EM DEBATE

Faz anos que a reforma política está na pauta, e parece que há consenso na sociedade e no Parlamento sobre a necessidade e até urgência de realizarmos uma. Mas não há acordo entre os diversos atores políticos com relação ao conteúdo dessa reforma: voto em lista fechada e preordenada, distritão, financiamento empresarial ou não, doadores anônimos etc. Todos os dias somos surpreendidos com um novo ponto em debate. Mas terá o atual Congresso isenção para votar uma reforma que fortaleça a representação da sociedade?

Que reforma política? Com qual democracia?

Não ao “distritão”

Que reforma política? Com qual democracia?

Em meio a uma das maiores crises da história do Brasil, como será possível realizar uma reforma política, com a profundidade e a qualidade que o país necessita, sem que tenhamos uma democracia plena e um governo legítimo? Como poderá emergir uma reforma verdadeiramente democrática e cidadã do interior do estado de golpe, de instituições desacreditadas e, ainda, conduzida por um Congresso sob suspeita? Como imaginar que os atuais deputados e senadores proponham soluções melhores para nossa democracia que uma assembleia constituinte exclusiva, eleita pelo povo e formada por cidadãos que não irão concorrer a cargos públicos? Certo que essas perguntas já carregam parte de suas próprias respostas. As ameaças recorrentes – adoção do distritão ou distritão misto, parlamentarismo sem povo, permissão de contribuição empresarial para campanhas, entre outras – revelam a face regressiva e conservadora do que está por ser aprovado pelo atual Parlamento nacional, em proveito próprio, para manter mandatos e foros privilegiados.

As reformas realizadas, ou pretendidas até agora, propostas por Temer e pelo Congresso Nacional, deixam nítido o quanto pode ser prejudicial para o futuro do país a continuidade de um governo ilegítimo e um parlamento dedicado à sua própria defesa e interesses eleitorais. Temer e sua base de apoio são símbolos do golpe, da má gestão, da leniência com a corrupção e do desmonte do Estado social. Donos dos maiores índices de rejeição da história, não contam com legitimidade para conduzir a reforma política e aprovar a retirada de direitos previdenciários e trabalhistas. Claramente, os envolvidos desejam uma regra de transição no sistema político para que, nas eleições de 2018, os atuais deputados mantenham seus mandatos.

Mas o agravamento do cenário político, combinado com a crise econômica, demonstra a urgência de um novo pacto nacional pela democracia. O país não suporta mais a instabilidade política, jurídica e econômica indefinidamente, com enorme custo para a população brasileira. A desorganização administrativa, a crise de representatividade, as suspeitas que pendem sobre as instituições da República, a economia paralisada, o enfrentamento entre os poderes, a escalada da violência política, o crescimento da pobreza e da exclusão social, entre outros, demonstram a gravidade da realidade nacional. Assim, torna-se imperativo trabalhar pela antecipação das eleições, ainda neste ano, para presidente da República, deputados federais e senadores, e, conjuntamente, a eleição de uma Assembleia Constituinte Exclusiva da Reforma Política. A melhor alternativa para a crise atual será devolver ao povo brasileiro o poder soberano de eleger o principal mandatário da nação e seus representantes no Congresso Nacional.

A antecipação das eleições poderá garantir um novo governo e um parlamento com legitimidade política para restabelecer a democracia. Ao mesmo tempo, a Constituinte Exclusiva poderá tratar de todos os aspectos relevantes para um sistema político renovado e qualificado, que realmente represente a população. Iniciativas como a realização de primárias para todos os partidos, possibilitando aos eleitores participar das escolhas de candidaturas majoritárias e proporcionais; a eleição direta de prefeitos, governadores e presidente a qualquer tempo que houver interrupção definitiva do mandato em andamento; ampliação dos fóruns de democracia direta, participação e controle público do Estado; definição do voto em lista fechada mista, com candidaturas avulsas; proibição do financiamento empresarial; fim das coligações nas eleições proporcionais e do troca-troca de partidos.

Igualmente, em nada é razoável que a sociedade brasileira, vítima de tal crise, ainda não tenha sido convocada, em nenhum momento, a se manifestar pelo voto. A gravidade da conjuntura exige uma medida de excepcionalidade política e normativa, respeitado o ordenamento constitucional vigente. A antecipação das eleições e a Constituinte são medidas legais e possíveis, além de representarem os melhores remédios democráticos para estancar a crise e retomar a normalidade institucional.

