luta ideológica antiburguesa, em todos os planos (político, cultural, ético, filosófico), um momento determinante da sua história, disputando nas instituições do Estado e da esfera da sociedade civil com respostas dentro e fora da ordem. A tradição teórica a ser apropriada por nós, para conservá-la e superá-la, é a de Rosa, Lenin, Gramsci, Lukács e Bloch.

Para quem entende as complexidades e as dificuldades da etapa em que nos encontramos, suponho que são os seguintes os eixos de uma política de construção partidária:

a) Aprofundar as definições programáticas do partido, buscando caracterizar as linhas - mestras do tipo de Estado que defendemos, que seja o viabilizador de uma nova experiência socialista para a humanidade, no rastro das lições e na superação, das experiências abertas pela revolução bolchevique. Para isso é preciso entender que a definição do PT como partido marxista-leninista seria hoje meramente formal e inadequada, tendo em vista, de uma parte, o significado histórico adquirido por esta expressão perante os olhos das massas e, de outra parte, porque o conteúdo filosófico da mesma foi objetivamente preenchido pela vulgaridade doutrinária do stalinismo.

b) Forjar um partido com uma relação interna democrática, que reconheça o direito de tendência, regulamentando-o por meio de normação dos deveres e direitos dos militantes individualmente, recusando-se à burocracia policialesca dos registros que evidentemente tenderão a estratificar suas tendências internas. Um partido que não recuse, ao contrário, proceda à centralização da política nas suas questões essenciais, mas de tal forma que permita e estimule que todas as correntes e organizações produzam e divulguem a mais ampla, polemizante e diversa literatura científica, política, filosófica, inclusive criando condições para que a mesma seja reconhecida e legitimada como necessária para o movimento. Um partido que revogue a atual regulamentação de tendências, que expressam um viés burocrático, centralizador em termos administrativos, além de ser ilusório e desigual, tendo em vista que essa regulamentação só poderá atingir as estruturas que se reconhecem como existentes, não atingindo nem podendo atingir as organizações que se estruturam ou se estruturaram secretamente. Para isso é preciso partir do princípio que a questão das organizações só será resolvida processualmente, à medida que o partido definir melhor a sua visão programática do socialismo (ou eventualmente de uma nova forma social democrática que se tome hegemônica) e as suas concepções estratégicas, relacionadas com a questão do poder.

c) Superar as decisões do 5º Encontro que são extremamente simplificadoras, internamente contraditórias e abrangentes, pois são capazes de satisfazer meio mundo sem armar coerentemente ninguém. Decisões cujo etapismo nos leva a uma tática rebaixada, que não responde às condições de luta de classes no Brasil. O conteúdo hegemônico das decisões do 5º Encontro foi um dos fatores teóricos que não estimularam o partido a iniciar a criação das condições para aprofundar o seu processo de credenciamento como uma referência socialista moderna, contraposta às formas tradicionais pelas quais a burguesia faz a sua política.

Tarso Genro é vice-presidente do PT/RS e Membro do Diretório, é candidato a vice-prefeito de Porto Alegre.

Notas

1 LUKÁCS, George. Teoria do Partido Revolucionário, Ed. Brasil Debates, 1987, p.41.

2. GRAMSCI, Antonio. Teoria Política, nº 8, Ed. Brasil Debates, p.123.

3. GENRO FILHO, Adelmo. Filosofia e Praxis Revolucionária – Marx, Engels, Bloch, Korch, Ed. Brasil Debates, 1988, p.9.

4. HOBSBAWM, Eric. História do Marxismo. Vol 6, Ed. Paz e Terra, 1985. P. 30 e seguintes.

5. Folha de S. Paulo, reportagem, dia 19/06/88

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