Henrique Fontana é deputado federal (PT-RS), relator da Reforma Política na legislatura 2010/2014

Não ao “distritão”

Em 2015 o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, atualmente preso por corrupção, capitaneou uma reforma política que visava à constitucionalização das doações empresariais de campanha e a implantação do “distritão”. Para atingir seus objetivos votou a mesma matéria duas vezes, destituiu o relator da comissão, mas ainda assim não conseguiu a aprovação do sistema. Agora, o modelo é ressuscitado. Sabedores dos motivos que movem os defensores da proposta, precisamos expor precisamente as razões que nos fazem rejeitá-la.

O distritão é um sistema majoritário. Impede a agregação de votos dos candidatos de um mesmo partido e gera altos níveis de desproporcionalidade. O que vocês achariam de um sistema no qual o partido que obtém 23% dos votos ocupa 8% das cadeiras enquanto o que recebe 29% conquista 40% das vagas? Foi o que aconteceu em 2010 na Inglaterra, e essa não é uma exceção. Isso se dá porque nos sistemas majoritários partidos com votações dispersas pelo território são penalizados, pois o sistema considera apenas a vitória no distrito e despreza os votos conquistados pelos que ocuparam as demais posições.

Para além da desproporcionalidade, levaria a um imenso desperdício de votos. Segundo simulação realizada pelo cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jairo Nicolau, se o distritão tivesse sido utilizado nas últimas eleições (2014), 30,6 milhões de votos não teriam sido contabilizados na distribuição de vagas para deputado federal.

A natureza desse tipo de sistema dificulta a representação da diversidade e influencia de maneira negativa a participação das minorias sociais. Diferentemente dos sistemas proporcionais, nos quais as listas comportam vários nomes – e é pragmaticamente positivo para os partidos buscar candidatos/as que atinjam os mais variados espectros sociais –, nos majoritários procuram-se nomes já consolidados, que dialoguem com a maioria do eleitorado. Dado o histórico de exclusão social das mulheres, negros e negras, indígenas, e da presente exclusão na política, a dificuldade, hoje marginal, de lançar candidaturas com esses perfis se converteria numa barreira real.

Enquanto lutamos para assegurar vagas, ainda que insuficientes para as mulheres por meio da aprovação da PEC 134/2015, vemos ganhar força um sistema que cria mais dificuldades para aquelas que são mais da metade da população e não chegam a 10% na Câmara. No distritão, cada voto de um candidato sem chances de ser eleito significa um voto perdido dos que têm possibilidades eleitorais. Nesse contexto as cotas, que já não cumprem os efeitos desejados, praticamente perderiam sua única utilidade: assegurar que um quantitativo razoável de mulheres participe do processo.

O distritão reforçaria ainda o hiperpersonalismo e beneficiaria os que já possuem mandatos, além dos ricos e celebridades midiáticas, tornando mais difícil para cidadãos e cidadãs comuns chegar aos parlamentos. Há quem argumente que a medida seria justa porque evitaria que candidatos com elevado quantitativo de votos deixassem de ser eleitos, como eventualmente ocorre. Afirmam ainda que impossibilitaria o fenômeno no qual um puxador de votos elege candidatos com pouca expressividade eleitoral.

Para superar a primeira mazela, contudo, não seria necessário alterar o sistema eleitoral, bastaria substituir a fórmula atual de distribuição das cadeiras por uma que permitisse que legendas que não atingiram o coeficiente eleitoral pudessem disputar as sobras. No que tange ao segundo aspecto, é preciso que destaquemos que tais casos excepcionais têm sido utilizados de maneira retórica, como se fosse regra. O distritão dificultaria ainda a coordenação eleitoral, particularmente no Brasil, que tem os maiores distritos do mundo.

Diante da profunda crise de confiança da população em face das instituições políticas, não consideramos questão menor o fato de que nos anos 1990 o Japão tenha abandonado tal sistema, sob a alegação de que favorecia a lógica da disputa individual e estimulava casos de corrupção e caixa dois. Votamos não ao “distritão” porque sua vitória seria a vitória do que há de pior na política, dos interesses particularistas, do personalismo, do poder do dinheiro, do abismo entre representantes e representados.

Maria do Rosário é deputada federal (PT-RS)

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